Comecei a beber gin ao mesmo tempo que comecei a ler Mário-Henrique Leiria. Minto: os livros vieram primeiro, o gin depois. Completavam-se. O meu Pai, que me mostrou o gin e o Mário-Henrique Leiria, lia o gin e bebia os livros. Eu segui-lhe as bebedeileituras. Andávamos ali pelos anos 90 e as pessoas geralmente não conheciam nem os livros nem o gin – os primeiros ignoravam (tinham imagens desconfortáveis na capa); o segundo desprezavam – «isto sabe a flores, Ricardo». Eu não percebia esta associação entre cheiro e sabor a flores porque as únicas que tinha comido eram umas que estavam na escadaria entre a escola primária e a minha casa. Umas laranja-rosa, lindas, com um tubinho no meio que sabia a mel e nós sorvíamos. Uma dia, com o meu amigo João Mestre, exagerámos no mel e ficámos os dois de cama uma semana com dores de barriga inacreditáveis e perdendo ensinamentos fundamentais para a vida como o conhecimento dos rios na Guiné ou a linha ferroviária moçambicana.
Depois veio a moda do gin; nunca chegou a moda do Mário-Henrique Leiria. Começaram a meter legumes e frutas no gin; sementes, coisas estranhas. Eu bebia sempre o meu gin com gelo, limão (às vezes lima, para impressionar) e água tónica. Como sou bronco, benfiquista e orgulhoso, gozei com aquilo. Na verdade, do que eu não gostava era daquele volte-face do mundo: antes cheirava e sabia a flores, ninguém bebia, e agora, só porque estava na moda, até o gajo que passou a faculdade a dissertar sobre as vantagens da sobriedade, pidesco-beatificamente olhando de soslaio para as monstruosas bezanas com que nos alimentávamos, bebia aquela merda e perguntava: «não pões tomates-cherry no teu gin?».
Somos possessivos com os nossos gostos. Por mim, mostrávamos só a uma comunidade restrita de pessoas que amamos os nossos gostos e criávamos uma patente que toda a restante humanidade estivesse impedida de conhecer; sobretudo de provar. Era só o que faltava que aparecesse aquele cromo do liceu, que antes só ouvia Bon Jovi, a falar-nos que descobriu o Harvest, do Neil Young. Com folhas de manjericão em cima.
O gin nos anos 90 era bom, pá. Grandes mocas. Mas andava tudo a beber Licor Beirão, Safari e Pisang Ambon. E a vomitar Gold Strike. O gin agora continua bom. Há óptimas marcas, variedades mil, garrafas giras, inovadoras («lentamente destilado»), misturadas entre o álcool e a horta do terraço que funcionam. Mas obriguem os neo-ginistas a comprar os livros do Mário-Henrique Leiria. Acompanha melhor que sementes de cardamomo.
Ricardo Silveirinha
conheci o Mário-Henrique Leiria mais cedo, aí por 72,73…. mas o gin foi mesmo nos anos 80. e sinto a mesma tristeza por ver o escritor tão pouco «consumido» pelos portugueses.