“Manda quem pode, obedece quem deve”: o nosso sistema de ensino 45 anos depois

A Educação é, indiscutivelmente, uma matéria absolutamente vital para o futuro e para o desenvolvimento estratégico do País, mas da qual, todavia, praticamente não se tem falado, muito em particular nos últimos tempos.

Esse manto de silêncio com que as questões da Educação têm sido mais ou menos “cientificamente” (en)cobertas resulta da conjugação de dois factores. Por um lado, os graves problemas doutras áreas vitais para as populações e que mais directa e imediatamente se prendem com os seus direitos e os seus interesses, tais como os dos fogos e do estado calamitoso do Sistema Nacional de Saúde e da Segurança Social, que facilitam o desviar das atenções relativamente ao Ensino; por outro lado, o resultado de uma eficaz política de contra-informação conduzida por este e pelos anteriores governos, tratando de reduzir os problemas da Educação às reivindicações dos professores e conduzindo contra estes uma campanha sistemática e duradoura de descredibilização e até de pura e dura difamação. A ponto de o semanário Expresso referir os Professores, numa rúbrica de palavras cruzadas, como aqueles que “ensinam quando não estão em greve”!

Desta forma, enquanto vai e vem o “pau” quer da repetição, tão incontrolada quanto impune, dos fogos, quer das listas, de meses e até de anos, de espera por consultas e cirurgias e dos 700 mil portugueses sem médico de família, quer finalmente da progressiva desvalorização e até destruição das carreiras profissionais de professores, médicos, enfermeiros, inspectores, “folgam as costas” governamentais acerca da situação em que se encontra a Educação e da total ausência de um vislumbre, sequer, de visão estratégica para a mesma.

E, contudo, se conhecemos minimamente a História, facilmente nos apercebemos de que um Povo inculto e deseducado é bem mais fácil de manipular e de governar e que, por isso mesmo, os reaccionários e autocratas de todos os tempos sempre desprezaram, desqualificaram e até odiaram a Cultura e o Ensino, tratando pura e simplesmente de os aniquilar e/ou reduzir a meros instrumentos de propaganda política.

Não é assim por acaso que se atribui a Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler, a tristemente célebre frase: “Sempre que ouço a palavra cultura, saco do meu revólver”[1].

E o preâmbulo do Decreto-Lei de 24 de Novembro de 1936, que fixava o currículo do ensino primário obrigatório, proclamava que este “trairia a sua missão se continuasse a sobrepor um estéril enciclopedismo racionalista, fatal para a saúde moral e física da criança, ao ideal prático e cristão de ensinar a ler, escrever e contar e a exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal”. E já o diploma relativo ao ensino liceal, datado de 14 de Outubro de 1936, tratava de o integrar “na missão educativa da Família e do Estado para o desenvolvimento harmónico da personalidade moral, intelectual e físico dos Portugueses, nos termos da Constituição” (a de 1933, é claro).

Assinala certeiramente a este respeito Rómulo de Carvalho[2], o seguinte: “Foram sempre estas as preocupações máximas de Carneiro Pacheco (ministro da Educação de Salazar – nota nossa): o culto dos heróis, a exaltação patriótica, a prática das virtudes cristãs, objectivos fundamentais e quase exclusivos da sua doutrina pedagógica assinalados em toda a sua actuação, desde a mudança do nome do ministério, que geria, até à simplificação exagerada dos currículos escolares, pois, no seu ideário, toda a instrução era objectivo de pouca valia em confronto com a educação que às escolas competia praticar. Na escola primária bastava aprender a ler, escrever e contar; nos Liceus bastava saber umas coisas, desarticulados os conhecimentos entre si pela escolha do ensino por disciplinas…”.

Significativamente, a coeducação de rapazes e raparigas fora repudiada pela Ditadura desde os seus primeiros momentos, chegando mesmo a ser classificada como um instrumento do “assalto da escola pelo processo soviético”. E o ensino liceal para as alunas visava sobretudo aquilo que era então designado por “a missão natural da mulher” e assim, visando ser um “curso de educação familiar”, as alunas aprendiam os chamados “lavores femininos”, ou seja, a confecionar bordados, chapéus, roupa branca e vestidos.

“Naturalmente” que nessa época o ensino universitário era reservado aos filhos das famílias mais abastadas, enquanto os filhos dos operários e de outros trabalhadores acediam, quando muito, às escolas comerciais e industriais. E todo o sistema de ensino, da instrução primária à Universidade, era claramente assumido e tratado como um meio de assegurar a reprodução dos fundamentos ideológicos do regime fascista e a contínua criação de verdadeiros servos, obedientes e acríticos, objectivo esse bem expresso nos brocardos, ensinados e repetidos à exaustão, do estilo: “manda quem pode, obedece quem deve”, “se soubesses quanto custa mandar, mais suave seria a tua desobediência” e “é Deus quem nos ensina que devemos obedecer aos nossos superiores”… 

Os professores eram então rigorosamente vigiados e os que recusavam esta função acabavam expulsos do Ensino, como sucedeu, através da tristemente célebre Portaria de 8/10/46, com dois dos mais prestigiados mestres: Bento de Jesus Caraça, do então Instituto de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), hoje Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), e Mário de Azevedo Gomes, do Instituto Superior de Agronomia (ISA), e logo depois a mais 11 professores catedráticos, 2 professores extraordinários e 8 professores assistentes.

A chamada “reforma Veiga Simão”, no início dos anos 70 do século passado, para além de uma inegável expansão e diversificação dos vários graus de ensino, traduziu-se, todavia, num enorme aumento da repressão, com a introdução dos “gorilas” nas escolas, designadamente em Direito, o encerramento de várias associações de estudantes, diversas invasões das Universidades pela polícia de choque e pela prisão e tortura pela Pide de dezenas e dezenas de dirigentes e activistas estudantis. Era o levar da política do medo até às últimas consequências, culminando com o assassinato, na tarde de 12 de Outubro de 1972, do estudante de Direito José António Ribeiro Santos, num anfiteatro de Económicas, por um esbirro da Pide, de nome António Joaquim Gomes da Rocha, que nunca foi julgado por esse crime.

Com o 25 de abril de 1974, assistiu-se, e ainda bem, a um corte radical com este estado de coisas. A Liberdade e a Democracia trouxeram a instituição de órgãos de governo democrático nas Escolas, a discussão e redefinição da generalidade dos currículos escolares e, sobretudo, uma profunda democratização no acesso ao Ensino (tendo diminuído o número de analfabetos, entre 1970 e 2011, de 1,8 milhões para menos de 500 mil) e em particular à Universidade (passando de 49.461 alunos inscritos no Ensino Superior em 1970, para 81.083 em 1996 e 122.811 em 2018).

Uma das ideias-base era, então e generosamente, fazer do sistema de ensino um instrumento de formação cívica de cidadãos capazes de pensar pela própria cabeça, modernizar os conteúdos formativos e adaptá-los às novas realidades, alterar um sistema de ensino autocrático e baseado nos processos e juízos de autoridade do Führerda Escola, ou seja, o Mestre, e procurar instituir uma lógica de “duplo sentido” (docente/aluno e aluno/docente) e de aprendizagem crítica e permanente.

Parecia então ter-se compreendido aquilo que, aliás, foi depois várias vezes repetido em discursos oficiais (lembram-se da célebre “paixão” de Guterres?), mas nunca concretizado, ou seja, que a Educação é um instrumento absolutamente imprescindível e vital para o desenvolvimento do país, a todos os níveis, e para a construção de uma sociedade avançada, justa e democrática.

Ora, passados mais de 45 anos sobre o 25 de Abril de 1974, e perante tudo o que entretanto se passou, impunha-se que se fizesse um balanço, e um balanço sério e consciencioso, acerca do que afinal foi e do que não foi feito, e porquê, de onde nos encontramos hoje e do que se impõe fazer como uma das prioridades de toda a acção política digna desse nome. A verdade, porém, é que, com raríssimas e humaníssimas excepções – de que um dos exemplos mais ilustres é, seguramente, o do Professor Santana Castilho –, ninguém quer dar-se a esse trabalho e assumir essa responsabilidade, preferindo-se continuar a navegar à vista onde se impunha verdadeira navegação transoceânica e a culpar a martirizada classe profissional dos professores por todos os males, mesmo os mais profundos, da Educação.

A verdade é que aquela análise e balanço são essenciais e mais urgentes do que nunca. E temos cada vez mais sinais de alarme, reveladores da completa obscuridade em que nos encontramos e dos graves riscos que ela comporta.

Com efeito, foi preciso chegar a 2019 para ser divulgado um estudo (do insuspeito Edulog da Fundação Belmiro de Azevedo) que lamentavelmente confirma aquilo que quem conhece a realidade já há muito conhecia – hoje, tal como antes do 25 de Abril, para os cursos superiores sobretudo universitários, mais prestigiados e com mais saídas profissionais, vão os filhos das famílias mais ricas, e para os oriundos das famílias mais pobres estão reservados os cursos menos qualificados e prestigiados, designadamente os dos Institutos Politécnicos.

A lógica geral da concepção do Ensino como um mero serviço – e não como um direito fundamental dos cidadãos e um dever básico do Estado – levou à imposição, a todo o custo, da lógica cega do menor custo possível. E assim, excessiva carga lectiva para os alunos, aumento do número de alunos por turma, vínculos precários e horários desmedidos e desproporcionados para os professores, sucessiva transformação destes em burocratas atolados em papeis, relatórios, planos de actividades e informações, num inferno burocrático disfarçado de rigor, ausência de uma lógica de fundo e total indefinição dos currículos travestida de “flexibilidade”, eis o que, na realidade quotidiana, se passa generalizadamente nos diversos graus de ensino, em particular do básico e secundário.

A nível do ensino superior, a chamada “reforma de Bolonha” conduziu a que a licenciatura seja cada vez mais um grau académico desprovido de utilidade prática, exigindo-se o mestrado cada vez mais (designadamente para a obtenção de empregos minimamente qualificados) por cujo financiamento, porém, o Estado se desresponsabiliza, obrigando assim as instituições de ensino a usarem de todos os meios, incluindo os menos adequados (como, por exemplo, a cobrança de propinas astronómicas), para se financiarem.

Volta a lógica do medo, agora o medo de ver cessados o vínculo (para os professores não efectivados) e/ou o financiamento, designadamente por parte da FCT (para os investigadores e bolseiros), numa mal disfarçada preferência governamental por docentes e investigadores “tarefeiros” ou “jornaleiros”. 

Sem ideias e sem uma discussão política de fundo sobre o que deve ser um professor e para que deve servir o sistema de Ensino, assistiu-se, em termos de conteúdos formativos e em nome da “modernidade”, à progressiva e arrogante depreciação e até à eliminação da Filosofia, das Humanidades, da Literatura, das Ciências Sociais em geral (como a História, a Sociologia e o Direito), substituídas cada vez mais pelo pensamento económico e político dominante e pelas chamadas “ciências práticas” e pela imposição crescente do desprezo pela língua materna e do cultivar do vocabulário mais pobre e primário das chamadas “novas tecnologias”.

A componente cívica, de alto abaixo da formação, foi quase totalmente suprimida, como o foram as concepções da Ética e da Justiça. O mesmo se passa com a memória histórica, cultural e artística. Em seu lugar, e normalmente sempre em nome da tal “modernidade”, bem como da “eficácia”, e agora também da “internacionalização”, assistimos ao crescente culto da superficialidade e do instantâneo e à substituição do estudo rigoroso e analítico pela “religião” das médias e das métricas.

