Gaza e o “direito de defesa” de Israel

Do rio que tudo arrasta 

Se diz que é violento

Mas ninguém diz violentas

As margens que o comprimem

(Bertold Brecht)

É muito difícil analisar e debater a situação actualmente existente em Gaza porque quem discorde das opiniões e versões do pensamento dominante – ditadas pelas centrais de contra-informação do mundo ocidental, com os EUA à cabeça, e servilmente seguidas pela generalidade da imprensa ocidental – é de imediato apelidado de anti-semita e até de cúmplice dos “terroristas do Hamas”, e rapidamente isolado e silenciado.

Mas é essa análise e esse debate que têm mesmo de ser feitos! Porque é possível condenar o acto do Hamas perpetrado contra civis israelitas, mas não esquecer também tudo o que de grave, violento e até criminoso desde há 75 anos, e em particular nos últimos 15 anos, o regime sionista de Israel vem praticando contra o povo palestiniano e, desde dia 7/10, numa escala muito maior ainda.

A História que importa não esquecer

Na sequência dos horrores do holocausto, perpetrado pelo regime nazi contra os judeus, as potências ocidentais fizeram aprovar na ONU, em 1948, pela Resolução n.º 181, a criação do Estado de Israel à custa dos territórios até então e desde há séculos ocupados por outros povos, e em particular pelo povo palestiniano. Essa criação foi assim imposta à custa da atribuição ao Estado de Israel de cerca de 54% do território da Palestina, apesar de os judeus, mesmo depois de um enorme fluxo para aquela região durante e sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, representarem menos de 30% da população total.

Esta “solução” foi logo fortemente contestada  por um conjunto de Estados árabes, que se opuseram duramente a essa forma de criação do Estado de Israel, seguindo-se um conflito militar que terminou com a vitória da parte israelita (fortemente apoiada e armada pelas potências ocidentais), com a consequente e enorme ampliação do seu território e a expulsão forçada de cerca de 750 mil palestinianos, num violentíssimo processo que, significativamente, ficou conhecido por “nakba”, palavra árabe que significa catástrofe.

Ora, de acordo com a própria ONU, calcula-se que hoje em dia pelo menos 5 milhões de palestinianos descendam dessa catástrofe, e aos quais Israel, pela força, não permite o retorno às suas terras primitivas.

A partir daí, e com Israel transformado (com o apoio das potências ocidentais, em particular dos EUA) numa das mais poderosas forças militares do mundo e com armamento, inclusive nuclear, do mais avançado e mortífero que há, todos os conflitos ocorridos envolvendo o regime sionista de Israel e o povo palestiniano (crise do Suez, Guerra dos 6 dias, Guerra de Yom Kippur, Primeira Intifada, Segunda Intifada) sempre se traduziram em milhares de mortos palestinianos (sempre em número muito superior aos mortos israelitas) e em novos e crescentes apossamentos de território por Israel. Chegou-se ao ponto de a área territorial detida ou controlada por Israel hoje em dia ser múltiplas vezes superior à de 1948. 

Entretanto, Israel construiu um gigantesco muro de betão com 700 km de comprimento e 8 metros de altura, com inúmeros postos de controlo e torres de vigia, que atravessa toda a Palestina e que constitui uma claríssima violação do direito do Povo palestiniano a deslocar-se no seu território. O Tribunal Internacional de Justiça declarou esse muro ilegal e a Assembleia Geral da ONU, por uma deliberação com 150 votos a favor e apenas 6 contra, instou Israel a respeitar essa sentença, mas nada se alterou.

A política dos colonatos e o regime de apartheid

É com base na política dos chamados “colonatos” que Israel tem vindo a impor a crescente ocupação, por colonos judeus, dos territórios de que se apropriou desde 1967. Esses colonos – a quem Israel dá “carta branca” para tal – constroem casas, exploram terras e, fortemente armados, tratam os palestinianos como inimigos mortais, perseguindo-nos, agredindo-nos e até assassinando-os, ao mesmo tempo que o ministro da Defesa de Israel se lhes refere como “animais”.

