Há cerca de uma semana atrás, Catarina Vasco Pires, Juíza do Tribunal Central de Instrução Criminal, pregou mais um prego no caixão da nossa Justiça. Fê-lo ao determinar, sob o absolutamente inacreditável “argumento” da “situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades invocadas pelo arguido”, a desobrigação do neonazi Mario Machado de cumprir “enquanto estiver ausente no estrangeiro, designadamente naquele país” a medida de coacção que lhe fora fixada de apresentações quinzenais às autoridades.
Isto, não obstante Mário Machado já ter publicamente anunciado, nomeadamente na sua conta de Telegram, que iria para a Ucrânia combater as tropas russas no âmbito da “Operação 1143”. E tudo isto também apesar de, no próprio requerimento, Mário Machado ter invocado explicitamente que já mobilizara “um grupo de pessoas de diversas nacionalidades” para “ir para a Ucrânia prestar ajuda humanitária e, se necessário, combater ao lado das tropas ucranianas” (sic, sendo nosso o realce).
Quem é Mário Machado e quais são os seus crimes?
Mário Machado – que marchou para a Ucrânia a 18/03 – é um neonazi assumido, fundador dos movimentos neonazis “Frente Nacional” e “Nova Ordem Social”, e que tem estado ligado a organizações de extrema direita como o “Movimento de Acção Nacional”, “Irmandade Ariana” e “Portugal Hammerskins”. Orgulhosamente, fez a saudação nazi à saída do Tribunal, aquando da sua última detenção por posse de arma proibida. Além disto, tem no seu cadastro condenações a pesadas penas de prisão: uma de 4 anos e 3 meses pelo envolvimento no cobarde assassinato do jovem cabo-verdiano Alcindo Monteiro na noite de 10/6/1995, em Lisboa, e outra, de 10 anos, pelo cúmulo jurídico das condenações em 3 processos distintos, pelos crimes de difamação, posse de arma de fogo ilegal, discriminação racial, ofensa à integridade física qualificada, ameaça e coacção sobre uma procuradora da República.
No processo onde lhe foram fixadas as apresentações quinzenais à autoridade policial da área de residência, já se tinham aliás verificado várias singularidades. Desde logo, o processo foi iniciado com a suspeita do Ministério Público de que Mário Machado seria o autor de uma mensagem publicada em redes sociais como o Twitter e – imagine-se! – o VK, uma espécie de Facebook russo, com sede em S. Petersburgo, onde, com a publicação da fotografia de um homem preto apontado como sendo o presumível autor do homicídio de um jovem à porta da discoteca Lick, em Vilamoura, em Agosto de 2019, apelava claramente ao linchamento, com estes significativos dizeres: “Procura-se assassino! Não o entreguem às autoridades, se souberem do seu paradeiro enviem-nos uma mensagem privada.”
Já o processo se arrastava há mais de dois anos quando finalmente, em Novembro de 2021, Mário Machado foi alvo de buscas residenciais, no âmbito das quais foram então descobertas as armas proibidas de cuja posse está agora acusado. Havendo sido conduzido ao Juiz de instrução, este terá tido o extraordinário entendimento de que com aqueles dizeres não havia indícios suficientes de incitamento ao ódio e à violência (ficando apenas de pé o crime de posse de arma proibida). O Ministério Público terá recorrido deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas, segundo foi entretanto noticiado, o referido recurso só terá chegado à 2.ª instância agora, quase em Abril!
O primarismo anti-cívico de decisões judiciais
Ora, é precisamente num processo como este, com um arguido com todos estes antecedentes (designadamente de condenações) que a Justiça Criminal portuguesa, no fundo, acha e decide que, se é para matar russos, e enquanto estiver no estrangeiro (pelos vistos por 1 mês, por 1 ou até por 10 anos, ou até para sempre), pode ficar dispensado da (já de si levíssima) medida de coação que lhe fora fixada!
Para além do profundo – e, já agora, também ilegal e inconstitucional – primarismo e reaccionarismo ideológico que semelhante decisão espelha, será que ela surgiu por acaso ou constitui um mero e pontual incidente de uma Justiça que até está a funcionar em geral bem? Não, de todo!
É importante compreender que o proferimento de um despacho destes antes se deve à conjugação de dois factores, graves e preocupantes, sobretudo num Estado que se pretende “de Direito Democrático” e “baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais” e que deveria encher de vergonha – acaso ainda lhes restasse alguma… – os primeiros e principais responsáveis pela Justiça, a começar por aqueles a quem compete quer a formação (o Centro de Estudos Judiciários – CEJ), quer a avaliação e a disciplina (o Conselho Superior da Magistratura – CSM) dos autores de barbaridades como estas.
A lógica do “Se não és por mim, és contra mim!” e a manipulação informativa
Por um lado, e este é o primeiro factor, vivemos hoje uma era – iniciada com a pandemia da Covid-19 e agora levada ainda mais ao extremo com a guerra na Ucrânia – de imposição do politicamente correcto e do pensamento único, bem como do maniqueísmo total em que não há princípios e em que (ao velho estilo salazarista do “se não és por mim, és contra mim!”), “bons” são os do “nosso lado”, ou seja, os que aceitam e cultivam as teses e a (des)informação veiculada pela NATO e pelos Estados Unidos, e irremediavelmente “maus”, “russistas”, “putinistas”, “cúmplices de crimes de guerra”, “traidores”, etc., etc., etc., todos os outros, ou seja, aqueles que simplesmente divergem das opiniões dominantes ou que apenas se preocupam em procurar ter uma posição objectiva e não manipulada sobre os factos.
A absolutamente sórdida campanha de calúnias e ataques pessoais, movida em especial contra os generais Agostinho Costa e Raúl Cunha, pelo “crime” de procurarem fazer análises fundamentadas em factos e intelectualmente sérias acerca do que realmente se passa no terreno da guerra é um desses absolutamente lastimáveis exemplos. Outro é o da xenófoba e mais do que primária “campanha anti-russo” só pela sua nacionalidade, que está em curso lá fora, mas também já neste pretenso jardim à beira-mar plantado, e que passa pela censura de filmes, obras literárias e musicais, e até pelo impedimento da actuação de artistas e desportistas.
Entre nós, e para além da histeria dos ataques contra os “divergentes”, como, por exemplo, os que se limitam a criticar a manipulação informativa ou a chamar a atenção para as graves responsabilidades na eclosão da guerra daqueles que se mantêm habilidosamente fora da mesma (ao mesmo tempo que nela continuamente despejam mais achas para a fogueira, como os EUA e o seu braço armado, a NATO) ou a evidenciar a chocante diferença de critérios relativamente a outras vítimas de guerras imperialistas (como os povos da ex-Jugoslávia, da Palestina, do Iraque ou da Somália), também começámos a ver filmes excluídos de certames (como o Fantasporto) e jovens estudantes a serem instados a abandonar a Universidade (como sucedeu em Évora), unicamente por terem a nacionalidade russa.
A despudorada manipulação informativa
A mais despudorada manipulação informativa – que só dá a conhecer a versão de um dos lados – mostra bem a sua face com o suposto episódio dos treze “últimos resistentes ucranianos” da ilha de Zmiinii, no Mar Negro, que teriam respondido “vão-se f…!” aos militares russos que os instavam a render-se e teriam sido, por isso, brutalmente massacrados pelas tropas invasoras, havendo o próprio presidente da Ucrânia chegado a anunciar condecorações póstumas aos ditos resistentes.
E, claro, a Comunicação Social portuguesa em geral (CNN Portugal, Público, Expresso, Sábado, Visão, Observador, etc.) logo tratou de noticiar massivamente esse alegado massacre. Só que… soube-se alguns dias depois que essa notícia era falsa e que os ditos soldados ucranianos estavam afinal bem vivos! E qual foi então o reconhecimento que a mesma Comunicação Social portuguesa – que, mais uma vez, não tinha feito qualquer verificação dos factos, tendo-se antes limitado a reproduzir acriticamente o que lhe chegava, assim manipulando e enganando grosseiramente os seus leitores e espectadores – fez dessa sua mistificação? Nada! Nem a mais leve autocrítica!
O Público teve o desplante de apresentar como uma mera actualização a correcção do que inveridicamente publicara e a SIC, através do seu sacrossanto “Polígrafo”, reconheceu que a notícia era falsa, mas logo atribuiu a respectiva responsabilidade às redes sociais e não à própria Comunicação Social!?
Uma vez mais, se os fins justificam os meios, se tudo é permitido e se é para defender e exaltar os “bons” (confundindo aqui o povo ucraniano com o seu governo, com o seu Presidente e com os seus apoiantes, a começar pelos neonazis do Regimento Azov, actualmente atrás de cidadãos e de infraestruturas civis na cidade de Mariupol) contra os “maus” (identificando aqui, tão propositada quanto abusivamente, o ditador e imperialista Putin e o seu governo com os filhos do povo russo, inclusive os jovens integrando as tropas invasoras que são mandados morrer), então tudo é legítimo, inclusive a ignomínia de pontapear na cabeça e até à morte um dos “outros” que está prostrado no solo e incapaz de se defender, como ocorreu com o agente policial assassinado esta semana.
E se assim é, nenhum mal afinal faz e até de todo se justifica que se dispense um retinto neonazi, já criminalmente condenado e com novos processos às costas, de cumprir com as benevolentes medidas de coacção que lhe tinham sido fixadas e que se lhe permita ausentar-se livremente do país sem qualquer limite temporal, para tanto bastando que anuncie e invoque que vai combater as tropas russas…
A falta de controlo democrático sobre a Justiça
Outro factor que contribui para o autêntico escândalo desta decisão judicial, tem que ver com o estado actual da nossa Justiça e com a ausência de controle democrático sobre o único órgão de soberania que não tem legitimidade democrática electiva – os Tribunais.
Na verdade, não sendo os seus titulares eleitos (como o são, e por sufrágio directo e universal, o Presidente da República e a Assembleia da República e, indirectamente e porque emerge dos resultados das eleições para esta última, o governo) e não sendo num Estado de Direito Democrático admissíveis poderes, quaisquer que eles sejam, incontrolados e incontroláveis, a questão dos meios e instrumentos de como o Povo – em nome do qual, recorde-se, os órgãos de soberania, todos eles, exercem o poder soberano – fiscaliza e controla esse exercício assume particular relevância quanto à Justiça.
É que essa fiscalização e esse controlo passam, desde logo, pelo respeito absolutamente escrupuloso por alguns princípios essenciais, que têm estado a ser progressivamente enfraquecidos e desfigurados: o princípio do “juiz natural” (para evitar que poderes externos e até internos à Justiça possam atribuir um dado processo a um dado juiz), o princípio da fundamentação de todas as decisões judiciais (para impedir o arbítrio ao estilo do “é assim, porque eu quero!” e para permitir à comunidade seguir e avaliar a forma como se chegou à decisão final), o princípio da publicidade das audiências e também, com ressalvadas excepções que todos compreendemos, dos próprios processos judiciais, incluindo os criminais (para assim permitir ao Povo verificar in loco como o Poder Judicial é afinal exercido) e o princípio do duplo grau de jurisdição com a possibilidade de recurso para um Tribunal superior (obviando-se assim aos poderes absolutos e definitivos de uma só instância, com todos os inerentes riscos de abusos e prepotências).
Mas essa fiscalização e controlo do Povo têm também de ser exercidos sobre o modo como se formam, quem forma e com que ideias e conteúdos, os juízes e magistrados do Ministério Público (o que significa que a cidadela corporativa do CEJ tem de ser substituída por uma Escola de Formação aberta à sociedade e por ela fiscalizada) e sobre o modo e os meios como se avaliam, se promovem e se punem juízes e procuradores (terminando com as igualmente ultra-corporativas e elitistas estruturas do CSM e do Conselho Superior do Ministério Público – CSMP), dando uma volta completa aos actuais e respectivos critérios de classificação (os quais, como se sabe, têm permitido a classificação de “Muito Bom” a autores das maiores atrocidades judiciárias), deixando de se privilegiar os que despacham muitos processos (em detrimento dos que os despacham bem), os que cumprem consecutivas comissões de serviço nos Conselhos, no CEJ e até no governo (em detrimento dos que “queimam as pestanas” a exercer as suas funções de raiz) e ainda os que dão suficientes provas de serem maleáveis e de se integrarem bem no sistema (em detrimento dos que ousam pensar pela própria cabeça, criticar o que está mal e recusar argumentos e posturas de autoridade).
Cruzar os braços só conduz ao aumento das barbaridades
Não dar atenção a todas estas questões, cruzar os braços e não conseguir resolvê-las adequadamente leva inevitavelmente a que se tornem naturais e cada vez mais frequentes barbaridades judiciais (como as que, no âmbito dos processos de Família e Menores, têm merecido sucessivas e humilhantes condenações do Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos); a que se indefiram, no Juízo do Trabalho de Lisboa, todas, sem excepção, as providências cautelares de suspensão do despedimento colectivo da TAP (para depois, e só na Relação de Lisboa, pelo menos 5 dessas decisões serem total e peremptoriamente revogadas); a que se continuem a aplicar sistematicamente penas suspensas a agressores sexuais (inclusive de filhos menores, como recentemente denunciou, e muito bem, a Dra. Manuela Eanes) e a autores de graves violências domésticas (tal como sucedera com Manuel Maria Carrilho, numa segunda consecutiva absolvição decretada por uma sentença da 1.ª instância da juíza Joana Ferrer, só agora estrondosamente revogada pela Relação de Lisboa); e a que se profiram decisões condenatórias, xenófobas e ofensivas (como a produzida por três juízes do Tribunal Criminal de Lisboa – João Rodrigues, Tânia Vanda Gomes e Catarina Silva – relativamente a cidadãs brasileiras, depois absolvidas por um arrasador Acórdão, relatado pela desembargadora Florbela Sebastião e Silva, que pôs a nu a natureza de preconceitos sem assento nos factos e de conclusões pejorativas, desnecessárias e até ofensivas, dos “brilhantes” argumentos da sentença condenatória.
Ao não combatermos implacavelmente estas bafientas e medievais concepções ideológicas dos julgadores e ao não impormos o controlo cívico e a democrática prestação de contas na Justiça, não nos devemos depois admirar quando esta, em flagrante contradição com a forma como age relativamente aos restantes arguidos, dispensa das respectivas medidas de coação um neonazi para ele poder ir matar russos para a Ucrânia!
António Garcia Pereira
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