Mesmo aqueles que não consideram, como eu entendo, que a Justiça e os Tribunais são um dos principais elementos integrantes do aparelho do Estado e que este é um instrumento de dominação de uma classe por outra, terão, todavia, de reconhecer que a Justiça suscita questões cívicas e políticas essenciais que não podem mais ser ignoradas, desvalorizadas ou adiadas como até aqui.
Na verdade, os Tribunais são um dos quatro órgãos de soberania do Estado português(1) e, assim, eles exercem, sempre em nome do Povo, poderes soberanos de grande importância e relevo social, pois podem condenar um cidadão a 25 anos de cadeia (se o julgarem culpado de um crime de homicídio doloso), privá-lo do seu meio de sustento (se declararem lícito o despedimento de que ele foi alvo) ou até do seu tecto (se julgarem procedente o despejo contra ele intentado).
Porém, enquanto os outros órgãos de soberana têm legitimidade democrática electiva (directa, por sufrágio universal, secreto e periódico no caso do Presidente da República(2) e da Assembleia da República(3) e indirecta, no caso do Governo, por emergir do Parlamento(4)), os Tribunais não a têm.
Por isso, a questão da legitimação democrática dos Tribunais é uma questão que não só é muito relevante, como não pode mais ser ignorada. Numa sociedade que se pretende democrática não pode haver nem poderes incontroláveis e/ou incontrolados, nem titulares de poderes públicos, e designadamente de órgãos de soberania, irresponsáveis perante o Povo em nome do qual exercem os poderes soberanos de que estão investidos.
A legitimidade democrática dos Tribunais, e muito em particular dos juízes – que, recorde-se, em parte nenhuma da Constituição são definidos como os titulares, muito menos únicos, do órgão de soberania “Tribunais”… – tem assim de assentar num conjunto de princípios a que o exercício da acção jurisdicional se encontra necessariamente vinculado, e também na responsabilização (aquilo que os anglo-saxónicos designam de “accountability”) cívica e política dos seus titulares perante o Povo, ou seja, e desde logo, perante os seus órgãos representativos, maxime a Assembleia da República, bem como ainda na intervenção/participação por parte dos cidadãos na formação e na avaliação dos juízes e magistrados do Ministério Público.
E não vale a pena estarmos a tentar fugir às questões, designadamente através da repetição do chavão, mil vezes ouvido, mas realmente nada significando, de que “os Tribunais têm a sua legitimação democrática na Constituição e na lei”.
Hoje em dia, em Portugal – definido na Constituição como “uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular”(5) e como “um Estado de Direito democrático baseado na soberania popular (…) e no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos”(6) –, o Poder Judicial não responde perante ninguém e, enquanto os restantes órgãos são responsáveis politicamente, têm de prestar contas do que fazem ou não fazem, chegando, no limite, a poderem ser destituídos dos cargos se o não fizerem, ao Poder Judicial nada é exigido neste campo e nem sequer um simples relatório anual sobre o estado da Justiça, as medidas adoptadas e o seu resultado é apresentado ao Parlamento, e menos ainda discutido por este.
Assim, se o Governo não cumpre com o seu Programa, para além da censura pública acerca da sua conduta, ele poderá ser criticado nos debates quinzenais no Parlamento e poderá mesmo ser objecto de uma moção de censura ou de um acto de demissão por parte do Presidente da República(7) que pode igualmente dissolver o Parlamento e convocar novas eleições(8).
Por outro lado, órgãos tão importantes para a Democracia como o Provedor de Justiça ou a Entidade Reguladora para a Comunicação Social estão sujeitos, nos termos dos respectivos estatutos(9), a esse quadro de fiscalização e controle político, mas quanto à Justiça nem vê-lo, e qualquer referência a tal questão suscita de imediato um absoluto alarido invocando que, com a simples abordagem deste tema, se estaria era a atacar a independência dos juízes.
Por outro lado, e quanto à escola de formação dos mesmos juízes – o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) –, não obstante as gongóricas declarações no sentido de que os respectivos programas seriam públicos e os professores contratados por concursos públicos, a verdade é que os cidadãos rigorosamente nada conhecem e muito menos alguma coisa controlam do que é ensinado aos juízes e procuradores por detrás dos altos muros dessa Escola. Sendo que só a formação inicial é vinculativa e a obrigatória só o é para os juízes da 1ª instância (os restantes são todos sábios…), nunca se ouviu uma palavra de auto-crítica por parte dos responsáveis do CEJ acerca da sua formação e de como, com ela ou apesar dela, foi possível serem produzidas decisões e práticas como as dos “Netos de Moura” da nossa praça.
