ESTILO

Ao cimo da Calçada do Duque havia antigamente a Casa Transmontana, que agora procuro sem encontrar, ao menos naquele sorriso rosa-chá da transmontana genuína que era a sua dona. Consta que ainda existe, mas, na busca, apenas passei pelo café Buenos Aires, versão curta, e encontrei-me com sítios que não reconheço, já as paixões são outras, já tanta água correu pelo meu rio desde aqueles tempos, já tantas memórias dos lugares se apagaram.

Descíamos amiúde para ali jantar, depois de bebericarmos uma cerveja, no Solar do Duque, com o autor hermético e sisudo para o mundo – que não para nós – destas palavras: Estarei louco? O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos. – Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me serve barbitúricos? A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo.

Amávamos o estilo, sobretudo ele, que lia e relia “Os Passos em Volta” e se revia na dedicatória, desenhada letra a letra pelo caríssimo autor – Para o Celestino Amaral, esta coisa velhíssima, com um abraço afectuoso do Herberto Helder, Julho, 92. – à procura da solução para o seu próprio caos dentro daquela capa religiosamente coberta de papel branco, para que ninguém desconfiasse da preciosidade de primeira edição dedicada, que ela continha. Ali estaria, ali estava, sem dúvida, a solução. E descíamos à Casa Transmontana, marcada pelo estilo contido daquele sorriso rosa-chá, que nos vendia a nós e a Baltazar Garzón o porco estufado com castanhas, sempre que ele se deslocava a Lisboa em busca dos rastos impunes, ao estilo franquista, dos polícias de serviço no Estado espanhol, naqueles anos noventa tocados por um arremedo de socialismo consentido. Já então o juiz sabia, como hoje sabe, ainda que sem beca, que o franquismo não se resolvera, apenas se mascarara de aristocracia política com garrote na manga. Ele era declaradamente contra, e adorava os nossos vinhos, a Casa Transmontana e o porco com castanhas.

Hoje sento-me num vazio ponto de mira, observando o invisível, sem cerveja nem estilo, longe daquele inebriante cheiro do guisado. Em frente, num brasileiro cerrado, um homem vende caipirinhas exibindo a metáfora de dedo polegar na boca, em mete e tira brejeiro especialmente dedicado a duas alemãs velhas, enfeitadas com chapéus saídos do Play Time de Jacques Tatti. E vende arrozes cozidos, fotografados em cardápio monumental e só diversos porque, em tal estado físico, o arroz é fácil de misturar com os ainda mais diversos molhos que se vendem na Makro. Fá-lo enquanto explica, com sotaque italiano, adequado aos interlocutores, que aquele ali é o castelo à volta do qual nasceu Lisboa. Qual? A moderna, sem porco com castanhas, sem estilo, sem Garzón, sem nós? A reconstruída há 260 anos, a que inventou a mouraria, aquela onde os romanos construíram um teatro monumental? A dos mortos sobrepostos que ainda conservam os restos sob os escombros da novel civilização cimentada?

Não sei, mas ele lá saberá, porque para os turistas serve sobretudo o estilo de fusão. Para os turistas, Miguel de Vasconcelos suicidou-se, atirando-se da torre mais alta da Sé de Lisboas e nenhum cão faminto lhe estraçalhou a jugular enquanto sacudia a sarna. Por isso, em homenagem, bebo deliberadamente sozinha um vinho branco e como um peixe grelhado, ambos de aviário, enquanto aqui testemunho, em escrita à mão, o fim do estilo dramático e emocional desses tempos da fé inabalável na justiça que haveria de ser feita um dia, próximo, enquanto descanso a alma sobre as ruínas dessa fé, neste primeiro de novembro que finalmente ameaça chuva. Ainda assim, não como tudo o que me pões à frente, vês? Não como, por exemplo, o grão refogado com cogumelos, nem as duas bolas de migas de pimentão, que acompanham o peixe grelhado ao gosto do turista. Não como, mesmo que, desconfiado, me perguntes uásntitgud?, esquecendo-te que eu pedira num português displicente e sardónico, de Lisboeta, ‘um robalo e uma meia de planalto…”

O crepúsculo precoce da hora inventada de inverno desce no frio dos meus ombros, na ponta do meu lápis, em dia rasgado e demasiado próximo, demasiado inútil, que arrasta a nostalgia dessas noites tão longínquas e gordas onde fui tão feliz.

 

Isabel Duarte

 

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