Este é o Estado que temos. Mas é este o Estado que queremos?

Para aqueles que discordam do entendimento de que o Estado é um instrumento de poder e de constrangimento, para não dizer de opressão, de uma classe sobre outra, recordo e sublinho aqui alguns factos recentes:

PRIMEIRO: Finanças

Após o escândalo dos verdadeiros “assaltos à mão armada” da GNR aos contribuintes condutores levados a cabo pela Direcção de Finanças do Porto e denunciada e demonstrada que ficou a completa inadequação e desproporção dos meios usados (e, logo, a ilegalidade dos mesmos meios, ainda que, à “boa” maneira nazi, sob a invocação da legitimidade dos fins), o que aconteceu? Nada, a não ser a demissão do Director de Finanças do Porto. O primeiro, mas não de todo o principal responsável pelo desmando…

E demissão essa (de um mero tenente ou capitão), aliás, muito conveniente porquanto, permitindo aplacar a revolta da opinião pública, permitiu também que, uma vez mais, o primeiro e principal responsável, o “general” Centenom se safasse impune, na velha lógica da total irresponsabilidade política. Nos termos da qual, quando algo corre bem, o “general” está na primeira linha para receber os louros, mas já quando alguma coisa corre mal, a culpa é sempre do que lhe está abaixo.

Entretanto, veio-se a saber que a mesma Direcção de Finanças do Porto tem também uma “equipe secreta” encarregue de investigar os cidadãos contribuintes que o Fisco considere estarem a fugir às suas obrigações tributárias.

Tal “equipe secreta”, que terá sido criada já em 2017, é composta por um ex-inspector da Polícia Judiciária e 7 inspectores tributários, escolhidos a dedo, e estaria a vigiar, a seguir e até a fotografar cidadãos, tudo isto sem ordens de serviço escritas e fora do âmbito de qualquer processo judicial, ou seja, na mais completa das ilegalidades.

Como se tudo isto já não fosse suficientemente grave, acontece ainda que, perante denúncias acerca desta nova pide tributária – feitas designadamente pela Associação dos Profissionais da Inspecção Tributária – a direcção da Autoridade Tributária terá ordenado (mais) um “rigoroso inquérito”, o qual decorre desde há cerca de 10 meses sem que todavia tenha chegado a qualquer conclusão, e com a dita “equipe secreta” a continuar a exercer a sua actividade tão clandestina quanto ilegal.

O Fisco, que tem devedores de milhões e milhões de euros a quem nada acontece (com Joe Berardo à cabeça), é o mesmo Fisco que, perante o simples esquecimento da apresentação de uma declaração trimestral do IVA por parte de um trabalhador a recibos verdes, logo lhe salta implacavelmente para cima com a aplicação de uma coima de centenas de euros e uma liquidação oficiosa do imposto a pagar de valor sempre muito superior àquele que seria normalmente devido. Isto, ao mesmo tempo que paga aos seus funcionários, como sucedeu no ano passado, 68 milhões de euros de “suplementos de produtividade” com dinheiro das cobranças coercivas, à semelhança do que fez exactamente e com o mesmo objectivo (isto é, o da comissão por cobrança, claro que sempre sobre os mais vulneráveis) a Segurança Social que distribuiu prémios trimestrais de 500€ por cada funcionário encarregue de tais cobranças.

Ao mesmo tempo, toda a sorte de grandes negócios (o próximo será, provavelmente, a venda, pela velha senhora Fundação Calouste Gulbenkian, da sua empresa da área dos petróleos e do gás, a Partex, a uma multinacional do Extremo Oriente) são levados a cabo da forma habilidosa – “cientificamente” designada de “planeamento fiscal” – que permite o não pagamento de quaisquer impostos. Tal como já hoje o fazem, por exemplo, imputando todos os lucros a uma sociedade do Grupo convenientemente sediada na Holanda ou no Luxemburgo, um considerável número de grandes empresas que operam no nosso país.

Mas aí, nem Directores de Finanças, nem “equipes secretas”, nem Secretários de Estado, nem Ministros das Finanças têm um centésimo da energia investigatória e persecutória de que dão mostras perante os pequenos e meios contribuintes.

