Queria escrever sobre papéis que foram parar a paraísos e nos fazem andar – a nós os pré indigentes em insolvência – a amargar desde mil novecentos e tantos. Mas, a história já a conhecemos, desde que as ginjas descontentes sem chuva nos fazem serenatas ao ouvidos. Podemos quase comparar a história dos três porquinhos e do lobo mau, com um acrescento no final. Um dia, os três porquinhos saíram de casa, cansados, depois de tanto darem luta e resistência, à procura da Primavera. Deitaram-se na relva a chupar azedinhas. O lobo que já tinha reposto a energia perdida alimentado por uma inteligência artificial, assim que viu os porquinhos a dormir na sombra, saiu detrás dos arbustos e de uma assentada os comeu. Moral da história: quando esperamos descansar o lobo chega e come as presas.
Mas ó esperança de esperançar, antes porquinho a recriar-se que lobo sem imaginação. Por isso em vez de me dar a comer, vou esperançar.
Estou longe porque também fui obrigada pela purga a que nos forçaram, desde a imposta austera “crise” de 2008, altura em que os bancos passaram a ser os humanos a salvar, e, os humanos passaram a ser coisas a descartar e fazer falir, mas nunca me desligo da raiz que me coube em destino. A minha Ítaca, Portugal.
Acompanho-lhe sempre o caminho como um artista – desapegado e bem – acompanha uma obra sua, querendo saber para onde vai, por onde se aventura ir e quem a quer bem.
Alguns pensam que sou louca por não colocar um padrão de descobrimento e vida em lugar nenhum Em todos os lugares que piso, semeio uma árvore, uma planta e celebro um descobrimento: mais um pouco de mim. Comigo carrego os que me tocam. Porém, tenho um padrão e esse nunca me abandona: por ser mulher e ainda para mais, portuguesa, ninguém pode abusar, ninguém se atreve a passar o limite da decência quando comigo se confronta. Esses se o fizerem como-os com prazer ao pequeno-almoço. Depois vou descansar. A minha bisavó escrava habita em mim. Pisaram-na mas não a dobraram. Eu mantenho a tradição. De quebrar tradições e nunca me dobrar. Nem que isso me custe o preço de oferecer as costas às vergastadas amarrada a um poste. Esperanço pelo dia que o sol vai brilhar, e eu me vou desamarrar e com algum traço poético mais uma tradição quebrar.
A tradição foi feita para manter, se tiver na sua essência a bondade, a dignidade, se que respeitar a humanidade. Todas as restantes são para quebrar em caso de incêndio. Por um lado qualquer se começa qualquer coisa. Os homens e mulheres envolvidos na luta actual por um rumo diferente no país, por quebrar tradições, são os extintores.
São os homens que escrevem as suas histórias, que acrescentam tradições, sistemas políticos, económicos e sociais (escravatura foi tradição, apartheid foi tradição, racismo é tradição, o dinheiro e lucro são tradição, entre alguns exemplos). São tempos, e, estamos sempre a tempo, de ter esperança, do verbo esperançar. Dos navegadores portugueses, das sufragistas, dos escravos, dos colonizados, dos aventureiros que buscavam vida ao partirem na Companhia das Índias, dos refugiados de todas as guerras que fogem da morte ao encontro da vida, dos novos emigrantes (no caso concreto dos portugueses) todos se encontram com os Adamastores de serviço. Ou com os cínicos, os perversos, os oportunistas que Camões também escreveu.
Os que quebraram tradições e dobraram Cabos violentos, foram nossos antepassados. Com muito medo fizeram-se à dobra e chegaram a novos oceanos. Desconheciam o que estava do outro lado, no entanto, nomearam a Esperança do verbo esperançar, como vela orientadora.
Não sei o que estes homens e mulheres conseguirão fazer. Mas já começaram a mudar algo subtil. Se estão por bem, os ventos conduzi-los -ão a portos fecundos. Quando temos medo da mudança, fugimos de nos confrontar com ela. Estes homens e mulheres, a partir do medo do desconhecido, abrem caminho à esperança. Abriram as velas e o vento dos tempos empurram-nos.
“Não sabem por onde vão? Não sabem para onde vão? Mas sabem que não vão por ali”. É fundamental e imperioso não ir por onde continuamos a ir. O mundo está a mudar rápida e inevitavelmente. Que a bandeira de esperança do verbo esperançar seja a sua força neste sistema aparentemente sem freio.
Por aí se grita firmemente: já não conseguem enganar todos. Podemos estar a descansar para recuperar energia vital mas não nos façam de porquinhos a apanhar bonés. Se o lobo nos comer terá uma pesada indigestão. Prometam-me.
A semente da mudança foi deitada na terra numa tarde de serenata de Primavera. Entre contracção e dilatação o parto acontecerá em terreno fértil como a História nos demonstra. Toda a lama que depositámos está a aparecer. Então que nos sirva de purga. É isto que me acontece sempre que chego à minha Ítaca e recebo a suave carícia do mar. Das vísceras vislumbro a suave dança do espírito dos meus antepassados a rasgar a visão do mundo. Com eles visto-me com o estado de espírito da esperança do verbo esperançar.
Anabela Ferreira
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