Tal como os dirigentes políticos da Catalunha e os seus advogados de defesa já haviam desde o primeiro momento previsto, na sequência de um processo judicial destinado simplesmente a conferir um verniz de legalidade à continuação de uma centenária perseguição política, a Secção Penal do Tribunal Supremo espanhol, sediado em Madrid, condenou(1) aqueles dirigentes a penas de prisão que, no conjunto, representam 99 anos e 6 meses de prisão.
Oriol Junqueras, presidente da ERC – Esquerda República Catalã, pela alegada prática de sedição e de desvio de fundos públicos, foi condenado a 13 anos de prisão e a igual período de inabilitação para o exercício de funções públicas e políticas.
Raul Romeva, deputado do Parlamento da Catalunha e membro do Governo (Generalitat) da Catalunha, foi condenado a 12 anos de prisão e de perda de direitos políticos por sedição e desvio de fundos públicos.
Jordi Turull, deputado parlamentar da Catalunha e porta voz do Governo catalão, foi condenado a 12 anos de prisão e de perda de direitos políticos por sedição e desvio de fundos públicos.
Dolores Bassa, uma professora e sindicalista que foi membro do Governo da Catalunha, foi condenada igualmente a 12 anos, também pela alegada prática de sedição e desvio de fundos públicos.
Carme Forcadell, Presidente do Parlamento da Catalunha e Presidente da organização independentista Assembleia Nacional da Catalunha, foi condenada a 11 anos e meio por sedição.
Joaquin Forn, vereador da Câmara Municipal da Catalunha, deputado do Parlamento Catalão e membro da Generalitat, foi condenado a 10 anos e meio, por sedição.
Josep Rull, deputado pela coligação eleitoral “Junts por Catalunya” e membro do Governo da Catalunha, foi condenado também a 10 anos e meio por sedição.
Jordi Sanchez, professor universitário, Presidente do Parlamento da Catalunha entre 2015 e 2017 e deputado, foi condenado a 9 anos, igualmente de prisão e de perda de direitos por sedição.
Jordi Cuixart i Navarro, presidente da associação independentista Omnium Cultural, foi condenado também a 9 anos com pena de prisão e perda de direitos políticos por sedição.
Além destes activistas, o Supremo Tribunal espanhol condenou ainda 3 militantes independentistas – Carles Mundó, Meritxell Borràs e Santi Vila – à pena de multa de 60.000€ (10 meses à taxa diária de 200€), sob a acusação de desobediência.
A autêntica barbaridade daquelas condenações a pesadíssimas penas de prisão, significativamente acompanhadas, à “boa” maneira dos regimes ditatoriais, da perda dos direitos políticos por iguais períodos, suscitou imediatos protestos por parte do povo da Catalunha que, aos milhares, tem estado a manifestar-se e a cortar diversas ruas e avenidas de Barcelona e que já chegou a isolar e a impedir o funcionamento do Aeroporto El Prat(3).
Enquanto todos os independentistas erguem a sua voz denunciando não apenas a gravidade das penas aplicadas pela Justiça de Madrid, como também a natureza eminentemente política dessas condenações, mesmo pessoas com conhecidas e notórias divergências com os independentistas, como a Presidente da Câmara de Barcelona Ada Colau, criticam firmemente a decisão. Ada Colau manifesta a sua solidariedade com os condenados e suas famílias e denuncia: “é a pior versão da judicialização, a crueldade!”.
O próprio Futebol Clube de Barcelona tornou público um comunicado em que afirma que “a prisão não é solução” e em que declara o seu “apoio e solidariedade com as famílias dos detidos” ao mesmo tempo que o treinador do Manchester City, Pepe Guardiola, leu, no Twitter do entretanto criado movimento “Tsunami Democrático”, uma declaração onde é afirmado: “Isto é inaceitável numa Europa do século XXI. A Espanha está a viver um desvio autoritário no qual uma lei anti-terrorista está a ser utilizada para perseguir dissidentes e na qual até os artistas são perseguidos por exercerem a sua liberdade de expressão. Pedimos à comunidade internacional para se posicionar a favor de resolver este conflito na base do diálogo e respeito (…). Nem o governo de Pedro Sánchez, nem qualquer outro governo espanhol foram corajosos o suficiente para lidar com este conflito com diálogo e respeito; em vez disso, escolheram a opressão como a única resposta. O processo de independência é um movimento transversal inclusivo e com uma longa história baseada no desejo dos catalães de uma auto-governação”.
O actual Presidente do Governo da Catalunha, Quim Torra, afirmou mesmo com toda a clareza: “O Governo e eu rejeitamos estas sentenças por serem injustas e anti-democráticas e por fazerem parte de um julgamento político”. O ex-Presidente da Generalitat, Carles Puigdemont – exilado na Bélgica, mas contra quem o juiz de instrução Pablo Llarena já tratou de reactivar o 3º mandato de captura – assinalou: “100 anos de prisão no total. Uma barbaridade. Agora mais do que nunca ao vosso lado e das vossas famílias (…) a sentença reforça a via da repressão (…) condená-los a eles é condenar 2 milhões de pessoas que votaram no referendo”.
Enquanto isto, a sentença é unanimemente elogiada pelo Governo Socialista espanhol (do PSOE) e pelos partidos da direita. O Primeiro Ministro Pedro Sánchez – que voltou, tal como Rajoy, a ameaçar com a invocação do artº 155º da Constituição – também afirmou, falando em castelhano e em inglês, que “Hoje acaba um processo judicial exemplar”, proferindo assim exactamente a mesma expressão usada por Pablo Casado, o líder do PP – Partido Popular que foi, recorde-se, quem apresentou a queixa-crime contra os líderes independentistas agora condenados. Alberto Rivera, do partido Ciudadanos, fez sua a decisão condenatória exclamando, muito significativamente: “Hoje ganhámos (sic, na primeira pessoa do plural!) os bons”, acabando a ameaçar, à pior maneira franquista, o chefe do Governo da Catalunha, Quim Torra, com a frase: “Cada vez que tentam quebrar a Constituição, vão acabar na prisão!”.
Em suma, pelo meio da confissão da co-autoria moral da perseguição criminal, das condenações e da permanente ameaça do uso da violência estatal para reprimir as aspirações independentistas, trata-se de procurar conferir uma veste e uma legitimação jurídica e judicial ao que não passa, na verdade, de luta e perseguição políticas.
Isto, exactamente como sucedia em Portugal antes do 25 de Abril de 1974. Com efeito, para o regime fascista e para os seus Tribunais, os seus juízes e os seus procuradores, aqueles que lutavam pela Liberdade e pela Democracia não eram oponentes políticos, mas sim criminosos comuns que praticavam crimes previstos no Código Penal, tais como os tristemente célebres “crimes contra a segurança do Estado”. Quem criticava a guerra colonial não era, uma vez mais, um oponente político, mas sim um criminoso comum autor de “atentados contra a unidade nacional e contra a integridade da Pátria”.
Os famigerados Tribunais Plenários – que funcionaram até à manhã do 25 de Abril e nos quais foram julgados e até agredidos em plena sala de audiências inúmeros activistas políticos – recusavam sempre a natureza política das acusações e das condenações e, após as duras penas ali sempre decretadas, os apoiantes do regime fascista sempre se vangloriavam dos processos exemplares que haviam justamente condenado criminosos que, desenvolvendo actividades contra a segurança do Estado e prosseguindo estratégias ilícitas, visavam a alteração da ordem jurídico-constitucional vigente, pelo que não estavam ali a ser julgados pelas suas ideias, mas sim por crimes.
Ora, qualquer semelhança entre este “discurso legitimador” da Justiça fascista e aquilo que se lê agora no Acórdão condenatório do Tribunal Supremo espanhol,(4) bem como nas já citadas reacções do Primeiro-Ministro Socialista e dos dirigentes dos partidos direitistas, não é, pois, uma pura e simples coincidência.
Na verdade, e a este propósito, impõe-se desde logo sublinhar duas coisas.
A primeira é a de que o grande “crime” cometido pelos dirigentes, agora barbaramente condenados, e com eles grande parte do povo da Catalunha, foi o de pretenderem levar a cabo, contra as proibições de Madrid e do governo de então de Mariano Rajoy, um referendo popular(5). Mesmo arrostando com uma repressão inaudita levada a cabo por unidades policiais de choque, trazidas de fora da Catalunha e que atacaram violentamente cidadãos pacíficos, de mãos nuas e indefesos, que apenas queriam votar.
A segunda é que a questão da Catalunha é uma questão política, e não jurídica, tal como Castela e os franquistas (e também, e pelos vistos, os seus sucessores, mesmo que com vestes “democráticas”…) sempre a procuraram apresentar.
É que a Catalunha é, recorde-se, uma nação quase tão antiga como a portuguesa, com uma cultura, uma língua, uma identidade e uma história muito próprias, e cujo Povo luta desde há séculos e séculos pela sua independência.
As Cortes Catalãs foram mesmo o primeiro parlamento da Europa que, no século XIII, mais exactamente em 1283, proibiu o rei de criar leis unilateral e autoritariamente. E a independência de Portugal, reconquistada à força a Castela a 1 de Dezembro de 1640, muito deve à luta do povo catalão contra o domínio castelhano, luta essa que teve um episódio, particularmente violento e marcante, em 17 de Junho de 1640, aquando da celebração da festa do Corpo de Deus, com uma manifestação dos ceifeiros (“segadores”) contra os representantes da monarquia castelhana, num tenaz e violento combate que durou depois cerca de 12 anos e que forçou à divisão das tropas e das forças de Castela.
Não obstante, aquilo a que de novo temos assistido nos últimos dias, não apenas em Espanha, mas também em Portugal e por toda a União Europeia, constitui uma autêntica vergonha e a demonstração da mais completa e absurda das hipocrisias.
Com efeito, aquilo que o Governo da Catalunha, o seu Parlamento, os seus dirigentes e a maioria do povo catalão pretenderam levar a cabo foi um referendo para fazer aos seus concidadãos uma simples pergunta: “Quer que a Catalunha seja um estado independente em forma de República?”.
O Governo espanhol, então chefiado por Mariano Rajoy, entendeu que o dito referendo seria ilegal e, logo, os respectivos resultados seriam nulos do ponto de vista jurídico. Mas, como se foi tornando cada vez mais evidente, o que realmente fez foi, pela força bruta, impedir a própria realização do referendo, silenciar o debate político que ele necessariamente implicava e esmagar pela força as justas aspirações à independência do povo catalão perseguindo criminalmente os principais dirigentes desse processo para fazer deles um exemplo do que acontece a todos os que ousem lutar por aquela independência.
Porém, desde logo de um ponto de vista estritamente jurídico, ainda que se pudesse admitir que o artigo 2º da Constituição espanhola (ao proclamar a “unidade indissolúvel da Nação espanhola”) negaria o direito dos vários povos, e designadamente do povo catalão, à auto-determinação, o certo é que este mesmo direito está clara e inequivocamente consagrado no Direito Internacional Geral e Comum e em várias Fontes de Direito Internacional (a começar pela Carta das Nações Unidas) que são de grau hierárquico superior à lei constitucional interna espanhola.
Depois, o Governo espanhol, sempre que isso lhe conveio, logo tratou de ignorar e violar as leis, inclusive as leis constitucionais. E o que fez foi impor na Catalunha um verdadeiro estado de sítio sem que o mesmo tivesse sido formalmente declarado, assim como o cumprimento forçado das suas determinações, mas sem sequer seguir os trâmites previstos no artigo 155º da Constituição espanhola, o qual, entre outros requisitos, exige um requerimento prévio dirigido ao Presidente do Governo da Catalunha e a aprovação daquelas mesmas medidas pela maioria absoluta do Senado. Isto é, para prender activistas, congelar arbitrariamente fundos, encher as ruas de Barcelona de polícias, ocupar as instalações do próprio Governo da Catalunha, fechar sites na net, invadir sedes de partidos políticos e proferir toda a sorte de ameaças e intimidações, as leis já passaram a interessar muito pouco!…
Por outro lado, nunca nenhum Povo alcançou a sua independência porque quem o dominava assim simpática e graciosamente o decidiu. Ao invés, todas as independências (desde as das antigas colónias africanas até às dos Estados Unidos da América e do Brasil) foram conquistadas contra as constituições e as leis vigentes no momento!
Finalmente, todos temos visto como, sobretudo na União Europeia, os argumentos da “legalidade” e a invocação do direito à auto-determinação e à independência servem e são invocados (quantas vezes artificialmente) ou são negados e violentamente reprimidos, simplesmente consoante e quando convém aos interesses estratégicos, políticos e económicos dominantes na UE.
Assim, o direito dos povos à auto-determinação e à independência serviu para justificar a destruição da Jugoslávia, a guerra dos Balcãs e a criação de Estados-fantoche, verdadeiras colónias da Alemanha, bem como o apoio descarado aos neo-nazis que ocuparam a Praça Maidan em Kiev e ao derrube do Governo Ucraniano.
Nas instituições europeias, recorde-se de novo, tranquila e enfaticamente, proclamou-se o direito à independência da Bósnia e aceitou-se até o referendo sobre a independência da Escócia, mas logo se negou esse direito a um povo com uma fortíssima identidade própria desde há cerca de mil anos como é o Catalão?!
Ora, é a mesma Europa que no passado, e em particular no passado recente, se comportou desta forma desprezível que, agora, perante a barbaridade das condenações da justiça castelhana, se cala. Tal como se tem calado, e igualmente por razões de pura hipocrisia política, perante o autêntico massacre do povo curdo que está a ser levado a cabo pelas tropas do Governo de Erdogan.
Por outro lado, o actual governo português, que se proclama de esquerda, mas actua nesta matéria à semelhança de todos os que o antecederam, também se cala perante a arbitrariedade, a prepotência e a violência das condenações levadas a cabo contra os activistas catalães.
Para governantes, sejam eles de que partidos forem daqueles que já passaram pelos vários executivos, que sempre se vergaram aos ditames de Castela, fosse nas políticas do Mar e das Pescas, fosse na questão de Olivença, fosse no escândalo da gestão (melhor, da apropriação) das águas dos rios internacionais, fosse, enfim, no não cumprimento do acordo celebrado entre os dois países relativo à rede ferroviária e à construção das “portas” entre eles, para essa gente o melhor mesmo é continuar a servir Madrid e a apoiar, nem que mais não seja pelo silêncio cúmplice, a postura arrogante, autoritária e fascizante de Castela para com a Catalunha.
E valerá a pena recordar ainda que o regime, o governo e a Justiça espanhóis que assim tratam lutadores políticos são, afinal, os mesmos que trataram com manifesta indulgência, permitindo a sua saída do cárcere antes do cumprimento das respectivas penas, os oficiais superiores, como Tejero Molina(6), Milans del Bosh e Alfonso Armada, autores da rebelião e do golpe militar de 23 de Fevereiro de 1981 contra o regime democrático então recentemente instaurado em Espanha, apesar de os mesmos golpistas declararem abertamente não se arrependerem de terem tentado derrubar a democracia e repor a ditadura fascista.
Todos aqueles que, ao longo da História, tiveram a veleidade de julgar que era pela repressão violenta e pelo encarceramento dos lutadores pela Liberdade e pela Independência que conseguiam vencê-los e abafar a sua voz, enganaram-se redondamente.
Onde há opressão, há resistência, e a luta do povo catalão pela sua auto-determinação e independência, por mais violenta que seja a repressão contra ela lançada, e seja ela policial ou judicial, mas sempre política, acabará por vencer!
Enquanto cidadão de Portugal, da Europa e do Mundo, enquanto lutador pela Liberdade, pela Democracia e pela Independência Nacional de todos os Povos do mundo, daqui ergo também a minha voz para denunciar a barbárie repressiva das condenações agora sentenciadas pelo Tribunal Supremo e para exigir a imediata libertação de todos os presos políticos catalães.
António Garcia Pereira
- (1) Sentença nº 459/2019, de 14/10,19, proferida na Causa Especial nº 20907/2017, e da qual não cabe qualquer recurso. São autores da decisão os seguintes juízes, cujos nomes devem ficar para memória futura: Manuel Marchena Gómez (Presidente), Andrés Martínez Arrieta, Juan Ramón Berdugo Gómez de la Torre, Luciano Varela Castro, Antonio del Moral García, Andrés Palomo Del Arco e Ana María Ferrer García.
- (3) “Desculpe por ter perdido o voo, pense no que é perder a democracia”, é uma das frases escritas (em inglês) nas janelas de vidro do Aeroporto de Barcelona.
- (4) Por exemplo, a fls. 329-330 da sentença, procura justificar-se a condenação de Carme Forcadel, não pelos acesos discursos em defesa da independência da Catalunha, não pela participação em manifestações contra detenções que se consideram injustas (pois se trata de actos garantidos e sustentados pelo sistema jurídico-constitucional), mas sim pelo seu “decisivo papel na direcção de um processo de criação normativa que, pese embora a sua mais que evidente insuficiência jurídica, serviu de ilusória referência para uma comunidade que iria ser mobilizada como instrumento de pressão face ao governo do Estado” (sic!).
- (5) Por exemplo, a sentença condenatória, a fls. 307, fundamenta a condenação de Oriol Junqueras na “mensagem (por ele) reiterada e conscientemente enviada à comunidade: defender o referendo, defender as urnas, resistência e oposição às medidas policiais”.
- (6) O oficial golpista que ficou célebre por irromper, de pistola em punho, pelo Parlamento espanhol adentro, ameaçando e sequestrando os deputados.
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