Eu sou judia, eu sou árabe

Eu sou judia, eu sou árabe,

numa faixa estreita sou Gaza.

Vejo o rei nu.

Se não tiveres nada de interessante – ou importante, ou que ajude alguém – para dizer o melhor é ficar calada e ouvir só, ya? Alguém disse isto e o que diz tem imensa verdade. Gostava de obedecer, mas desconsigo.

Estou sempre incomodada com o mundo. Tanto quanto vivo encantada e deslumbrada com a beleza que nele existe. Nestes tempos, não posso ficar calada quando tenho pedacinhos de informação, que colada a outros pedacinhos fazem parte do todo (as gotas de água que juntas são o oceano). Então falo. Escrevo textos longos só lidos por poucos. Os corajosos. Seja. Sou criticada e mesmo assim, nem assim me vejo a calar.

Nos postais que vou escrevendo e deixando neste muro, todos contêm um pouco de História. Nos comentários deixo vídeos que o algoritmo descarta, com informação de gente que sabe História e fala dela. Dói-me constatar que nada muda nos MCS (são as vozes dos donos). Quem lá está ou papagueia a versão de propaganda para ser pago, ou cortam-lhe a voz. Exactamente como na guerra europeia em curso.

Por tudo isso só lá estão as vozes brancas, de um passado absurdo da chamada “civilização ocidental”, que não se coadunam com a geração do presente, em todos os lugares, aquela que está nas ruas a pedir um “Cessar fogo imediato”, acompanhadas por outras gerações que depois do final da II GM conviveram entre religiões e povos.

Com espadas penduradas sim – entre outras a ameaça nuclear, a guerra fria e hoje a estreiteza económica da conversão ao deus dinheiro e lucro. Todos exigem a demissão da Presidente da UE. Todos exigem que os vassalos (de Israel) americanos e britânicos deixem de ser hipócritas. Já todos vimos e percebemos que o rei vai nu.

“Todos os animais são iguais mas há uns mais iguais que outros…” Há uma bombas mais simpáticas e bem direccionadas que outras.

Falo da que me traz aqui. As guerras em curso não começaram em 2023. Começaram após o final da II GM. Ambas. O prenúncio da queda de hegemonias e Impérios.

Toda a vida de há uns três milénios para cá e por gerações, os judeus sentiram medo – debaixo da pele, dentro do peito – de perseguições, só por serem judeus.

Para onde quer que fossem, dormiam com uma mala pronta. Podiam ter de fugir no silêncio da noite.

Tenho antepassados que tiveram de fugir das perseguições na Europa – em Portugal especificamente (os Távoras) – refugiando-se em Cabo-Verde.

Venho de uma linha descendente destes. E não pára por aí, nalgumas pessoas do meu sangue. Sou descendente mas nem imagino o que foi viver assim, com a mala pronta.

Como descendente de gente escravizada, também não imagino o que foi viver como eles viveram.

Muitos judeus fugiram para as ilhas africanas. Uns mudaram para nomes Cristãos ,para não serem descobertos. Outros converteram-se e outros mantiveram-se judeus.

O arquipélago tem na sua génese a história de centenas de judeus em fuga que ali encontraram refúgio entre uma maioria cristã. Ou noutras latitudes de maioria Muçulmana. Misturaram-se e sobreviveram.

Com o passado Português de sete séculos de colonização Árabe, eu tinha de ter também esta ascendência directa (vinda do meu pai) como temos quase todos. Se consultarmos o nosso ADN não refere nenhum elo ligado a uma religião nem a um lugar terreno. Nem a uma escolha de um Deus.

O mundo avança, muda, transforma-se e todos nos adaptamos.

Se assim não fosse, a Idade Média e a Inquisição na Europa – que matou mais judeus, árabes e mulheres acusadas de feitiçaria – ainda reinava.

Hoje convivemos todos pacificamente – Cristãos, Muçulmanos, Judeus as três religiões monoteístas que sempre se odiaram, perseguiram e combateram.

Todas invocaram o que parecia um Deus psicopata que escreve um livro sagrado com verdades e dogmas intocáveis, para toda a eternidade. Dever-nos-ia fazer pensar.

Não são os melhores filósofos, pensadores e professores, os sufis, os rabinos, os padres cristãos, além dos animistas africanos, dos Índios, e dos pagãos europeus? Então…? Não é de onde vimos?

Israelitas e Palestinos (mesmo que sejam duas denominações da História recente, pós Império Otomano) conviviam na terra Palestina (Philistine) em perfeita comunhão, partilhando o território. Como brancos e pretos na África do Sul, na era pós apartheid e colonização, apesar das consequências tremendas para as gerações de hoje e de amanhã.

As gerações que tiveram de ter uma mala pronta para fugir de perseguições, já não existem, ou dormem calmamente.

As de hoje dormem na mesma cama, partilham a mesma casa com árabes e cristãos. Viajam juntas, partilham lenços e celebram-se em conjunto.

Com o final da II GM, Israel, o novo estado, com a ambição de construir o Estado de Sião – cuja data vem de um passado remoto (há muitos textos interessantíssimos por aí, que explicam detalhadamente o assunto) – não se demoveu dessa pretensão, passando a praticar sobre outra vítima a mesma violência que tinha recebido das mão dos nazis alemães, na história recente.

O mundo sabe que vêem de longe como vítimas de ódio e vingança pelas outras religiões (os estados doentios que usavam uma qualquer desculpa, digo eu).

O ódio e a segregação do povo judeu não aconteceu por parte dos Palestinos. Sim o contrário.

Então que razões outras, além da construção do estado de Sião, como visionado num passado muito distante, que exclui povos indígenas, são as que justificam o que está a acontecer hoje?

Lembram-se de outros episódios na História da humanidade que repetem esta ladainha?

Dou um exemplo – quando os Britânicos chegaram à América, em busca de liberdade religiosa, por lá encontraram os Índios…

Com o seu livro sagrado e a pretensão do seu Deus único, de conquistar e fazer terra queimada do que quer que fosse encontrado. Esses (os índios) teriam de ser eliminados ou confinados a uma prisão/reserva.

Em breve a América estará a celebrar o “thanksgiving”. Têm tudo a agradecer ao poder da sua violência das armas e eliminação de quem nada mais queria que viver em paz.

Os índios não se defenderam? Claro que sim.

Eram os “terroristas” do século XVI. Ou seja, os Hamas de ontem.

E se foram sangrentas as guerras no “wild wild west”…

Regressando ao presente, há 70 anos que Israel repete a história de exercer ódio e vingança sem pudor. Recebendo apoio constante do vassalo, ou de quem usa Israel para os seus fins bélicos por todo o Médio-Oriente. Quem tem afinal, depois do final da II GM o maior número de bases militares espalhadas no globo? Quem anda em permanência invadindo e queimando terra, em busca de recursos naturais para acumular as suas riquezas? Os americanos. Desde que – usando a guerra terrorista – se libertou dos colonizadores Britânicos e se tornou independente – há pouco mais de duzentos anos.

Alguém hoje imagina as Cruzadas com a Bíblia debaixo do braço? Alguém imagina o ódio dos Calvinistas aos Pretos, invocando Deus para prosseguir com a segregação?

Ninguém imagina.

Ainda existem perseguições religiosas no mundo árabe, no caso dos estados fundamentalistas que é assunto para outra conversa. Porque o mundo muda, transforma-se e nós humanos nos adaptamos criando novas estruturas, incluindo de pensamento. Por isso agora não venha o estado de dementes colonizadores, vetustos, fascistas e brancos psicopatas dizer que estão a ser atacados. E como foram perseguidos por milénios têm o direito de se defender. Dizem que os “terroristas” são do mal e das trevas, e Deus tem sede de vingança, nas palavras do PM de Israel. Mas será que este homem nos vê a todos como mentecaptos?

No passado também Mandela, Biko, Lumumba, Mondlane e Cabral foram terroristas…

Então eu sou da esquerda que é pró – terrorista. Anti-colonialista. Anti racista.

Os povos aos quais pertenciam estes terroristas foram esmagados por quinhentos anos, vivenciaram as piores experiências por gerações e gerações, tiveram de fugir constantemente das suas casas, sempre a procurarem defender-se, libertar-se, rebelar-se, criar terrorismo contra os decisores, os mandantes, os capatazes, os algozes. Mataram muitos inocentes e muitos culpados.

Com que armas? rockets, paus e pedras, facas e venenos contra a sofisticação de um exército.

Exactamente o que está a fazer há anos o povo indígena da Palestina que ali vive e não tem mais lugar nenhum para onde ir. Porque razão teriam de sair dali para o deserto, ou para outro qualquer lugar? Se vos obrigassem a sair da vossa casa de sempre, invocando uma razão qualquer de um passado remoto, vocês sairiam? Não! respondo eu por vocês. Ir-se-iam defender com paus e sachos.

Faz tanto sentido fazer uma guerra religiosa, matar e aniquilar um povo nos dias de hoje invocando o passado longínquo, como… criem o argumento.

Num novo salto ao passado, imaginem que os povos indígenas de um lugar se constituíam em grupos de defesa pela sua soberania, sobre um território que lhes tinha sido retirado com a força das armas. Imaginem que as suas línguas, comidas, culturas, formas de estar e pensar, religiões eram proibidas. Esperem… isto já aconteceu!

Os Índios de todas as Américas e Ilhas do Pacífico foram dominados pelas armas Europeias. Os Africanos foram dominados pelas armas Europeias. Os Cristãos já foram perseguidos e dominados. Os Árabes já foram perseguidos e dominados. Os judeus, também. São factos que vêm do século XV.

O Hamas respondeu ao que se adivinha ser o fim do povo Palestino na sua casa natural, vinda do regime brutal de apartheid de há setenta anos.