SEGUNDO: TAP

Na TAP, a mesma Comissão Executiva que é responsável pelos 118 milhões de euros de prejuízo em 2018, tratou, em Maio deste ano, de atribuir a apenas 180 pessoas das cerca de 7000 que trabalham na empresa o astronómico montante de 1,171 milhões de euros de prémios, 308 mil dos quais foram concedidos a 2 administradores (o CEO Elton de Souza e o administrador Abílio Martins, com “apenas” 110 mil euros cada) e 88 mil euros ao Director Técnico Mário Lobato Faria), e sabendo-se,  ainda e por exemplo, que a Drª Stéphanie Silva (mulher do Presidente da Câmara de Lisboa Fernando Medina), chegada há cerca de um ano ao Departamento Jurídico, foi o único trabalhador desse Departamento a ser contemplado, com um “prémiozinho” de 17,8 mil euros.

Denunciado publicamente este escândalo, os administradores da TAP nomeados pelo Estado – a quem, porque detendo 50% do capital da Empresa, sendo 45% dos privados e 5% de funcionários, supostamente, mas só supostamente, competiria a direcção estratégica e as principais decisões da empresa – fingiram-se surpreendidos e até indignados e fizeram sair para os jornais a conveniente ideia de que estavam contra. Tudo isso para depois aceitarem subscrever um comunicado do Conselho de Administração onde se tenta passar a autêntica patranha de que tudo afinal não teria passado de “um mal-entendido” e que para “tornar a política de distribuição de prémios da empresa mais transparente” (sic), o Ministério das Infraestruturas e da Habitação, os administradores nomeados pelo Estado e a Comissão Executiva da TAP, presidida por Antonoaldo Neves, teriam decidido a grande medida de… “criar um Comité de Recursos Humanos, a funcionar junto do Conselho de Administração” presidido por… Antonoaldo Neves!

Se o assunto em causa não fosse demasiado sério – até pelo processo de progressiva degradação da TAP e da sua transformação numa empresa totalmente canibalizada pela Companhia Azul do Sr. David Neelman – seria mesmo para rir até às lágrimas!…

E, claro, da responsabilização de quem quer que fosse por mais este dislate (que, além do mais, constitui uma claríssima demonstração de que “uns são filhos e outros são enteados”), não houve o mais leve vislumbre… Isto, mesmo quando se soube posteriormente que, afinal, os prémios que o Sr. Antonoaldo Neves e Companhia pretenderam inicialmente distribuir, desde logo a si próprio, eram ainda bem mais elevados, atingindo para cada um dos administradores de topo (incluindo o próprio Antonoaldo) o módico valor de 400 mil euros!

TERCEIRO: Banco de Portugal

Por fim, o ex-Governador do Banco de Portugal Vitor Constâncio – que, coitado, vive de uma modesta reforma de 27.000€ mensais… – aquando da sua inquirição na Comissão Parlamentar de Inquérito à CGD, no passado dia 28/3, para além de inúmeras, muito convenientes e até acintosas faltas de memória, afirmou claramente aos deputados desconhecer previamente a operação de concessão de crédito pela qual a mesma CGD concedeu a Joe Berardo um empréstimo de 350 milhões de euros para a aquisição de acções do BCP, dando apenas como garantia as próprias acções.

E Vitor Constâncio afirmou mesmo nessa altura que o Banco de Portugal (a que em 2007 presidia) “só tem conhecimento delas (esse tipo de operações de crédito, nota nossa) depois”, “como é óbvio, é natural”!, e que “essa ideia de que (o Banco de Portugal, nota nossa) pode conhecer antes, é impossível”.

Ora, veio entretanto a saber-se que, afinal, o Conselho de Administração do Banco de Portugal, em reunião realizada a 21/8/2007 e com um único ponto da Ordem de Trabalhos, deliberou “não se opor à detenção por parte da Fundação Joe Berardo de uma participação qualificada superior a 5% e inferior a 10% no capital social do Banco Comercial Português, SA e inerentes direitos de voto”, na sequência de um pedido apresentado por Joe Berardo para passar de uma participação de 3,99% para 9,99% no capital social da CGD, tornando-se assim um seu accionista de referência, pedido esse acompanhado de documentação vária, designadamente dos contratos de créditos que aquele empresário tinha celebrado com a Caixa.

Assim, é evidente que, mesmo não tendo participado na referida reunião do Conselho de Administração de 21 de Agosto, Vitor Constâncio não podia deixar de conhecer o que se passara antes e o que se passou depois dele, ficando pois claro que faltou vergonhosamente à verdade no depoimento que prestou no Parlamento.