Do que se sabe e se conhece do CEJ, aquilo que ali se encontra e se ministra é uma formação essencialmente técnico-formal, com pouca experiência de vida e pouquíssima ou nenhuma formação e preparação cívicas, tudo isto aliado a uma cultura de pretensa superioridade moral e de quase total (ou mesmo total) infalibilidade. E é claro que este modelo de formação não pode conduzir a outra coisa que não seja a abusos.
Ora, como estamos então em matéria dos princípios em que, no mínimo, deverá fundar-se a legitimidade democrática não electiva dos Tribunais?
Pode, antes de mais, dizer-se que esses princípios são fundamentalmente os seguintes:
1 – O princípio da fundamentação de todas as decisões judiciais, e muito em particular daquelas que afectem direitos e interesses legítimos dos cidadãos, princípio esse que, todavia, em nome da simplificação e sobretudo da celeridade ou velocidade, tem vindo a ser cada vez mais aligeirado, a ponto de um “acórdão” dum Tribunal superior poder hoje consistir numa decisão sumária de um só juiz e até numa mera remissão para uma decisão anterior com remessa de cópia da mesma(10).
2 – O princípio da transparência, que assenta fundamentalmente em dois pilares: publicidade das audiências e natureza pública de todas as decisões. A verdade, porém, é que, em nome da exiguidade de instalações, já salas de audiência menores que um gabinete foram usadas para diligências às quais obviamente ninguém do público pode assistir. Pior do que isso, o facto de as partes levarem consigo, para assistirem à diligência ou ao julgamento, familiares, amigos ou conhecidos é, para uma certa cultura judiciária, um sinal, inaceitável, de desconfiança ou até de desaforo para com Sua Excelência o Senhor Juiz. Finalmente, apenas algumas decisões da 2ª ou da 3ª instância são publicadas, com critérios que não se conhecem e que suscitam as maiores reservas. Por exemplo, o texto completo do triste e famigerado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que falava na “coutada do macho ibérico” para tratar com alguma benevolência dois sequestradores e violadores(11) foi, sem qualquer explicação, eliminado do banco de dados dgsi.Net e a dita expressão foi cirurgicamente retirada da respectiva súmula).
3 – O princípio do duplo grau de jurisdição (ou seja, da possibilidade de recurso para uma instância superior) de forma a prevenir e a evitar abusos que sempre surgirão mais facilmente se quem decide sabe que ninguém lhe pode “ir à mão” e revogar a decisão injusta e ilegal que porventura tenha tomado. Ora, a verdade é que, uma vez mais, e sempre sob a invocação da celeridade processual, tem aumentado o número de decisões que não são susceptíveis de recurso, sendo que essa natureza irrecorrível de algumas delas, como é o caso da impossibilidade de recurso da decisão que indeferiu todas as diligências de prova requeridas em sede de abertura de instrução, transformou essa fase do processo penal numa simples formalidade, para não dizer numa autêntica farsa.
4 – O princípio do juiz natural, que determina que a atribuição de um dado processo a um determinado juiz deve decorrer de uma lei anterior, geral e abstracta, que defina os critérios dessa competência e que, se houver mais do que um juiz, essa atribuição deve então ser feita por um método aleatório (sorteio) de forma a evitar que, por interferências de fora ou até de dentro do próprio sistema judicial, algum interesse obscuro possa decidir que uma determinada questão seja decidida por aquele juiz em concreto, e não por outro. Todavia, todos sabemos que, durante anos a fio, tivemos o Ministério Público a poder contornar esse princípio e a atribuir ao juiz da sua confiança e simpatia, Carlos Alexandre, a instrução dos processos que lhe interessavam, para tanto lhe bastando imputar ao arguido, mesmo que sem qualquer fundamento, a prática de um dos crimes cuja investigação é da competência do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) – o vulgarmente denominado “Diapão” – e cuja instrução é, assim e necessariamente, do Tribunal Central de Instrução Criminal, onde nessa altura só existia um único juiz, precisamente o mesmo Carlos Alexandre.
