Feitiços desmascarados

Feitiços (vem da palavra fétiche) desmontados Hoje nas conversas que não acabam nunca entre os meus antepassados pretos e brancos trago um caldo de dendém com feitiços. Sempre com o racismo no tempero. Como é hábito socorro-me das minhas cábulas.

Um dia alguém lançou um feitiço que pegou. O racismo é o feitiço que não quer ser exorcizado.

São os comentários racistas feitos por centenas largas de Portugueses ao retrato de um PSP Português preto, no mesmo dia em que no outro lado do Atlântico – para onde nós Portugueses vendemos o novo produto descoberto no novo continente África – os novos servos, os pretos escravizados.

Ontem foi o dia em que finalmente no último reduto com escravizados no Sul, no Texas, estes conheceram a liberdade, a 19 de Junho de 1865.

Notem que na América do Norte quando acabou por decreto a Escravatura, continuaram as leis de segregação Jim Crow revogadas apenas em 1965.

Portugal, um país dito bom acolhedor de todos os cidadãos do seu antigo Império por 500 anos, de bons costumes, que não é racista, que é bom anfitrião e que não faz nas suas estruturas como Estado, nem discriminação nem separação, que até teve uma ministra preta e tem um Primeiro Ministro Goês, ambos frutos do Império Ultramarino, mas que não tem vozes pretas no Observatório Contra o racismo, e ensina nas escolas, nas disciplinas de História e Geografia, no 5ºano (e de acordo com as metas curriculares) que em África e no Brasil “viviam povos muitos atrasados”, e que “as feitorias Portuguesas foram facilitadas pelo medo ou a fraqueza dos povos locais”, entre outras pérolas do livro escolar “Rumos”.

Ninguém junto destes professores de História que escreveram o livro quer saber da existência de armas, de Bulas Papais a autorizar as invasões e conquistas territoriais, e a apreensão desses povos ditos atrasados, e a consequente transformação em escravos, ou das violações, como quando falam da abençoada miscigenação, como quando falam da chamada pacífica e fácil convivência entre brancos e pretos, dando origem aos mulatos).

Porém, Portugal, segundo a História contada foi imenso, derrotou e levou a melhor sobre povos atrasados com imensa fofura.

Chegamos ao dilema do texto que é o dilema de um preto. Um dilema carregado de xikuembo (ou feitiços).

Um branco pobre tem de matar um leão por dia. Este é o princípio.

Um preto pobre tem de o matar, esfolar, temperar e cozinhar enquanto vive num gueto. No fim ainda vai lavar os pratos e terá de fazer prova de que é caçador.

Se for mulher e preta, ou cigana ou lésbica, ou trans ou qualquer outra letra do alfabeto, o xikuembo piora!

Assim é fácil pedir-lhes para serem aliados. Estão naquele lugar que pode ajudar não é?

Esperem, os pretos já pediram! Disseram-lhes – “as nossas vidas também contam”

E que resposta dão os Estados de brancos? Ora essa…todas as vidas contam.

Pois…

Excepto as dos pretos que até recentemente não contavam.

De Norte a Sul do globo onde os impérios usaram as vidas dos pretos como objectos para uso.

Por isso é que é ainda necessário fazer “parades”, e/ou implorar a criminalização do racismo e do ódio contra pessoas diferentes daquelas que têm obtido todos os privilégios. Porque há quem tenha a memória da Dory com tendência a esquecerem que não lhes cabe a exclusividade dos direitos.

Nesta história de discriminação e segregação começada há seis séculos, não devemos esquecer uns pequenos detalhes:

Os meus antepassados pretos dizem:

– Invadiste-me a casa, apontaste-me armas, roubaste-me para outros lugares porque para ti eu era mercadoria e força de trabalho com o qual ganhaste grandes fortunas, violaste-me, fizéste-me filhos e quando me alforriaste deixaste-me na rua, abandonaste-me sem bilhete de identidade, dinheiro, terra, trabalho remunerado, ainda colocaste uma estátua para homenagear os que começaram esta História infeliz.

Ao preto, pobre, roubado de identidade, língua e terra, fizeste matar um leão, temperá-lo, cozinhá-lo, lavar os pratos e provar que sou um guerreiro sobrevivente. Os meus antepassados brancos fazem-me ligar os pontos:

Quando em 1936 nos Jogos Olímpicos de Berlim, Hitler, da tribuna viu Jesse Owens – neto de gente escravizada no Texas até 1865 – ganhar todos os títulos e medalhas aos arianos puros.

Estes seres inferiores teriam de ser eliminados juntamente com os judeus, ciganos, homossexuais e deficientes. As ameaças aos arianos puros e perfeitos.

Sabemos que o final levou a História a um passo mais além.

A extinção pura de seres humanos.

E eu deixo-vos um apelo – porque todos conhecem a máxima de que a história se repete – recusem-se a pactuar com o que está a acontecer no país.

Não ajudem a banalizar o mal.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *