Haverá uma idade para nomes que não estes
haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras (…)”
(excerto do poema “A Antonin Artaud”, de Mário Cesariny de Vasconcelos)
A constatação subconsciente de que a mulher existe por um qualquer favor impagável do homem, aquele que lhe cedeu generosamente uma costela para que ela pudesse existir, constitui a marca de água da vida de todas as mulheres.
Até Amal Alamuddin, depois de adotar o apelido do marido, passou automaticamente do estatuto geralmente conhecido de respeitada advogada dos direitos humanos, para o de mulher de George Clooney, o homem que lhe promoveu a ascensão social cor-de-rosa, em detrimento da sua marcante identidade de mulher guerreira.
O ato que alterou a identidade de Alamuddin, era incontestável há poucos anos. À mulher era criada a noção de necessidade de depender de um homem, sobretudo socialmente. Pobre da mulher “encalhada”, que secaria, histérica, no seu canto cinzento. Por isso, naturalmente, qualquer mulher adotava com orgulho e ânsia o apelido do marido, alterando assim a sua identidade quando casada e inserindo-se numa nova família, também por via da adoção do seu novo apelido de linhagem. Surpreendentemente, é esta, ainda hoje, uma das poucas realidades sociais institucionalizadas que permanece quase intocável no subconsciente coletivo e no sentido mais incontornável da estratificação da família. A tal ponto que, quando um homem é confrontado com a hipótese de adotar o apelido da mulher, hoje já possível, de ordinário recusa, aparentemente porque desconfia que o que ela quer é “usar as calças lá em casa”, isto é, inverter o poder dos laços e, por conseguinte, fazer esboroar o cimento. Mas, na verdade, o homem recusa porque tem a certeza de que o cimento já não é o que era e há que salvá-lo da hecatombe. Portanto, aos homens não se concede socialmente a veleidade de mudarem de identidade, mesmo que o artigo 1677 nº. 1 do Código Civil atualmente refira que “cada um dos cônjuges conserva os seus próprios apelidos, mas pode acrescentar-lhes apelidos do outro até ao máximo de dois”.
O apelido de família, com origem no apelido de um ancestral masculino, configura a estruturação da linhagem da descendência e a identificação de nova pertença, sobretudo da mulher, a partir do momento em que as sociedades mais complexas necessitaram de exercer efetivo controle sobre a célula básica da organização social. No entanto, a precaridade do estatuto feminino tem sido tão acentuada ao longo da história do mundo, que tempos houve em que a recém nascida, mulher, nem sequer recebia o apelido do pai, aquando do seu registo de nascimento – e isto quando era registada – já na vigência do Código do Registo Civil de 1932, não sendo, nessa altura, também registável a adoção dos apelidos do marido por parte da mulher. Esta mulher era a “Maria”, perdia-se nas brumas da sua condição menoríssima e, quando casava, apenas tinha direito a uma “formação precária do nome”. A partir de 1959, a mulher casada passou já a poder usar o apelido do marido, registável como um privilégio, assim sendo encarado e levando à recomposição do nome da mulher, a partir daí inalterável. Tal como a sua despersonalização.
Há países em que se exige que um nome de mulher seja doce e fácil de pronunciar, por isso se chama ovelha – Rachel – às mulheres. Noutros lugares, o nome vai mudando à medida que a personalidade se altera, pela idade, por exemplo, como no caso dos Makondes Moçambicanos, nos quais a marca evolutiva do estatuto social da mulher, é assumidamente determinada pela adoção do nome do marido. Assim era também, menos assumidamente, connosco, que víamos diluído o nosso ser numa máscara de santa ou pela incorporação no outro, a quem socialmente pertencíamos.
Maria de la O Lajárraga García, professora e escritora, disse um dia: “Que homens e mulheres levemos uma vida serena, fundada na mútua tolerância que cabe entre iguais, não na rancorosa e degradante submissão do mais fraco, pela egoísta tirania do mais forte”. Esta mulher, espanhola de Granada, nunca ousou, no entanto, escrever e publicar sem se ocultar atrás do nome e apelidos do marido. Conhecida como uma das principais promotoras do movimento feminista de Espanha, viveu ao mesmo tempo em rebeldia e na sombra, por causa da certeza de que ninguém veria com bons olhos, no dealbar do século XX, o seu pendor literário. Por isso se ocultou sob o nome do homem com quem casara, Gregorio Martínez Sierra, adotando, para poder criar – direi talvez, ser livre – uma objetiva submissão social e intelectual de que apenas se afastou com a viuvez, quando nem sequer, afinal, ao casar, tomara o nome do marido.
Hoje ser-lhe-ia, no entanto, inútil tentar fazer-se passar por um terceiro, perante o controle social cerrado a que estaria sujeita. Na verdade, a identificação essencial da mulher, mesmo que adote apelidos despersonificadores, como a do homem, é dada hoje através de um número, na melhor da hipóteses, o direi – o NIF – e, na pior das hipóteses, o cartão de cidadão, não pelo número que dele consta, mas por um chip nele aposto, que, como um ADN imediatamente descodificável por máquinas ao alcance de um mero balcão público, mostra a nossa identificação secundária – pelo nome – mas sobretudo quem somos na nossa vida de todos os dias e, em breve, todas as doenças de que padecemos. Dele também consta a nossa assinatura eletrónica que nunca levou o impulso da nossa mão, as manias do nosso ser recôndito, enquanto nos afasta da humanidade das coisas que um apelido e uma assinatura ainda significam.
Havíamos de ler mais Cesariny, não?
Isabel Duarte
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