Já agora, e como se tudo isto já não bastasse, a tão proclamada independência dos juízes – que, como princípio geral, está constitucionalmente consagrada no artº 203º da Constituição – passou a ser quotidianamente beliscada e até ameaçada desde logo pela figura do juiz presidente que, pasme-se, pode, violando o princípio do juiz natural, propor ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) a afectação de processos a um juiz diferente do juiz titular natural(12), além de fixar objectivos de natureza processual(13)e ainda “promover medidas” relativamente aos processos que estão pendentes por tempo considerado excessivo(14). Mas sobretudo pelo próprio CSM, que é o principal responsável pela criação de um determinado “modelo” de juiz, a saber, o juiz “bem-comportado”, ou seja, que não reclama, que não levanta problemas ao Presidente da Comarca e ao Conselho e que simultaneamente “avia” muitos processos, mesmo que muitos deles mal e sem qualquer realização de verdadeira Justiça.
Esta permanente pressão para erigir a capacidade de diminuir e de abater a pendência processual e para “não ter processos em cima da secretária” (expressão tristemente célebre de um dos inspectores do CEJ) desprivilegia, em termos de classificação de serviço, e prejudica, do ponto de vista da progressão na carreira, irremediavelmente os juízes que, por razões de cansaço, de doença ou até – pasme-se! – do exercício do direito constitucional à maternidade ou à paternidade, ou ainda pela simples preocupação de adequada e maturada ponderação de questões a decidir, não têm afinal tanta capacidade de “avianço” quanto a dos seus colegas que assim não actuam.
Ora, os cidadãos em geral, mas sobretudo os Advogados, sabem bem onde conduz esta lógica de tudo sacrificar às preocupações da celeridade e do “avianço estatístico”: a busca à autrance de questões prévias ou formais que permitam “arrumar” o processo sem se chegar à questão de fundo, a não realização oficiosa (por iniciativa do próprio Tribunal) de quaisquer diligências tendentes à descoberta da verdade dos factos – há décadas que eu não conheço uma única diligência dessas ordenada por um juiz!… – e ao indeferimento de todas as que sejam requeridas pelas partes, sempre com o fundamento do pretenso não interesse ou irrelevância das mesmas (mas com o real objectivo de não prejudicar a agenda do Tribunal).
Em linha recta com tudo isto chega-se então a práticas que seriam verdadeiramente patéticas e até anedóticas não fosse a gravidade intrínseca das mesmas, tais como a malversação de uma disposição da lei(15) como justificação para que se oiçam simultaneamente (“ao molhe”!?) três ou quatro testemunhas de uma só vez, o desprezo acintoso por meios de prova como as declarações requeridas e prestadas pela própria parte, a pressão contínua sobre os Advogados para que “passem adiante” nas inquirições, e mais grave do que isso, a tentativa de imposição aos mesmos Advogados que não façam perguntas para além do teor literal dos artigos das respectivas pelas processuais. E isto até na Justiça laboral onde, por força do artº 72º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho, incumbe ao juiz não só o direito como o dever de considerar factos que não foram formalmente alegados pelas partes nas suas peças processuais, mas que se vêm a apurar e esclarecer na audiência de julgamento e que se revelam relevantes para a boa decisão da causa.
E, qual cimento unificador de todas estas práticas, uma postura frequentemente arrogante, acintosa, mal-educada até, assente no pressuposto de que “Sua Excelência” (o juiz) está acima dos outros intervenientes nas diligências, maxime os seus concidadãos e quem os representa, ou seja, os advogados.
E o debate sério e aberto sobre estas práticas e aquilo que elas revelam é sistematicamente torpedeado e impedido mediante uma conhecida técnica que sempre redunda em nada afinal se discutir: se se referem, de forma geral, os casos ocorridos, logo se lança a insinuação de que não passarão de acusações infundadas e se faz o desafio para que eles sejam concretizados, mas assim que se procede a essa concretização, logo se invoca: “eu não posso discutir casos concretos”…
Se as decisões da 1ª instância não são publicadas e das da 2ª instância e do Supremo Tribunal de Justiça só são aquelas que interessam a alguém cujos critérios não se conhecem… se o juiz avaliado com a classificação de “muito bom” é aquele que aviou “n” decisões numa semana, mesmo que grande parte ou até a totalidade delas não contenha um pingo de Justiça material… se qualquer crítica ao conteúdo destas decisões e ao significado destas posturas é de imediato interpretada, no mínimo, como uma violação do sacrossanto dever de urbanidade e correcção (como se estas não tivessem de ser recíprocas…) e no máximo um atentado à independência do Poder Judicial… O resultado só pode ser aquele que, hoje, infelizmente, se conhece cada vez mais: a multiplicação dos arbítrios e das injustiças, as quais, como é óbvio, atingem sempre as partes mais fracas, mais vulneráveis e com menos posses.
Não espanta, por isso, de todo, que o mais recente estudo científico sobre os preconceitos dos juízes (neste caso particular, os dos Tribunais de Família e Menores), ou seja, a tese de doutoramento da Doutora Catarina Ribeiro, Psicóloga do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e Professora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica do Porto, venha confirmar amplamente aquilo que, infelizmente, (só) alguns conhecem e muito poucos ousam denunciar.
Com efeito, tal tese, intitulada “Decisão judicial em casos de abuso sexual de crianças no contexto familiar” e aprovada com distinção pela Universidade do Porto, põe a nu a arrogante prosápia de diversos dos juízes inquiridos que vão mesmo ao ponto de considerar que “o juiz é o perito dos peritos” e que ser juiz “é um bocadinho como ser Cristo na Terra”.
Do alto da sua arrogância intelectual e desprezando os conhecimentos e a experiência de todos os outros que trabalham ou conhecem este tipo de processos, podem ler-se na tese supra referida verdadeiras atrocidades proferidas por juízes. Um chega mesmo a dizer que, para acreditar na veracidade do sofrimento das crianças vítimas de abuso, “tenho de ver chorar a criança à minha frente”; outro, que, se pudesse, se recusava a pedir perícias, pois que: “eu não preciso de peritos, porque aquilo que eles fazem eu também consigo fazer”, e porque: “eu mal vejo uma criança a entrar percebo o que ela está a sentir porque sou muito intuitiva”, tendendo assim a desvalorizar o depoimento dos menores e o que eles dizem e sentem, por exemplo, num caso de violência doméstica, tudo isto porque “as crianças vêm muitos filmes e têm muitas fantasias”.
Nada disto, infelizmente, me surpreende, mas o certo é que, afinal, nos reconduz à questão inicialmente colocada que é, verdadeiramente, a seguinte: quem fiscaliza e controla, do ponto de vista do Estado de Direito democrático e do respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como do escrutínio a que todos os poderes e todos os titulares de todos os poderes têm necessariamente de estar sujeitos, aqueles que, em nome do Povo, e muitas vezes contra o próprio Povo, exercem tais poderes todos os dias nos nossos Tribunais?
António Garcia Pereira
- (1) Estabelece o artº 110º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (integrado na Parte III da Lei Fundamental, intitulada “Organização do poder político”) que: “são órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais.”.
- (2) Nos termos do artº 121º, nº 1, da Constituição.
- (3) De harmonia com o estabelecido nos artºs 113º, nº 1 e 149º, nº 1, da Constituição.
- (4) Conforme estipula o artº 187º, nº 1 da Constituição: “O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais”, estabelecendo depois o nº 2 do mesmo artigo que “Os restantes membros do Governo são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro”.
- (5) Cf. artº 1º da Constituição.
- (6) Cf. artº 2º da Constituição.
- (7) Cf. artºs 133º, al. g) e 195º, nº 2, ambos da Constituição.
- (8) Cf. artº 133º, al. e) e 172º, ambos da Constituição.
- (9) Cf. artº 23º do Estatuto do Provedor de Justiça e 37º do Estatuto da ERC.
- (10) Nos termos, respectivamente, dos artºs 656º e 663º, nº 5 do Código de Processo Civil.
- (11) Acórdão unânime do Supremo Tribunal de Justiça de 18/10/89, relatado pelo Conselheiro Vasco Tinoco, proferido no Processo nº 040268, e publicado na íntegra – e aí não pôde ser truncado ou apagado… – no Boletim do Ministério da Justiça, nº 390, ano 1989, página 160 e seguintes. Sugiro também a consulta do artigo “Silêncios de chumbo”, da minha autoria, e que pode ser lido aqui: https://www.noticiasonline.eu/silencios-de-chumbo/.
- (12) Ao abrigo da alínea f) do nº 4 do artº 94º da chamada LOSJ – Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013 de 26/8).
- (13) Cf. artº 91º da LOSJ.
- (14) Cf. artº 94º, nº 4, al. c) da citada LOSJ.
- (15) É o caso do artº 604º, nº 8 do Código de Processo Civil que permite que o juiz (apenas) quando considere conveniente para a descoberta da verdade – como sucede, por exemplo, com testemunhas presenciais de um acidente de viação arroladas pelo autor e pelo réu – possa determinar a audição, em simultâneo, sobre determinados factos, de testemunhas de ambas as partes, e que é assim transformado num meio habilidoso de ouvir “em coro” várias testemunhas da mesma parte…
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