Avalia-se o sucesso escolar pela percentagem das aprovações, sejam quais forem as condições em que elas sejam obtidas. Classificam-se os professores pela “bibliometria” (ou seja, pelo número de artigos publicados em revistas listadas como de referência), desvalorizando-se cada vez mais a componente pedagógica da actividade do docente.

A par do desastre, o ridículo não tem limites. E assim, para conferir um ar pretensamente científico a todo este processo de destruição do que deve ser um sistema de ensino ao serviço do progresso da sociedade, pratica-se o “nacional-saloismo” do uso generalizado da língua inglesa, isto mesmo quando se trata de trabalhos ou reuniões de docentes ou investigadores portugueses, trabalhando em Portugal, numa instituição de ensino público e portuguesa, mandando assim alegremente às urtigas o artº 11º, nº 3 da Constituição – que provavelmente os responsáveis por este estado de coisas se orgulham de não conhecer… – o qual precisamente proclama que a língua oficial do Estado é o Português.

O desprezo pela Cultura, pela História, pelas Humanidades, o culto do superficial, do instantâneo, da aparência, o domínio do oportunismo, designadamente táctico-cultural, a imposição nas escolas da lógica das piores fábricas do Vale do Ave (com cargas excessivas de trabalho, hiperburocracia, constante desvalorização de quem trabalha) constitui hoje um pesado e gigantesco meio de criação de um modelo de “súbditos”, treinados e formatados para não pensarem pela própria cabeça e para reproduzirem um modelo bem mais eficaz (e bem mais travestido de legitimações ditas “científicas”) que o do fascismo. 

E, afinal, as já referidas grandes questões permanecem sem resposta adequada: O que deve ser um professor? Para que deve servir o sistema de ensino?

Decerto que para transmitirem os ensinamentos, designadamente científicos e tecnológicos, mais avançados, e que permitam desenvolver e fazer avançar o nosso país e o mundo, seguramente. Mas sobretudo para criar novas gerações de cidadãos activos e conscientes, conhecedores dos seus direitos e também dos seus deveres, empenhados na sua responsabilidade e nas suas tarefas sociais.

Cidadãos que, com as ferramentas que lhes são fornecidas, não abdiquem de ser intelectualmente rebeldes e de só aceitarem aquilo que, após passar pelo crivo da sua razão crítica, compreendem e consideram correcto. Cidadãos que recusem o papel de pretensamente neutrais “guardas de Auschwitz” e que não prescindam de examinar, de entender, de avaliar, de criticar e sobretudo de aprender e de estar sempre disposto a aprender, e de considerar a construção do futuro uma tarefa e, mais do que isso, uma obrigação cívica sua, e da qual não toleram ser privados.

A questão é que, como a classe que nos governa já há muito compreendeu, é bem mais fácil dominar e manipular carneiros ignorantes, acéfalos e acríticos do que representar e governar cidadãos activos e conscientes.

E é exactamente por esta razão que tal classe tanto se empenha agora em inviabilizar e impedir o debate consciencioso e aprofundado sobre estas matérias e, em seu lugar, impor de novo, ainda que com novas embalagens, os tais brocados fascistas do “manda quem pode, obedece quem deve” e do “se soubesses quanto custa mandar, mais suave seria a tua obediência”…

Mas é para isto que, 45 anos após o 25 de Abril de 1974, vamos aceitar que devam servir os professores e o sistema de ensino público?

António Garcia Pereira


  • [1]Na verdade, esta frase é da peça de teatro intituladaSchlageter, de Hanns Johst, dramaturgo nazi e que foi Presidente da Câmara de Literatura do Reich e da Academia Alemã de Literatura.
  • [2]R. Carvalho, História do Ensino em Portugal, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, 5ª edição, pp. 775-776.

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