A Morgadinha da Estefânia fechou. As grades cruzaram-se em losangos e fecharam o estabelecimento para nunca mais. Nos vidros duas folhas nas duas montras dizem o mesmo
“FECHADOS PARA SEMPRE
Quero agradecer a todos que nos visitaram nos últimos 40 anos pela simpatia, amizade e companheirismo…
Muito obrigado, a Gerência.”
As palavras desta triste mensagem não se compreendem bem se não fizermos ângulos para as descobrirmos por detrás das grades. Até o anúncio da despedida precisa de algum amor, de alguma descoberta.
Pomos as mãos em binóculo por cima do ferro frio para espreitar o interior em ruínas; a Morgadinha da Estefânia já não é a Morgadinha da Estefânia – é um vulto de pó, autocolantes, garrafas vazias, bancadas disformes, pedaços de cadeiras e mesas encostados às paredes. Uma máquina de café pinga restos de água e mágoa para o chão e um último torrão esquecido no balcão aromatiza a tristeza. Ao fundo, logo depois daquele arco que anuncia higienes, um lavatório está partido. O seu esqueleto já se esqueceu de sustentar músculos.
Relemos a mensagem
“Quero agradecer a todos que nos visitaram nos últimos 40 anos…”
É tal o desamor vivido que a pessoa que escreveu a mensagem não notou a incoerência: começa por agradecer por si e acaba a falar por todos os que serviram na Morgadinha da Estefânia. Quantos terão sido os patrões, funcionários, empregados, biscates em 4 décadas? 40 anos em Bom-Dia, Boa-Tarde, Boa-Noite, Aqui tem, Com Licença, Aí está o cafezinho, Espero que vos agrade, Quer mais uma garrafinha?, Ponho mais um prato de azeitonas?, Ninguém diz mal deste bolo?
Passaram por ali secretárias, advogados, jogadores de futebol, amantes, doentes com cancro, turistas, crianças a pedir gelados. Entraram por aquela porta, desde 1978, políticos, sem-abrigo, estudantes, músicos, gente com fome, gente com muita sede, pessoas enganadas, alguém que usou a casa-de-banho e não consumiu nada. Tudo a Morgadinha da Estefânia foi recebendo, servindo, cumprindo, agradecendo, dando. Negócios de grandes empresas ali selados, beijos de namorados dados pela primeira vez à saída, houve brigas ali, caíram no chão do estabelecimento 4 ou 5 gotas de sangue num murro dado a preceito após uma discussão acalorada entre rivais (ainda se nota na mármore a memória desse sangue de 1994).
Quantos sonos, quantos sonhos passaram pela Morgadinha da Estefânia? O patrão Júlio (ou José ou Francisco ou Elviro) que abria antes dos outros, cruzando a porta ainda a cidade dormia e nenhum dos clientes imaginava que horas depois ali iria parar? Quem fez daquilo lugar recorrente e quem fez acaso daquilo? Quantos bêbados? Que pessoas frequentaram a Morgadinha e com que problemas, com que alegrias? Alguém de Coimbra (ou de Longos ou de Abrantes ou da Ericeira ou de Vila Nova de Milfontes) que, feliz, bebendo um uísque comemorando o final da licenciatura, deu por telefone as directrizes à família
“Quando chegarem à praça, viram à direita. A meio da rua, vão ver a Morgadinha da Estefânia. É fácil, toldo branco.”
Uma senhora ficava sempre na mesa com vista para fora e o vidro a dar o conforto de estar dentro assistindo ao mundo. A mesma mesa durante 40 anos. Amélia (ou era Amália? Cesaltina? Teresa? Carmo? Inês?) já tinha o conhecimento do espaço, era família. Acompanhava os almoços dos outros: os filhos dos outros, os netos dos outros, os que já nem sabiam de quem eram. A Morgadinha da Estefânia tudo assimilava, esponja da espuma lisboeta.
Nunca entrei na Morgadinha da Estefânia. Mas fiquei sentido quando, a caminho de casa, vi duas folhas brancas nas duas montras a anunciar
“FECHADOS PARA SEMPRE
Quero agradecer a todos que nos visitaram nos últimos 40 anos pela simpatia, amizade e companheirismo…
Muito obrigado, a Gerência.”
Ricardo Silveirinha
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