Fazendo, aliás, rigorosamente a mesma figura que já fizera em 8 de Junho de 2009 quando, enquanto Governador do Banco de Portugal, foi então ouvido na Comissão Parlamentar de Inquérito ao BPN cuja gestão ruinosa, recorde-se, já custou mais de 5.000 milhões de euros aos portugueses. Com efeito, já nessa altura Vitor Constâncio tivera o desaforo de proferir declarações como as de que, relativamente à gestão danosa do BPN, “infelizmente ninguém suspeitou no Banco de Portugal porque não havia razões para tal” e que “do que se conhecia e era possível descobrir na supervisão prudencial” o BPN estava a cumprir as suas obrigações!?

Ora, se por acção ou por omissão, Vitor Constâncio falta – e de forma reincidente – à verdade, o facto é que tal conduta, para além de um crime contra a Democracia e de um atentado à nossa inteligência, constitui também crime[1], e um crime público, ou seja, que não necessita de queixa de nenhum cidadão para que o Ministério Público tenha de instaurar o correspondente procedimento criminal.

Mas é claro que o mesmo Ministério Público que se apressou a desencadear tal procedimento criminal contra as mães que denunciaram não só as adopções ilegais de que os seus filhos foram objecto como a inércia e a incompetência do referido Ministério Público na respectiva investigação, é rigorosamente o mesmo que, quando tal lhe convém e tal como Vitor Constâncio e os 3 macaquinhos da estatueta, “não vê, não ouve e não fala”.

Em conclusão, são afinal o mesmo Estado e as suas instituições, como os Tribunais e o Fisco, que assim tão generosa e simpaticamente actuam para com os mais fortes, ricos e poderosos, que ao mesmo tempo se andam a empenhar em exigir ilegalmente a trabalhadores que passaram, em regime de mobilidade, à carreira de técnico superior, as diferenças salariais para as remunerações mais elevadas que lhes passaram a ser então, e muito correctamente, pagas. E apesar de a própria Provedora de Justiça já ter denunciado muito claramente a ilegalidade dessa exigência do Governo, este insiste nas ameaças e até já pôs o Fisco a ameaçar responsabilizar financeiramente os dirigentes dos diversos serviços que procederam ao pagamento dos salários correctos.

Um Estado que assim actua é um Estado que mostra, de forma cada vez mais clara, a sua verdadeira natureza de classe e os interesses que ele realmente serve e protege.

E por isso se torna cada vez mais claro que a tarefa que nos compete a nós, cidadãos, não é a de mudar simplesmente de Governo ou de titulares de cargos públicos, mantendo tudo no essencial na mesma. Mas antes prepararmo-nos para demolir este Estado e construirmos de raiz uma Sociedade em que quem manda é quem trabalha e não quem vive e se enriquece com o trabalho dos outros! 

António Garcia Pereira


[1]Por força das disposições conjugadas dos nºs 132º, nº 2, al. d) do mesmo Código e 160º do Código Penal e nos termos do artº 17º, nº 4 do Regime Jurídico das Comissões Parlamentares de Inquérito (aprovado pela Lei nº 5/93, de 5/3, com as suas sucessivas alterações) que manda aplicar aos depoentes as disposições do Código de Processo Penal sobre prova testemunhal.

2 comentários a “Este é o Estado que temos. Mas é este o Estado que queremos?”

  1. Manuel Ferreira diz:

    Tinha feito um comentário ao seu brilhante texto. Desapareceu quando no final deixava o meu e-mail. Não o vou repetir. Concordo em absoluto com tudo o que diz. Portugal, já o disse e repito, não está a viver num Estado de Direito. As forças relacionaria estão a impedi-lo. A Justiça em Portugal não existe e quando toma decisões são sempre aquelas que mais lhe interessam. A “irmandade” está em toda a parte para proteger os seus “irmãozinhos. Portugal está a caminho de um poço sem fundo. Se o Povo português não tomar nas suas mãos a defesa da Democracia e de um Estado de Direito o país vai mesmo ao fundo. Os ataques constantemente feitos ao sistema Democrático, com a complacência de quem mais o devia defender vai dar mau resultado. Está cambada de fascistas reacionarios estão em todo o lado. E com o poder discricionário que têm deixam que curruptos se passeiem com um sorriso nos lábios a gozar o povo deste país. É necessária uma “vassourada” para acabar com o lixo. Espero que os meus compatriotas abram bem os olhos e contestem tudo o que se está a passar, como diz, e bem, no seu texto. Fascismo nunca mais!. Cumprimentos do Manuel Ferreira.

  2. Eliseu Mendes diz:

    Pois…..fazer stop para obter receitas fiscais????
    Então não era mais certo obter as moradas dos grandes devedores e fixarem-se ás suas portas….e sacar a massa que é de todos nós???

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