Contra todas as normas de Direito Internacional – de que alguns apenas se recordaram no sábado passado… – e todas (cerca de 180!) as resoluções da ONU, Israel ocupa Gaza, Jerusalém Oriental, a Cisjordânia (onde, em Julho, voltou a invadir o campo de refugiados de Jenin, matando inúmeras pessoas, “terraplanando” as ruas e destruindo 80% das habitações, e onde já tinha assassinado Shireen Abu Akleh, jornalista da emissora Al Jazeera) e os Montes Golã. E desde 1948 que Israel desrespeita a Resolução n.º 194 da Assembleia Geral da ONU, a qual reconhece e declara o direito de retorno de todos os refugiados palestinianos (que são hoje em dia cerca de 6 milhões) às suas terras de origem.

A Palestina é, assim, actualmente, uma gigantesca e brutalizada colónia, onde os ocupantes e colonialistas, cientes do apoio que lhes é dado pelos seus aliados ocidentais, praticam impunemente contra o povo palestiniano a negação do direito de voto, a prisão sem direito a defesa, a tortura, o assassinato, a destruição de culturas, o fecho de fronteiras, o ataque a locais de culto (como al-Aqsa) e a privação das mais elementares necessidades humanas, bem como uma discriminação e segregação raciais sistémicas, tudo para oprimir e liquidar as populações palestinianas. 

Os palestinianos são desde há muito mantidos por Israel – conforme sublinham múltiplos observadores internacionais, obviamente não ouvidos nem citados nas nossas televisões… – num regime de verdadeiro apartheid, com condições absolutamente desumanas: negação de direitos civis e políticos; dificuldades propositadamente criadas no acesso a alimentos, água, medicamentos e energia eléctrica; contínuas, frequentes e provocatórias “operações de controle”; violências desmesuradas; prisões ilegais, tortura e execuções sumárias. 

É, pois, um absurdo – totalmente infundado, mas não ideologicamente inocente – esquecer-se e esconder-se, a propósito do que Israel faz na Palestina, a palavra “Apartheid”. Aliás, já em Fevereiro de 2022 a Amnistia Internacional passou a usar o termo “apartheid” para designar a actuação do Estado de Israel nos territórios palestinianos por ele ocupados. Elaborou mesmo um extenso (280 páginas), impressionante e muito pormenorizado relatório que remeteu ao Tribunal Penal Internacional. “Apartheid” é também o termo usado pela organização internacional Human Rights Watch e até por organizações israelitas de defesa dos direitos humanos, como B’Tselem e Yesh Din, para rotular a actuação de Israel para com o povo palestiniano. Como absurdo e inaceitável é apelidar-se de terroristas acções como as do Hamas do passado dia 7 de Outubro, mas já não os bombardeamentos indiscriminados de campos de refugiados, de hospitais e ambulâncias, de escolas, bem como das áreas para onde as populações foram avisadas ou empurradas para se deslocarem.

O discurso de ódio

A sempre pretendida identificação de uma dada organização (neste caso, o Hamas) com todo um povo (como o palestiniano) ou até com toda uma parte do mundo (como “os árabes” ou os “muçulmanos”) é por completo abusiva, mas não é inocente, pois visa justificar ideológica e propagandisticamente os discursos de ódio, as perseguições mais violentas e os ataques maciços a esses povos e a essas comunidades.

O “conflito” Israel-Palestina

Procurar definir a situação existente na Palestina simplesmente como um “conflito” ou até como uma “guerra”, não apenas escamoteia a sua real origem como tende a criar a ideia, falsíssima, de um pretenso equilíbrio ou equivalência entre as respectivas partes. Assim, Israel não está em “conflito” com a Palestina ou com o Hamas, pois é – e, aliás, assume-se orgulhosamente como tal – uma poderosíssima força de ocupação colonial, em flagrante violação do Direito Internacional e das Resoluções da ONU. Tem, aliás, cerca de 170.000 militares no activo, cerca de 500.000 reservistas, mais de 600 aviões-caça, 300 lança-rockets, entre 100 a 200 ogivas nucleares (o que não parece preocupar nenhum “especialista” ocidental…), 2200 tanques e 5 submarinos capazes de transportar mísseis nucleares.

É, assim, dramaticamente evidente a desproporção de meios! Como também a desproporção do número de vítimas. Segundo os dados das Nações Unidas (“United Nations Office for the Coordination of Humanitarians Affairs), entre Janeiro de 2008 e Setembro de 2023 morreram 308 israelitas e 6.407 palestinianos (quase 21 vezes mais) e ficaram feridos 6.307 israelitas e 152.560 palestinianos (24 vezes mais!).

Dois pesos e duas medidas

O ataque do Hamas a jovens num festival de música é um acto de terror, mas também um acto desesperado, em que a violência é usada indiscriminadamente contra, não o “inimigo”, mas civis inocentes e vulneráveis. Mas a actuação de Israel que já está hoje a acontecer não é o exercer de um “direito de defesa”. É, pura e simplesmente, um massacre e um genocídio, levado a cabo por um governo de extrema-direita como é o do Sr. Netanyahu.

É isso que significa cortar intencionalmente o acesso a água, electricidade e bens alimentares a dois milhões de pessoas, acossadas e desesperadas, bem como bombardear hospitais e ambulâncias, matar 700 crianças apenas numa semana e até impedir a entrada dos camiões com ajuda humanitária, que se acumulam na fronteira. Isso significa confundirem-se propositadamente as populações civis palestinianas, especialmente mulheres e crianças (estas representam quase metade da população), com os atacantes do Hamas e, sob essa capa, justificar-se toda a sorte de barbaridades.

E é precisamente aqui que a manipulação e contra-informação, e a hipócrita duplicidade de critérios e de valores mostra afinal todo o seu esplendor.

Os líderes europeus – com a insuportável Madame Ursula von der Leyen à cabeça – usam à exaustão o termo “terroristas” para referenciarem o Hamas e até todo o povo palestiniano, mas logo se esquecem desse termo quando se trata do massacre em curso na Faixa de Gaza. A matança – quer ela seja imediata, por força das bombas, quer seja aos poucos, pela fome, pela sede, pela doença e pela falta de assistência médica – de civis, assim como o bombardeio de instalações, equipamentos e veículos de socorro constituem autênticos crimes de guerra, puníveis pelas mesmas normas de Direito Internacional que a esmagadora maioria dos nossos dirigentes, dos nossos jornalistas e dos nossos comentadores tanto gostam de invocar e de citar quando falam dos ataques do Hamas ou até da resistência palestiniana. E tais violações deveriam mesmo levar os seus responsáveis e apoiantes perante o Tribunal Penal Internacional.

Mas, claro, os dois pesos e duas medidas aqui se impõem em toda a linha e aquilo que é bom para aplicar ao Hamas já não é para aplicar aos governantes e militares israelitas!…

“… as margens que o comprimem”

E enquanto Israel se prepara para tentar abafar em sangue a revolta de décadas de um povo inteiro perseguido, violentado e humilhado, e quando os dirigentes políticos ocidentais legitimam o massacre sob o argumento de que “Israel tem direito a defender-se”, impõe-se, e mais que nunca, que haja vozes – como aquelas que, apesar de tudo, se têm ouvido não apenas no Oriente, mas também nas ruas de muitas cidades da Europa – que não desistam de criticar a hipocrisia, que denunciem os crimes de guerra disfarçados de “operações de defesa” do ocupante e colonizador, e que não abdiquem de defender o sagrado direito à liberdade e à auto-determinação de todos os povos, e muito em particular do Povo da Palestina.

Porque as prisões, as torturas, os tiros, as bombas, podem matar muita gente, mas – coisa que os algozes de todos os tempos nunca conseguiram nem conseguirão compreender… – não podem matar as ideias e os sentimentos de um Povo inteiro!

António Garcia Pereira

Um comentário a “Gaza e o “direito de defesa” de Israel”

  1. João José Lemos Vieira custodio diz:

    Qual seria a sugestão do preclaro jornalista. Mandar os judeus de volta para a Alemanha, Polônia e afins e pedir desculpa ao Hamas??? E já que falou em séculos, séculos antes os judeus viviam na área e até fundaram Jerusalém Se me lembro dos meus tempos de escola Jesus Cristo era Judeu e vivia na área

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