Em Portugal há uma enorme multidão de pessoas que, todos os dias e quase sempre em silêncio, sofre profundamente e vê os seus direitos serem negados, inutilizados e calcados aos pés, mas de que quase ninguém fala.
Refiro-me aos trabalhadores, tanto do sector laboral privado como do público, que sofreram um acidente de trabalho ou contraíram uma doença profissional e ficaram por isso parcial ou mesmo totalmente incapacitados.
É que se o regime legal que lhes é, em abstracto, aplicável, já tem inúmeras deficiências e “buracos” por onde é fácil as responsabilidades se esvaírem impunemente, a realidade prática e quotidiana é ainda pior e mais pesada.
Assim, e antes de mais, convirá recordar que no nosso país, só no sector privado, são declarados (o que aliás é uma coisa bem distinta e de bastante menor dimensão do que verificar todos os que ocorreram) mais de 200 mil acidentes de trabalho por ano. E, de acordo com as estatísticas oficiais, só em 2015 foram 208.457, dos quais 161 foram mortais.
Ora, segundo o estudo “Regresso ao trabalho após acidente: superar obstáculos”[1], 24,3% dos trabalhadores acidentados de todo “não conseguiram fazer valer os seus direitos”, pondo-se deste modo a nu uma bem dramática realidade. Por outro lado, apenas 7,1% teve a adaptação do posto de trabalho e 2,7% teve a adequação do seu horário de trabalho que a lei formal e expressamente prevê e estipula para tais casos.
E se o número de vítimas mortais tem baixado nos últimos anos, tal se deve (e ao contrário do que pretendem fazer crer as entidades oficiais, a começar pela ACT – Autoridade para as condições do trabalho) não a uma efectiva melhoria das condições de segurança e saúde no trabalho (como, aliás, o demonstram os números totais da sinistralidade laboral nos últimos anos, sempre acima dos já referidos 200.000), mas sim ao facto de que as actividades económicas de longe com maior índice de acidentes de trabalho, como sejam a construção civil e as indústrias transformadoras, conheceram neste mesmo período um muito marcado abrandamento.
A isto acrescente-se toda a enorme e obscura realidade do chamado trabalho “informal” ou “não declarado” (que representará cerca de 25% do PIB) e em particular do trabalho escravo ou análogo a ele, onde as leis, entidades e estatísticas oficiais pura e simplesmente não entram, e as mortes e ferimentos graves são, pura e simplesmente, ocultados pois, se fossem conhecidos e notificados, aumentariam ainda mais as já negras estatísticas oficiais.
Mesmo no campo da estrita legalidade, o certo é que, não obstante as belas palavras em contrário, o trabalhador é, ainda hoje, visto fundamentalmente na sua vertente produtiva e não como um ser humano integral, sendo exemplo disso uma TNI – Tabela Nacional de Incapacidades que constitui a base de determinação dos chamados “graus de incapacidade” resultantes de acidente ou doença profissional, mas que está totalmente anacrónica do ponto de vista médico-científico e, por outro lado, que não contempla adequadamente toda uma série de danos graves e desde logo os imateriais ou não patrimoniais.
A Segurança e a Saúde no Trabalho continuam a ser consideradas não um investimento, mas uma despesa a conter e a evitar o mais possível. A Medicina do Trabalho é, de uma forma geral, e tal como recentemente denunciou o próprio presidente da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal, José Manuel Boavida, “uma fraude”, isto porquanto a “grande maioria do sector não tem autonomia em relação à entidade patronal”, ao mesmo tempo que a própria Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho confirma os inúmeros conflitos dos médicos do trabalho com os patrões, uma vez que estes “não gostam de receber uma ficha (de aptidão) com restrições”, sendo muito frequente, sobretudo em relação aos trabalhadores com vínculos mais precários, pressionarem-nos por todas as formas “para que não sigam as recomendações da Medicina do Trabalho”.
Por seu turno, o Estado e os serviços públicos em geral, designadamente os camarários, com raras e honrosas excepcões, não têm nem serviços de Segurança e Saúde no Trabalho, nem Medicina do Trabalho.
Apesar de ter sido entretanto devolvida à ACT a competência fiscalizadora (que, em completa violação de várias convenções da OIT – Organização Internacional do Trabalho, havia sido retirada pelo anterior governo para ser entregue à… Inspecção Geral de Finanças!?) do cumprimento da legislação relativa à Segurança e Saúde no Trabalho nos serviços públicos, a verdade é que tais serviços continuam a não ser devidamente inspecionados, levando assim a que o Estado seja o pior dos exemplos nesta matéria e, conforme a própria declarou, a Provedora de Justiça não pare, nesta matéria, de receber “regularmente queixas de trabalhadores em funções públicas”.
Neste campo dos acidentes e doenças em serviço, por força de uma lei dos tempos da Tróica[2], o regime respectivo foi alterado e passou a suspender, ou seja, a negar o pagamento das prestações por IPP – Incapacidade Permanente Parcial desde que o trabalhador acidentado ou doente mantenha a remuneração correspondente ao exercício da mesma actividade (e passou a descontar o respectivo valor no montante da pensão, quando ele se aposenta), numa inaudita e inaceitável solução legal que, todavia, o Tribunal Constitucional[3]declarou constitucional, negando assim provimento a um pedido de declaração de inconstitucionalidade do próprio Provedor de Justiça da altura, Prof. José Faria e Costa, e não obstante a Constituição[4]consagrar o direito à assistência e à justa reparação de quem seja vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional…
Isto, enquanto a CGA – caixa Geral de Aposentações (que, apoiada em tal entendimento, passou a denegar o pagamento das referidas prestações devidas por acidente em serviço ou doença profissional) vem também sistematicamente esbulhando, como a Associação Nacional dos Deficientes Sinistrados no Trabalho não se tem cansado de denunciar, os outros direitos dos trabalhadores da Administração Pública sinistrados e doentes, designadamente com o sistemático incumprimento dos prazos, o não pagamento dos juros, o não recálculo das prestações aquando da revisão em alta, a não aplicação quer dos factores de correcção quer da própria TNI e, sobretudo, com os resultados das respectivas juntas médicas e a sua não adequada fundamentação.
Entretanto, no sector laboral privado, constatamos uma cada vez mais fraca, senão mesmo de todo inexistente, fiscalização e inspecção, também no campo da Segurança e Saúde no Trabalho. Tal como aliás o afirma, com toda a clareza, o relatório do Comité Europeu dos Direitos Sociais do Conselho da Europa (que avalia a aplicação da Carta Social Europeia), conhecido no início deste ano de 2018. Com efeito, tal relatório assinala que os trabalhadores abrangidos por acções de inspecção na área da saúde ocupacional e da segurança no trabalho caíram, entre 2012 e 2015, 67,3% (de 137.283 para 44.814), enquanto também diminuíram, e muito sensivelmente, as notificações às empresas para tomarem medidas correctivas de problemas (de 18.386 para 12.449) e sobretudo as ordens de suspensão do trabalho em situações de perigo imediato para os trabalhadores (888 para 656). No referido relatório é ainda manifestada a mais que justificada estranheza quanto ao baixo número de doenças profissionais oficialmente registadas (somente 3.659 em 2015), pondo assim a claro um fenómeno, grave, de subnotificação. As conclusões do referido relatório vão assim todas no sentido de que, igualmente quanto à Segurança e Saúde, a ACT “não é um serviço eficiente” e as medidas para reduzir os acidentes são “claramente insuficientes”.
Por outro lado, assiste-se ao livre campear dos grandes interesses das seguradoras, sempre em detrimento dos mais que legítimos direitos dos cidadãos, em geral, e dos trabalhadores acidentados ou doentes, em particular.
Na verdade, desde há pelo menos 28 anos, as mesmas seguradoras têm ilegitimamente embolsado (tal como denunciou recentemente Ana Andrade, ex-directora do departamento jurídico do Centro Hospitalar de Lisboa Central) dezenas de milhões de euros. Isto, simplesmente por (devido à inépcia, ou pior, dos nossos governantes) o Sistema Nacional de Saúde estar indevidamente a pagar comparticipações de medicamentos que afinal deveriam ser suportadas pelas mesmas seguradoras, em virtude de esses medicamentos terem sido prescritos a vítimas de acidentes cuja responsabilidade está, legal ou contratualmente, a cargo das Companhias de Seguros.
Mas como se isso já não fosse um escândalo, todos os dias há trabalhadores acidentados a quem os serviços clínicos das companhias de seguros se recusam, contra lei expressa[5], a fornecer os respectivos exames e relatórios médicos e, pior, a quem dão “altas sem desvalorização”, não obstante as patentes e graves incapacidades de que padecem. Trabalhadores sinistrados esses que se vêm assim obrigados a ir para um processo judicial no qual, depois, e se não houver acordo (e quase nunca há porque a seguradora pretende sempre baixá-lo…) quanto ao grau de incapacidade estabelecido pelo perito do Tribunal, têm de arranjar um perito médico próprio e, se quiserem estar representados, não pelo Ministério Público mas por Advogado, ainda têm de pagar taxas e custas judiciais.
O resultado de tudo isto é que, primeiro, os acidentes ou as doenças profissionais são criminosamente tornados como praticamente “inevitáveis” e uma espécie de “fatalidade” do destino”. E, uma vez ocorridos, não apenas não há reparação adequada da incapacidade daí resultante (até porque, dados os baixos salários e as fórmulas legais de cálculo das pensões, estas são uma autêntica miséria) como também, se não conseguir continuar a trabalhar como dantes, o trabalhador, já de si incapacitado, vai é acabar enxotado como um trapo, forçado a sofrimentos inauditos ou até mesmo despedido.
Aqueles que se perguntam se Portugal é “uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana” (como enfaticamente reza o artº 1º da Constituição), procurem, pois, a resposta junto dos trabalhadores vítimas de acidentes ou de doenças profissionais, ou dos seus familiares, tudo gente que diariamente é forçada a encarar a tragédia de uma vida para sempre destruída.
António Garcia Pereira
[1]Estudo promovido pela Associação Nacional dos Deficientes Sinistrados no Trabalho em parceria com o Instituto de Sociologia e com a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
[2]Lei nº 11/2014, de 6/3, em particular o seu artº 6º.
[3]Acórdão nº 786/2017, de 13/12/2017, aprovado por maioria.
[4]Artº 59º, nº 1, al f).
[5]Artº 36º da Lei nº 98/2009, de 4/9.
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