Trago dois pratos principais para a mesa de jantar. Não são fáceis de confeccionar e estão nos menus de todos os chefs. Somos nós humanos, discutindo a civilização. A evolução. Pratos esses que se misturam porque ambos falam da morte e da vida. De quem somos enquanto ensopamos o pão e quando se acaba o molho.
Temos medo de falar sobre a morte. Porque nos assusta a finitude.
Não faremos mais nenhuma selfie, não teremos mais público, não seremos mais considerados como presença. Acabamos no plano físico. E ninguém quer acabar.
Somos como amebas. Vivemos prisioneiros num mundo egoísta, atraídos pelo que nos oferece prazer onde a vida se encapsula. Fugimos de qualquer situação que ameaça esse estado de coisas. Por isso não queremos morrer. Queremos ser eternos neste prazer de viver.
Também por isso não queremos deixar que o Estado ajude a morrer quem precisa dessa forma final de liberdade. Temos medo de ficar com o peso na consciência. De ajudar quem precisa. Não de matar levianamente.
Chegamos ao Estado. Este define que podemos morrer numa guerra no qual precise dos seus cidadãos para o defender.
O Estado define a prisão perpétua para cidadãos assassinos, o Estado determina abandonar os cidadãos, em nome de interesses obscuros, fazendo com que estes deixem de ter uma vida e uma morte dignas.
Aqui se cruzam os pratos principais. Os fascismos que desumanizam, levaram-nos aos campos de concentração, aos regimes de apartheid e aos genocídios. E precisamos dele para a Eutanásia.
Quando algo ameaça a vida rejeitamos a ameaça, criando uma separação da mesma. Mostramos o nosso lado mais egoísta. Aceitamos a desumanização. O mal instala-se junto de gente banal.
Assim, de forma simples, nasceram regimes violentos.
Que nos arbustos espreitam. Matar não os assusta. Matar faz parte do seu programa. Levar gente banal a entregar à morte e a matar é a prática da filosofia. Ou se quisermos do biopoder/biopolítica como lhe chamou Foucault.
Não me vou preocupar com o passado. Está tudo pensado, escrito e dito. Não aprendemos.
Chegámos de novo aqui, a este lugar presente, de repetição. Preocupa-me o futuro quando leio e percebo contra o outro, globalmente, a indiferença, a ignorância, a maldade, a raiva, o ódio.
A banalidade do mal. Tem décadas de estudo e formulação teórica/filosófica por Hanna Arendt. São as pessoas comuns, banais que praticam o mal e o normalizam.
Hoje, o novo normal é de novo a viragem ao mal.
Claro que todos nós gritamos “chega”, quando estamos ameaçados e encurralados. Deixamos entrar quem diz que nos vai proteger da tempestade.
Já que o Estado abandonou tragicamente as suas competências e desígnios representativos.
Sem milagres nem palavras em código abrimos a caverna e deixamos entrar outros ladrões. Os fajutos que entram estudaram profundamente o comportamento e a psicologia das amebas que somos.
É importante consolidar a visão de que a política é uma forma de guerra.
Os Estados controlam a vida e a morte dos seus cidadãos. Se devem morrer numa guerra, se devem ser remetidos à pobreza, ou a condições de vida precárias, ou numa cama, ao abandono, sem cuidados dignos, ou ainda, sem a possibilidade de terminar com um sofrimento atroz.
A vida de todos, dos que controlam ou dos que são controlados, é precária e temporária por definição.
Então porque razão perdemos tempo com a tentativa de domínio de um sobre o outro?
Porque razão passamos de cidadãos, seres humanos, para inimigos do Estado e uns dos outros?
São as questões de sempre quando cresce a força e o poder da direita fascista, baseada no poder do mais forte sobre o mais frágil, desumanizando-o.
Ou de outra forma, do poder do Estado ao não oferecer condições de vida aos cidadãos que representa, abandonando-os e desumanizando-os.
Servem estas perguntas para o debate sobre a eutanásia – o suicídio assistido, por decisão individual, ou melhor dizendo, a libertação final de um corpo em sofrimento e sem vida, humanizando-o, com o apoio do seu Estado.
Servem também de base para pensar no crescimento dos regimes – muitas vezes mascarados de pró-vida – que definem a morte dos mais fracos e vulneráveis como prioridade como se viu no passado.
No meu caso pessoal, lidando com demências várias e cuidados paliativos, tenho o dever de deixar clara a minha posição sobre a dignidade da vida. Por mim e por quem ajudo a morrer.
A vida, essa que é a melhor experiência que conhecemos como humanos. Enquanto esperamos a morte.
Um dia, talvez me toque a decisão sobre o que fazer com ela, se esta deixar de ser experiência e passar a ser um fardo atroz.
Para mim e por quem na minha tribo terá o fardo de me carregar.
Sim, já decidi sobre vida ou morte.
É a mais pesada decisão da vida. Fica entranhada na pele e no sangue, enquanto durarmos vivos, porque sobre o peso que deixa na alma só poderei escrever depois de morrer.
Garanto também que ninguém quer viver sem dignidade, independência e capacidade cognitiva. Afinal de conta os atributos da vida num ser humano.
Nas demências está provado que tudo o que resta (até certo ponto antes da morte), são os sentimentos e sensações. Os últimos a serem apagados pelo cérebro.
Os cuidados paliativos são (para além de retirar dores com drogas químicas) as manifestações de afecto físico, o amor, a música ou apenas segurar a mão do ser que precisa ser libertado.
Quando a morte se aproxima, se num estado avançado de demência, o ser que um dia foi vida, há muito que deixou aquele corpo.
A morte vem como libertação maior. Acreditem. Não devemos ficar tristes, porque a manifestação da vida foi soberana. Que um dia acaba. Sem piedade.
Se a consciência já não mora naquele corpo, a dor é a única forma de vida, então sejamos caridosos e ajudemos ao final necessário. Isto é eutanasiar com dignidade e por amor.
Resumindo a refeição, alguém que tenha sido abandonado e esquecido e viva na extrema pobreza pode vir a ser salvo e conhecer a dignidade da vida abundante. Ou seja, receber uma oportunidade de se (re)erguer.
Por parte do Estado que o abandonou por biopolítica ou outra forma de negligência. Ou talvez o Estado se sinta menos pesado, deixando-o morrer, por razões biopolíticas, ou de regime onde a morte seja apenas a banalidade do mal.
E, alguém que não quer mais viver indignamente e ficou perdido numa doença incurável, perdido num corpo, preso num limbo entre crucificação, dor e morte, quando só a morte pode ser a salvação, vê-lhe negado o direito humano de morrer.
O Estado então, prefere não se envolver. Por razões que finge serem de ética e moral. Sem esquecer a máscara da religião que levianamente mata sem piedade ou condena a outros infernos.
A vida e a morte estão tão intrinsecamente ligadas tanto quanto os seres humanos estão intrinsecamente ligados.
Deixarmos o ódio, a indiferença e a banalidade do mal se instalarem, conduzindo à morte, ou deixarmos a indiferença e a rejeição, perante alguém que se pretende libertar, porque a morte é a única opção em condições extremas, desrespeitando a liberdade individual, como não sendo nossa responsabilidade como colectivo, não faz de nós seres evoluídos nem civilizados.
Enquanto não morro, deixo o meu contributo, ligado à minha experiência individual, profissional e como membro do colectivo.
Talvez este seja o planeta das experiências transcendentes, de seres com defeito. Vindos à consignação e sem possibilidade de troca por obstrução à evolução.
Anabela Ferreira
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