O direito de defesa é sagrado num país que se diz um Estado de Direito.
O segredo de justiça é excepcional, pois como regra, o processo penal é público. Existirá se o MP entender que os interesses da investigação o justificam, e o Juiz de instrução validar esse entendimento.
Estão vinculados ao segredo de justiça todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, a qualquer titulo, tenham tomado contacto com o processo ou tido conhecimento dos seus elementos.
Nesta medida, num processo sujeito a segredo de justiça, os investigadores sabem de todas as diligências que foram feitas, de todos os documentos reunidos, de todos os depoimentos ou interrogatórios realizados e de todas as escutas efectuadas. Já os arguidos e seus advogados têm apenas acesso aqueles elementos que a investigação e o Juiz de instrução lhes facultarem, nomeadamente no 1º interrogatório e para efeito de aplicação de medidas de coacção.
Esta é a tensão que importa registar: se, por um lado, o arguido tem o direito de se defender – direito garantido constitucionalmente – por outro, terá de o fazer nos termos definidos no CPP e atentas as circunstâncias algo limitadoras do segredo de justiça a que está sujeito, pois é óbvio que o direito de defesa não é completo sem se saber o que consta do processo.
Registadas as balizas do equilíbrio legislativo que se pretende entre o direito de defesa do arguido e a necessidade do segredo de justiça na fase de investigação, façamos um exercício do “vamos a um supor“.
− Suponhamos que existia um processo em segredo de justiça iniciado em Julho de 2013 de que falavam os jornais, em particular a partir do verão de 2014;
− Suponhamos que para essa investigação e na sequência, concerteza, de promoção do MP, emitiu o Juiz de instrução 3 mandados de detenção fora de flagrante delito para serem usados pelos OPC nos dias seguintes à sua emissão;
− Suponhamos mais um pouco: que os OPC, em vez de fazerem uso dos mandados que deveriam entregar aos visados, no momento em que os privaram da sua liberdade não o fizeram, pois nessa altura teriam também de os constituir arguidos, ficando então evidente o direito a assistência de um defensor em todos os actos do processo e comunicado aos mesmos o direito a fazer a regulamentar chamada para um advogado;
− Suponhamos agora que os cidadãos chegam ao aeroporto num voo proveniente de Paris pelas 18h, que são presos sem mais, sem que lhe seja entregue um mandado de detenção, que lhe são retirados os telemóveis das mãos para que não possam fazer qualquer contacto, que são levados sob forte escolta (com mais de 15 elementos) para a Alfândega de Lisboa, onde são revistados, e apreendidos todos os documentos que transportavam consigo, sem que igualmente houvesse um mandado para o efeito. Que de seguida são conduzidos às viaturas que tinham no parque do aeroporto, as quais são revistadas, e apreendidos todos os documentos, telemóveis, e computadores que aí se encontravam, sem que houvesse qualquer mandado;
− Suponhamos que posteriormente, sempre sob forte escolta policial, são os arguidos levados para o local do seu trabalho onde já decorriam buscas com cerca de 30 OPC;
− Suponhamos ainda que, nesse local onde chegaram os arguidos se encontrava já o “Juiz das Liberdades e Garantias” e o MP, representando ele mesmo a legalidade e a sua execução;
− Suponhamos agora, que por não ter sido entregue o mandado de detenção nem feita a constituição de arguido, nem garantida a presença do advogado, as buscas que continuaram na casa de um dos putativos detidos são complementadas com um “interrogatório” de várias horas ao seu cônjuge;
− Suponhamos ainda que uma das vítimas do sequestro ocorrido no dia 20 de Novembro de 2014 (no âmbito deste exercício do “vamos a um supor”) era advogado, e que a busca autorizada era igualmente para o seu gabinete de advogado;
− Suponhamos que o mesmo, em vez de assistir à busca que decorria no seu gabinete foi mantido preso na sala de reuniões das instalações buscadas;
− Suponhamos agora que, movidos pelo poder desmedido e adrenalina circulante (galvanizada pelo número de OPC intervenientes – mais de 30 – pela presença de um Juiz de instrução e de um alto Procurador da República), pelos 22h30 “agarram”, literalmente, no advogado, o levam para a sua própria casa e aí fazem busca não autorizada, apreendem documentação vária na presença da mulher, do filho de 5 anos e do bebé com 2 meses, que assistem horrorizados à violência com que despejam gavetas e circulam em passo militar pela casa;
− Suponhamos agora que os autos de busca, nomeadamente ao escritório do advogado, mas não só, são falsos. Que em vez de os mesmos atestarem com verdade onde e quando foram apreendidos os documentos, telefones, dinheiro e computadores, referem falsamente que foram apreendidos, apenas e só, no sítio onde as buscas estavam autorizadas;
– Suponhamos ainda, malevolamente, porque tal situação, claro, não seria possível num país como Portugal, os arguidos – presos, interrogados sem apoio de um advogado, sujeitos a revista ilegal, a buscas ilegais nas suas casas e nos seus carros – são afinal notificados dos mandados de detenção e constituídos arguidos pelas 3h da manhã, quando tudo termina, buscas incluídas;
– Suponhamos que os arguidos só têm acesso ao advogado no dia seguinte, pelas 11h da manhã, sendo de seguida encaminhados para os calabouços do TCIC, e que só voltam a ter acesso ao advogado (apesar deste também se encontrar no mesmo edifício, mas num piso menos subterrâneo…) pelas 18h do dia 21 de Novembro de 2014, altura em que lhes é fornecida a imputação de factos nos termos do art.143º do CPP;
− Suponhamos que, para discutir a mesma, foi dada ao advogado 1h30, a distribuir pelos dois clientes que patrocinava;
− Suponhamos agora coisas descabidas: suponhamos que os arguidos, durante os 5 dias que duraram as diligências de 1º interrogatório para aplicação de medidas de coacção, não tiveram sequer direito a tomar banho, a mudar de roupa, a apresentar-se condignamente perante o Juiz que os vai interrogar;
− Suponhamos que é o advogado quem, diariamente, e torpedeando a ordem expressa dada à PSP e ao estabelecimento prisional junto da PJ, leva aos seus clientes roupa interior e camisas lavadas que os arguidos trocam à pressa e quando autorizados pelos elementos policiais na casa de banho do TCIC;
− Suponhamos ainda que, no próprio dia em que é entregue aos arguidos a imputação de factos, urna súmula perfeita da mesma aparece no “Sol on-line”;
− Suponhamos mais: que interessava a uma particular investigação instrumentalizar a comunicação social, usando como guardas avançados o jornal Sol e o Correio da Manhã no sentido de conferir um mandato directo do povo aos juízes, garantindo uma “legitimidade” de actuação e uma garantia de bastarem as suspeições onde falham os factos:
− Suponhamos então que, dia após dia, os arguidos assistem, estarrecidos, à mais pérfida violação do segredo de justiça. E que tomam conhecimento através dos jornais de novos factos, com os quais não foram confrontados nos seus interrogatórios, castrando-se assim o seu direito a defesa;
− Suponhamos ainda que um dos arguidos acabou por ficar em prisão preventiva sob pretexto de existir perigo de fuga, porquanto aquele era detentor de meios financeiros que lhe permitiriam refazer a vida em qualquer parte do mundo, e perigo de perturbação do inquérito, porquanto ainda decorriam as diligências de cooperação com instituições bancárias na Suíça, podendo a liberdade plena fazer perigar as mesmas:
− Suponhamos no entanto que logo a seguir o próprio Juiz de instrução faz cessar o primeiro fundamento “congelando” todas as contas do arguido, e que as ditas relações com a Banca Suíça já existem desde 1 de Novembro de 2013, não havendo possibilidade do arguido as fazer “perigar”;
− Suponhamos finalmente que, agora por decisão e práctica da investigação, os principais factos e suposições do processo se discutem na praça pública, dia após dia, jornal após jornal, apenas com a versão da Acusação;
− Suponhamos que o arguido, que não descansou e não descansa de fazer a sua defesa, sabe agora que foram utilizados meios de prova proibidos e dadas informações falsas no âmbito de cartas rogatórias. E ainda que, logo no início do processo, foram apresentadas as mesmas conclusões que viriam a ser repetidas, nos seus precisos termos, para efeito de aplicação das medidas de coacção aos arguidos, 1 ano e 2 meses mais tarde.
Artigo publicado originalment no Boletim da Ordem dos Advogados e transcrito pelo Leituras
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