Justiça, a eterna filha de um deus menor

Com a presente campanha eleitoral a chegar ao fim, patente se torna que dela ficaram de fora diversas e importantes matérias, que nem as forças políticas concorrentes nem a comunicação social que entrevistou os candidatos e moderou os debates quiseram abordar, não obstante a sua indiscutível relevância para o futuro do país.

Falo, nomeadamente, da Educação, da Cultura, do Mar, das Pescas, da política de Transportes e em particular do nosso isolamento ferroviário. Falo, também, da perda da nossa soberania nacional, da destruição do essencial dos sectores primário (Agricultura) e secundário (Indústria) da nossa economia e do nosso crescente endividamento, decorrentes do processo de integração europeia e da pertença ao euro – tema este completamente abandonado, inclusive pelos partidos que se dizem marxistas ou simplesmente de esquerda. E falo, claro está, do “eterno” e sempre secundarizado tema da Justiça!

Na verdade, e tal como infelizmente vai sendo habitual, para além das usuais atoardas de Ventura do Chega defendendo, por exemplo, o regresso da prisão perpétua, abolida há 138 anos (e da significativa e preocupante hesitação de Rui Rio sobre essa mesma matéria), certo é que toda a presente campanha eleitoral e todas as forças políticas concorrentes passaram por completo ao lado das grandes questões da Justiça, sem que estas lhes merecessem um lugar de destaque nos respectivos programas.

Sendo a Justiça um direito fundamental de todos e de cada um dos cidadãos e padecendo ela de tantos e tão graves problemas – como nós, infelizmente, bem conhecemos! – tal circunstância não deixa de constituir (mais) uma lastimável demostração da tremenda vacuidade em que, de uma forma geral, se transformaram as campanhas eleitorais entre nós. Ou seja, impôs-se em absoluto o completo predomínio da lógica do soundbite e da “boca”, do ataque pessoal, da graçola, do superficial, impedindo-se assim o debate sério e aprofundado de ideias e de propostas em que deveriam consistir tais campanhas[1].

Os partidos parlamentares, como aqueles que pretendem ser governo, fogem como o diabo da cruz dessa mesma discussão acerca do que é verdadeiramente hoje a Justiça em Portugal e do que há a fazer com ela. E o suposto debate dos restantes partidos (aliás, profundamente discriminatório pois assenta na lógica de partida de que há partidos e forças políticas de primeira e de segunda), realizado na RTP, para além de um confrangedor deserto de ideias em geral, passou também por completo ao lado das questões da Justiça, como, aliás, também de outros problemas essenciais.

Por exemplo, a orientação política do combate à pandemia podia e devia ter sido ali denunciada, discutida e criticada, não com os “argumentos” ridículos ali apresentados, mas com factos e números indesmentíveis: restrições e suspensões de direitos fundamentais feitas pelo governo fora do estado de emergência e por meras resoluções de Conselho de Ministros, política de criação de pânico nas populações através da manipulação dos números (por exemplo, fazendo constar das estatísticas dos óbitos atribuídos à covid-19 todos os casos de pacientes internados por outras patologias, mas que, em algum momento após o internamento, testaram positivo), escamotear quer dos números da letalidade em anos anteriores à covid-19, em particular nesta altura do ano, quer dos da “mortalidade a mais” conhecida nestes últimos dois últimos anos e precisamente não atribuível à covid-19, etc.

A opacidade do que é decidido e feito na nossa sociedade e o “Estado do segredo” em que vivemos tornam-se particularmente evidentes e mereciam ter sido debatidos a sério, sobretudo quando informações vitais e absolutamente normais em Democracia, tais como a dos patrocínios, donativos e honorários atribuídos pelas farmacêuticas produtoras das vacinas para a covid-19 a instituições e associações públicas (como a própria Ordem dos Médicos) e a alguns dos principais “criadores de opinião” (como a do Dr. Filipe Froes), têm de ser arrancadas “a ferros” e quase sempre apenas após a intervenção da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) ou até dos Tribunais[2].

E, enfim, em tal debate dos partidos não parlamentares, bem como, aliás, em todos os outros, também não houve uma só voz que fosse capaz de, com clareza e com provas, denunciar o inquisitorial processo de silenciamento das vozes incómodas ou críticas para com a atuação política face à pandemia ou sob o pretexto da mesma, nomeadamente de reputados cientistas, médicos, professores universitários, do Prof. Jorge Torgal ao internista Dr. António Ferreira, por exemplo, passando pelo anestesiologista Dr. Pedro Girão e pela Dra. Cristina Camilo, Presidente da Associação de Cuidados Intensivos Pediátricos.

Com excepção do candidato da Aliança e sobretudo da candidata do Movimento Alternativa Socialista (MAS), que, concorde-se ou não com as suas ideias e propostas, foram os únicos que as souberam defender e apresentar, esse debate caracterizou-se mesmo por uma confrangedora indigência e a esmagadora maioria dos respectivos intervenientes prestou um péssimo serviço à Democracia.

Regressando à Justiça – instituição de que a generalidade dos políticos parece ter um inexplicado e inexplicável (ou talvez não…) temor reverencial – com a completa e já referida ausência da sua submissão a um debate democrático e consciencioso e com a mesma a continuar a ser publicamente “representada” pelos dirigentes corporativos de juízes e procuradores, vamos, pois, permanecer com uma das Justiças mais caras das União Europeia[3], que claramente impede – e este é o ponto essencial – o cidadão comum de fazer valer os direitos que ainda lhe estão formalmente atribuídos com um regime de custas que descaradamente favorece os mais ricos e poderosos e que entorpece e até inutiliza o acesso à Justiça dos mais pobres, sem que nenhuma das forças políticas candidatas proponha e lute a sério por um geral e efectivo abaixamento (para metade ou mesmo para um terço) dessas mesmas custas judiciais.

Vamos também continuar a ter uma Justiça Administrativa e Fiscal que, seja pelo tempo que demora a proferir decisões, seja pelo tipo de concepções nela dominantes (ao estilo da presunção de legalidade dos actos da Administração, isto é, esta, normalmente e à partida, tem sempre razão…), consubstancia um autêntico cemitério das legítimas pretensões dos cidadãos e das suas organizações[4].

E vamos, sobretudo, continuar a ter uma Justiça Penal que não sabe ou não pode investigar a sério. Uma justiça que, em nome de uma pretensa autonomia ou independência, não presta contas a ninguém daquilo que faz ou deixa de fazer. Uma justiça que se habituou a uma prática de condenações prévias (leia-se, nos jornais e televisões) em vez de condenações no foro próprio, ou seja, nos Tribunais. Uma justiça em que paulatinamente se construiu um autêntico “Estado dentro do Estado” (o Ministério Público) que se viciou, é o termo exacto, em não ter que prestar contas ou assumir as responsabilidades por aquilo que acusou e por aquilo que deixou de acusar, pelos prazos que, como sucede em grande número de casos, não cumpriu, beneficiando continuamente de uma lógica de contínua e repetida (e nunca devidamente investigada, muito menos punida) violação do segredo de justiça, permitindo-lhe assim ganhar “fora de campo”, ou seja, na imprensa, aquilo que, pelos vistos, não logrou ganhar em campo, isto é, em julgamento.

E contra a gritaria corporativa que logo, e como sempre, se ergue, clamando que aquilo que se pretende seria “atacar a independência dos juízes”, “destruir a autonomia do Ministério Público” e “controlar politicamente a Justiça”, há que ter a coragem de denunciar que aquilo que nós temos hoje no nosso país, em matéria de Justiça Penal, é uma arrepiante ausência de efectivo controlo (democrático, pela sociedade, e jurisdicional, por um juiz) sobre o que, sobretudo na fase de inquérito, se passa no processo penal. 

Fase de inquérito essa em que normalmente é escondido a sete chaves tudo o que possa não interessar à tese da acusação, mas, em contrapartida, tudo aquilo que possa relevar para a posição e para as teses da mesma acusação (ou simplesmente para enfraquecer quem é arguido) é cirurgicamente passado para certos órgãos da comunicação social – quase sempre os mesmos e através das mesmas pessoas, que precisamente gostam de invocar o “segredo das fontes” –, produzindo deste modo a antecipada e pública condenação dos respectivos arguidos, que são logo, invariavelmente, e sem apelo nem agravo, condenados na praça pública. Ou então queimando quem até nem seja arguido (muito menos acusado e menos ainda condenado), mas que por qualquer motivo se queira descredibilizar e destruir[5].

É claro que esta lógica inquisitorial e policiesca é sempre convenientemente disfarçada e embalada sob as vestes da glorificação daqueles que assim actuam e/ou dos que tal caucionam, apresentando-os como super-campeões da luta contra a criminalidade. É óbvio que há juízes e procuradores sérios, honestos e trabalhadores, mas a questão é a do sistema de Justiça que temos e da lógica que nele impera.

E tudo isto se vai passando com a generalidade da classe política dominante e dos seus representantes a, precisamente por não actuarem com base em princípios, encherem-se de gáudio e de reles satisfação quando estas práticas atingem adversários políticos e a protestarem apenas quando é alguém das suas próprias hostes que sofre os efeitos desta forma de actuação. Também não actuam nem criticam esta situação pelo temor da hipótese de revelação – sob o estafado argumento do “interesse público” e através da tal comunicação social que para tanto dispõe de “fontes próximas dos processos”, ou seja, de informadores de serviço… – de dados que, não tendo qualquer relevância criminal, assumem, todavia, a natureza de pública exposição de factos íntimos ou segredos da vida pessoal, familiar, social, sexual ou até simplesmente embaraçosos, num uso de (in)disfarçada chantagem absolutamente indigno e intolerável[6].

A mais recente e fragorosa derrocada – e já são três consecutivas em pouco tempo! – de uma relampejante e aos quatro cantos anunciada acusação do Ministério Público, com a absolvição do Presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira (no chamado “Processo Selminho”) e a completamente destemperada reacção, assumida em plena sala de audiências, do representante do Ministério Público, apenas vieram confirmar aquilo em que de facto está hoje transformada em Portugal a Justiça Penal. 

E o receio que todos os partidos políticos, em particular os parlamentares, evidenciam perante este estado de coisas e a sua pusilânime postura de recusa em enfrentar os reais problemas da Justiça, mostra bem que, também aqui, têm que ser os cidadãos a impor o caminho correcto a seguir.

De que forma? 

– Exigindo e garantindo um amplo debate sério e consciencioso, por toda a sociedade, acerca da Justiça, não aceitando que os seus principais actores silenciem todas as vozes que lhes sejam inconvenientes;

– Exigindo e impondo que os principais responsáveis tenham de prestar regularmente contas à sociedade e que assumam e suportem as consequências de um balanço negativo da sua própria actividade;

– Implementando medidas, como as da sujeição de todos os actos do Ministério Público ao controle de legalidade por parte de um verdadeiro juiz de instrução; 

– Respeitando escrupulosamente o princípio do juiz natural[7];

– Garantindo a atribuição da investigação dos casos de violação do segredo de justiça, não ao Ministério Público, mas a uma estrutura própria (por exemplo, da Polícia Judiciária) e presidida por uma entidade independente das corporações judiciárias (por exemplo, o Provedor de Justiça);

– Fazendo a reflexão, sem quaisquer tabus, acerca do que se ensina e de quem ensina na escola de formação dos magistrados, o Centro de Estudos Judiciários (CEJ); 

– Alterando a composição e, sobretudo, as atribuições, as competências e o sistema de fiscalização da legalidade das decisões dos Conselhos Superiores da Magistratura (CSM) e do Ministério Público (CSMP) em matéria de avaliação e decisões disciplinares dos juízes e magistrados, da definição das regras dos respectivos concursos e da “gestão” dos Tribunais.

Termino a perguntar, mesmo adivinhando as respostas: porque não foi feito este debate durante esta campanha, porque é que os jornalistas não colocaram estas questões ou porque é que os candidatos não as impuseram e a quem é que verdadeiramente interessa impedir que este debate, uma vez mais, tenha lugar?

António Garcia Pereira


[1] Chegou a ser absolutamente exasperante a preocupação nas perguntas sobre a chamada questão da “governabilidade”, como se fosse isso, e não as propostas para os problemas do País, que importasse conhecer…

[2] Tudo isto de par com a campanha difamatória e a sanha persecutória contra aqueles – a começar por jornalistas – que se recusaram “ir na corrente” e pretendem investigar a sério, tal como tem sucedido com o jornalista Pedro Almeida Vieira e o seu jornal online Página Um.

[3] Recorde-se que as custas judiciais em Portugal são superiores em 7 pontos à média europeia!

[4] Há processos a correr nos Tribunais Administrativos e Fiscais há mais de 20 anos!

[5] É, aliás, precisamente isso que está actualmente a suceder com o sucessivo e cirúrgico libertar para um determinado jornal e televisão (sempre os mesmos…) de escutas efectuadas a dirigentes do Benfica e não só, no âmbito do processo conhecido como “cartão vermelho”, e que representa um perverso e absolutamente indigno jogo assente na ideia (ilegal, inconstitucional e anti-democrática) do “posso não saber se irei conseguir acusar-te ou não, mas entretanto já te condenei, destrui e executei na praça pública”.

[6] A que mãos vão parar e para que servem, afinal, as escutas – mesmo que sem qualquer utilidade para a investigação em curso e que por isso deviam ser logo destruídas – realizadas em certo tipo de processos?

[7] Impedindo que forças e poderes externos à Justiça ou até internos a esta possam escolher o juiz que mais lhes convém para dirigir e decidir certos processos.

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