Listas de Pedófilos, as Novas Fogueiras da Inquisição (por João Prudêncio)

A notícia é recente mas já está envolta em polémica. O Ministério da Justiça vai apresentar uma proposta de Lei no Parlamento que permitirá fazer uma base de dados com os nomes e moradas de todos os pedófilos já condenados. Quando a Lei sair, espera a ministra que ainda em 2015, qualquer cidadão tutor de um menor de 16 anos pode dirigir-se a uma esquadra da PSP ou GNR para ficar a saber quais os condenados por abuso de crianças que moram na sua área de residência ou na zona da escola do menor. Ao tutor é apenas exigido o dever de sigilo sobre os nomes da lista.

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Não, não é anedota nem notícia do 1º de abril. A mesma ministra que tem medo de falar ao telefone e que reconhecidamente não tem meios para permitir que fiquem em segredo de justiça meia dúzia de papéis e algumas gravações apenas ao alcance de um punhado de pessoas, espera que dezenas ou centenas de milhar de tutores de menores se calem todas e não divulguem nomes publicamente. Já estou a ver a capa do pasquim das manhãs: “Saiba quem são e onde estão os pedófilos da sua rua!”.

Claro que, se o precedente se abrir, num fósforo teremos o procedimento estendido a assassinos, ladrões, agressores domésticos, corruptos, fugitivos aos impostos, outros violadores, etc. Cada condenado terá a vida vigiada até morrer, já depois de ter pago a sua dívida para com a sociedade, cumprindo cadeia, pagando indemnizações e multas.

Argumente-se que isso só deverá acontecer com crimes que causam alarme social. Mesmo assim, é gigantesco o universo: o ladrão de automóveis causa alarme social, até o ladrão de telemóveis. Ou de uma banana num supermercado. É apenas uma questão de grau. Abra-se a caixa de Pandora…

Para todos eles, mas por enquanto apenas para os que, uma só vez ou reiteradamente, abusaram de um menor de idade, a punição não se extinguirá na cadeia. Persegui-lo-á por toda a vida, mesmo que esteja recuperado. Será sempre olhado de soslaio. Mudarão de passeio antes de se cruzarem com ele, sairão da piscina quando chegar, mudarão de lugar no autocarro quando se sentar, serão frios quando o atenderem na loja, ninguém lhe dará emprego ou arrendará casa. A estigmatização social será a sua sombra. Até à morte. Em casos extremos, como vimos no filme “Pecados Íntimos”, acossado e desesperado, antecipará a própria morte. A pena capital de novo no primeiro país europeu a aboli-la.

A pedofilia é uma doença. Alguns pedófilos tornam-se abusadores de crianças, outros limitam-se a fantasiar. Nem todos os pedófilos são abusadores de menores, assim como nem todos os abusadores de crianças são pedófilos. Há quem tenha abusado uma vez, episodicamente, e não tenha obsessão patológica por sexo com crianças (claro que esta Lei jamais fará distinção entre um e outro caso).

Se tratada, a parafilia (desvio sexual) a que chamamos pedofilia pode ser controlada. Os casos de cura são reconhecidamente raros, mas há muitos casos de controlo completo de sintomas. Claro que competiria ao Estado diagnosticar e tratar os verdadeiros pedófilos, antes ou depois de eventual condenação. Para evitar reincidências. Ninguém devia ser solto sem a certeza de que não constitui perigo para os demais.

Hoje, o Estado já se demite da responsabilidade da cura, mas a curto prazo quer fazer ainda pior: estimula a estigmatização social de alguém que já cumpriu a sua dívida para com a sociedade. Equipara-o aos demais, independentemente de ele estar ou não curado ou controlado. É o próprio Estado que o atira às feras, quer dizer, à populaça, que não sabe (nem tem como saber) quais os que nunca tornariam a abusar e os potencialmente reincidentes. E fá-lo perpetuamente, até que o sujeito morra. Se ele mudar de casa, a lista “vai com ele”, à guarda da Polícia. O Estado condenou-o a estigmatização perpétua. Na prática, a prisão perpétua.

Ao habitual jargão segundo o qual “basta haver um inocente condenado para eu ser contra a pena de morte”, junto um outro: basta haver um abusador de crianças recuperado para a sociedade para que esta proposta de Lei se torne indecente e iníqua! E a hipótese do inocente, obviamente, mantém-se neste caso, pois a história humana está cheia de alegados pedófilos apontados por crianças – ou por adultos alegadamente abusados na infância – que afinal, descobriu-se depois, estavam inocentes.

A eventual aprovação desta proposta de Lei absurda e populista – obviamente inconstitucional – significa pois que o Estado manda às malvas o primado da recuperação e da reinserção social do criminoso. De uma penada, o Governo atira para o lixo toda a filosofia que enforma o Código de Processo Penal Português, baseado no princípio da recuperação do condenado e da sua reinserção na sociedade.

De uma assentada, estrategicamente em ano de eleições, a populaça rejubila, como rejubilou sempre, nas fogueiras da Inquisição, nas Bruxas de Salem, na perseguição aos judeus, no Maccartismo, nos apedrejamentos da Arábia Saudita. O inimigo ao nosso alcance, controlado por mil olhares reprovadores, a justiça pelas próprias mãos ali tão perto, ao alcance de um qualquer justiceiro, seja familiar de uma vítima, seja um vingador de ocasião, qualquer que seja o seu desígnio.

A civilização retrocede. A Idade Média espera-nos. A fogueira voltou.

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