Sem ser pró nem contra o grupo. Apenas olhando friamente os factos. São terroristas muito diferentes dos movimentos de libertação, mas querem um lugar à mesa da sua casa. Com todo o direito.

Se a minha família tivesse sido morta num ataque do grupo de libertação da minha terra, viria do inferno agradecer ao colonizador, não apontaria o dedo aos terroristas. Mas isso sou eu. Ou talvez não. Os judeus de hoje sabem que é assim. Os Palestinos também.

Aqui chegada faço uma declaração de interesses. Não sou paga para não contar as realidades dos dois lados e / ou pintar com as cores dos meus donos, como vejo, leio e ouço por aí, a defesa de um lado sobre outro, e quando chega alguém a mostrar outro lado é acusado de ser “anti-semita”, terrorista, pró isto ou aquilo.

Cada um vê no mundo pelas suas experiências. Eu como tenho esta história, este legado e este adn, vejo um puzzle. Vejo com a esquerda da política, uma lateralidade bem definida há muitos anos. Da esquerda humanista, da equidade, da igualdade de oportunidades.

A esquerda tem a obrigação, sentada em lugares – chave, de desconstruir ideias que não conduzem a humanidade à evolução, já que a direita tem a tendência por “defeito” de ser conservadora. A direita tem por defeito o usufruto de propriedade, status e dinheiro herdado. De onde lhe vêm essas benesses? De um passado colonialista, de privilégios de cor e classe, de dinheiro ganho sob as costas de alguém e terra tirada de alguém.

A minha esquerda é a da liberdade, da igualdade de castas, cores, géneros e religião. Sou de uma geração nascida depois da II GM mas em plena guerra colonial – na terra dos chamados terroristas.

Ouvi a minha família falar com medo de morrerem num ataque. Ouvi-os falar da necessidade de se protegerem das balas. Hoje sei que culpavam o colono. Não os terroristas. A minha terra e a da minha mãe procurava libertar-se do colono, que era o meu pai. Ali numa faixa…Um passado tão complicado e tóxico como aquele que falamos hoje.

Não venho aqui colonizar ninguém. Venho mostrar as peças do puzzle. São os factos de uma História bem documentada. Usando o meu pensamento, naturalmente.

O que tem tudo isto no presente a ver com tudo isto no passado?

Mandela, Biko e Cabral só responderam com guerra e “terrorismo” ao final de 500 anos. Porém, durante 500 anos de colonialismo brutal, de perseguições, de Escravatura, de anulamento de um grupo indígena, sempre com a mala pronta para desaparecer na noite, não se pense que não houve revoltas e matanças contra inocentes (como aconteceu a 7 de Outubro), por parte dos escravizados povos indígenas com as suas terras ocupadas. O que eu estou a dizer não é original, já foi dito e escrito por gente que sabe mais e melhor que eu. Por gente com quem eu aprendo, ouvindo. Ficando calada.

Como um puzzle, junto as peças depois de ouvir as outras versões. Penso nelas e encaixo. Como se estivesse a investigar um crime.

Todas as acções de violência são hoje de um atraso civilizacional inaceitável. Venham de qualquer lado. Com um mas.

-Tanto Israel quanto a Palestina têm o direito de se defender. É o que a Palestina está a fazer ao final de setenta anos de martírio, morte, subjugação e extermínio.

– Quem se julga o estado de Israel, em 2023 para fazer a céu aberto e com carta branca o que tem feito aos Palestinos? Quer esconder as suas próprias falhas (como a de não ter previsto, impedido e prevenido de passar a fronteira aos terroristas com reféns, como foi no ataque de 7 de Outubro?), corrupção, e impulsos de morte, usando o elo mais fraco – os Palestinos?

– Todas as desculpas usando um passado religioso são absurdos inaceitáveis. Sabem-no as novas gerações que hoje não se revêm nas acções do seu Estado judeu de Israel.

Repito factos da história porque julgo a mensagem muito importante.

Porque sou o jovem Palestino, a avó, a mãe grávida, o bebé e a irmã de dois anos que não tem para onde ir e morrem com a explosão de bombas lançadas num ataque aéreo. Vejo no seu olhar escritas mil perguntas, sem perceber porque razão aquele ataque vem de um Deus que não o escolheu.

Porque sou a judia que só tem a “agradecer” ao seu Estado, ter sido raptada e tornada refém. E com o olhar ver a sua família ser barbaramente morta por aqueles que nos últimos anos foram submetidos à barbárie.

Não se justifica o que está a acontecer nas salas de resolução dos altos dignatários de Israel. Nem dignifica os seus mortos vítimas de perseguições. Estes só podem estar muito zangados. Se eu nada tivesse a dizer sobre esta história, talvez estivesse calada. Afinal, sou só uma gota d´água juntando-me a todos os que estão na rua, em casa, na escrita, nas redes a pedir o insano pedido de um “cessar fogo imediato” pela fim das hostilidades e a entregue da Palestina livre da bota persecutória e de terror de um estado que não representa o povo judeu.

Anabela Ferreira

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *