Mentiras, computadores e SIS – uma nova polícia política?

Com todas as peripécias e golpes palacianos a que vimos assistindo entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, a verdade é que os problemas graves do nosso país vão sendo ignorados, e mesmo os incidentes e responsabilidades mais graves – que em qualquer democracia decente teriam decerto determinado a demissão dos respectivos autores – são escamoteados e esquecidos[1], nomeadamente através da conhecida técnica manipulatória de, a cada acontecimento, logo fazer explodir na praça pública outro, e depois outro, e ainda outro, e assim sucessivamente, desviando as atenções e deste modo impedindo uma análise e reflexão mais aprofundada.

Onde ficam os reais problemas do País?

Assim, não se discutem seriamente, muito menos se começam sequer a resolver, problemas como a gravíssima situação em que se encontra o SNS (com a manutenção dos encerramentos dos serviços de urgência, do milhão e seiscentos mil portugueses sem médico de família e das longuíssimas filas de espera quer para consultas, quer para actos cirúrgicos), a Educação (com a arrogante e ostensiva manutenção da degradação da situação dos Professores), a Justiça (sempre forte para com os fracos e fraca para com os fortes e de que a greve dos Oficiais de Justiça e a não resolução do arrastar da sua injusta situação é apenas um dos inúmeros aspectos), a Habitação (sendo que as medidas pomposamente anunciadas pelo governo verdadeiramente nada resolvem, não promovem a construção de habitação acessível e antes o que garantem são os ganhos dos senhorios e promotores imobiliários, ao mesmo tempo que as prestações aos Bancos são um sufoco insuportável para inúmeras famílias) ou o custo de vida, com a inflacção (não a “oficial” mas a dos produtos essenciais, que é, sensivelmente, o dobro daquela) a devorar e a ultrapassar os magros aumentos de salários e pensões, sobretudo de quem ganha menos.

E tudo isto, enquanto todos os Bancos – incluindo o Novo Banco! – a EDP, a Galp, a Sonae, a Jerónimo Martins e outras grandes empresas acumulam lucros de centenas de milhões[2], ao mesmo tempo que a dívida pública (de que quase ninguém fala, mas que cresceu, no anterior trimestre, 74 milhões de euros por dia) já ia, no final de Março, em 279,3 mil milhões!

O “caso Galamba” – mentiras e mais mentiras!

Mesmo no chamado “Caso Galamba” esta técnica do sucessivo atropelo da (des)informação está a permitir que se esqueçam alguns factos, relevantíssimos pela negativa, e que, apesar de todas as manipulações e mentiras, já foi possível apurar:

1º A audição da ex-CEO da TAP na Comissão Parlamentar de Economia, em 18/01, foi uma completa farsa, já que o que a Madame Christine iria ali dizer foi previamente combinado entre ela, o governo e os deputados do PS, que então a apoiavam.

2º Ao invés do que todos, inclusive a mesma CEO, inicialmente quiseram fazer crer, houve, não uma, mas duas reuniões de preparação e “alinhamento” do que deveria ser respondido, tendo a primeira sido a 16/01 só com o Ministro Galamba, que, afinal, foi quem sugeriu que a ex-Presidente da Comissão Executiva da TAP fosse à segunda reunião, a 17/01, com o grupo parlamentar do Partido Socialista e na qual foram ajustadas perguntas e respostas.

3º É, assim, completamente falso o que o governo, através de João Galamba, quis fazer crer, ou seja, de que não tinha havido qualquer preparação de depoimentos, de que apenas tinha existido uma reunião prévia com o grupo parlamentar do PS para este se informar melhor e que fora a administradora da TAP a querer ir à dita reunião.

4º Todas estas mentiras começaram a ser descobertas quando as comadres se zangaram e o governo de Costa, por meio dos Ministros Galamba e Medina, demitiu a ex-CEO em directo pelas televisões numa conferência de imprensa, e foram depois confirmadas por mais alguns elementos (designadamente pela questão das “notas” que vieram a lume a propósito do chamado “caso do computador”).

O caso do computador

O episódio do computador do ex-assessor de João Galamba, de nome Frederico Pinheiro, é outra das situações, graves, que se impõe averiguar até ao fim, pois a versão governamental transmitida (uma vez mais!) por Galamba, é absolutamente inverosímil (ou até já comprovadamente errada) em vários pontos:

1º Diz o governo que o assessor, na noite dos acontecimentos, estava já exonerado e por isso não poderia ir sequer ao seu local de trabalho. Porém, a exoneração é, legalmente, um acto formal, que carece de publicação em Diário da República (a qual só ocorreu no dia seguinte), não havendo, face à Lei, e não produzindo efeitos jurídicos, exonerações pelo telefone.

2º Fez também o governo constar que o mesmo assessor teria agredido, e barbaramente, 4 pessoas. Depois, Galamba refere 2 pessoas e finalmente há referência a registos hospitalares de uma só pessoa, a qual, no hospital, terá apresentado apenas edemas.

3º A versão governamental é a de que um indivíduo perigoso agredira violentamente 4 pessoas, as quais se teriam fechado todas numa casa de banho, e daí teria sido pedida ajuda policial. Todavia, a PSP foi chamada (segundo consta, desde logo pelo próprio Frederico Pinheiro) ao local, considerou a situação “de baixa perigosidade” (sic) e permitiu e possibilitou a saída do referido assessor das instalações do Ministério onde estava mantido fechado contra a sua vontade.

4º Finalmente, vimos o Ministro Galamba e o Primeiro-Ministro, decerto aconselhados pelos consultores de imagem do governo, referirem repetidamente as expressões “roubo” e “computador com informação classificada”. Porém, como António Costa bem sabe (até porque é jurista), a prática do crime de roubo, prevista e punida no art.º 211.º do Código Penal, exige, para além do uso de violência ou de ameaça do respectivo uso, a ilegítima intenção de apropriação para si próprio, quando se afigura evidente que Frederico Pinheiro não pretendia apropriar-se do computador, mas dele retirar informação pessoal ou para sua defesa, tendo procedido de imediato à sua entrega quando para tal foi instado[3].

Deste modo, quem, como e porquê, usou de violência verbal e/ou física contra alguém ou o privou de liberdade de movimentos ou lhe imputou caluniosamente factos que não correspondem à verdade, é algo que ainda terá de ser adequadamente averiguado, e em sede própria, que é um processo judicial a correr perante as autoridades judiciariamente competentes (e não, por qualquer que seja das próprias partes interessadas). Porém, parece inegável que há coisas na versão governamental que manifestamente não jogam certo.

Por outro lado, e se bem conheço a habitual podridão deste tipo de métodos, para além de falsidades (algumas das quais já, apesar de tudo, e felizmente, detectadas), vamos decerto assistir ainda a autênticas campanhas de homicídio de carácter do ex-assessor, “descobrindo-se” (só agora e por meio de “convenientes” informações plantadas em certos meios ou órgãos da Comunicação Social que a tal se prestarem…) alegados factos negativos do passado, recente ou mesmo distante, de Frederico Pinheiro, e potencialmente afectadores da credibilidade de tudo aquilo que ele possa ainda dizer ou fazer, designadamente na Comissão Parlamentar de Inquérito ou em sede de processo-crime. E isto não apenas a propósito do referido “incidente do computador” (e já não será pouco…), mas também acerca de alguma coisa que este contivesse, como as famigeradas notas das reuniões ou até algo mais, e que fundadamente se suspeita que se possa ter procurado, apressada e afanosamente, ocultar mediante precisamente o subterfúgio da sua classificação como “segredo de Estado”.

A ver vamos, pois, o que, com seriedade, competência e serenidade, será possível apurar, sendo muito importante não permitir que todo o folclore, designadamente mediático, das posições e declarações cruzadas de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa e todo o tipo de manobras de diversão e de manipulação, não impeça afinal o esclarecimento integral da verdade. 

O SIS, uma polícia secreta ao serviço do governo?

Mas a questão mais grave de todas, até pelos contornos de opacidade de que se reveste e pela óbvia tentativa em curso de a abafar, é a da intervenção do SIS[4] neste incidente.

Já se soubera que fora o SIS a “recuperar” o computador na própria noite dos acontecimentos e que só depois aquele foi entregue ao CEGER[5], o qual, sempre sem ter selado, como devia, o equipamento na presença de quem o entregava, apenas no dia seguinte o fez finalmente chegar ao órgão de polícia criminal competente, ou seja, a Polícia Judiciária.

Como já se soubera, pelo próprio Ministro Galamba na sua inusitada conferência de imprensa, que foi ele que providenciou por que se contactasse o SIS, após ter tentado contactar o Primeiro-Ministro e contactado o Secretário de Estado Adjunto de Costa, outro Secretário de Estado e a própria Ministra da Justiça, e sob o pretexto do pretenso roubo de um computador do Estado que conteria informação classificada.

Posteriormente, porém, esse contacto com o SIS ficou, quanto ao governo, “filho de pai incógnito” pois todos os membros do Executivo, a começar pelo Primeiro-Ministro, passaram – eles lá sabem porquê… – a negar terem promovido essa intervenção, mas deixando sempre sem resposta as questões que qualquer cidadão comum não pode deixar de fazer: como é o SIS soube da existência do dito computador, como soube de quem o tinha naquele momento, como soube do respectivo telefone e como e por indicação de quem é que se arrogou contactá-lo?

Enquanto as lastimavelmente habituais “fontes próximas” (do SIS e do governo), ou seja, os órgãos supostamente fiscalizados, trataram de pôr em marcha a sua versão dos factos, o Conselho de Fiscalização do SIRP – Sistema de Informação da República Portuguesa, ou seja, o órgão fiscalizador, esteve primeiramente silencioso, para depois publicar um inacreditável comunicado onde se empenha em dar plena cobertura à actuação da entidade fiscalizada, ali referindo autenticar barbaridades como as de que “não existem indícios que sustentem ter sido adoptada pelo SIS qualquer medida de polícia”, “tudo aponta no sentido de o computador ter sido entregue voluntariamente por quem o detinha, na via pública, portanto fora do contexto do seu domicílio, e sem recurso a qualquer meio coercivo ou legalmente vedado” e ainda que “estava em causa um quadro de urgência” e que assim o SIS, “que é um serviço de segurança, actuou numa lógica de prevenção de riscos”!?

Ora, desde logo não se sabe quem é que este Conselho de Fiscalização consultou ou ouviu. Muito provavelmente, apenas o próprio SIS e o governante de quem defendeu (ou seja, António Costa). Mas não seguramente o próprio Frederico Pinheiro, que já veio publicamente dizer que, pelas 23h daquele dia, recebeu um telefonema de alguém que se identificou como “agente do SIS”, que invocou ter “ordens de cima” para resolver o assunto, e que era “melhor resolver as coisas a bem ou tudo será mais complicado”, numa postura coerciva e até ameaçadora absolutamente clara. Frederico Pinheiro terá então querido confirmar que era mesmo o SIS que o estava a pressionar para a entrega, tendo combinado telefonar ele próprio para o SIS, tendo o dito agente de lhe repetir uma certa palavra-passe (“Guimarães”, segundo foi noticiado) para fazer a pretendida confirmação, o que sucedeu, tendo o ex-assessor procedido à entrega do computador ao elemento do SIS, por volta da meia-noite, na rua, à porta de casa.

Como já ilustres penalistas, como Paulo Saragoça da Matta, e constitucionalistas, como Jorge Bacelar Gouveia, justamente assinalaram, esta actuação do SIS configura claramente a prática de actos e de medidas (de polícia) cuja prática lhe está legalmente proibida e que competem em exclusivo aos órgãos de polícia criminal.

Um Conselho de fiscalização ou de manipulação?

Perante tudo isto, só se pode concluir que a justificação engendrada pelo Conselho de Fiscalização não passa de (mais) uma grosseira falsidade, que apenas confirma algo que sempre disse mas que me valeu, e por várias vezes, o epíteto de exagerado ou até de ser adepto de pretensas “teorias da conspiração”: os serviços de informações não estão sujeitos a nenhuma espécie de fiscalização efectiva, designadamente por parte do pomposamente denominado Conselho de Fiscalização, e que tal se tornou ainda mais grave quando o Sistema de Informações da República Portuguesa passou a depender directamente do Primeiro-Ministro, ou seja, do Chefe do Governo.

Ainda que o actual Conselho de Fiscalização não fiscalize coisa nenhuma relativamente aos Serviços de Informações e às suas ligações com o governo, e em particular com o Chefe deste, é algo que, infelizmente, a ninguém deve espantar, pois é constituído por três membros (Professora Constança Urbano de Sousa, Juiz Conselheiro Mário Belo Morgado e Dr. Joaquim Vasconcelos da Ponte), escolhidos por dois terços dos deputados, isto é, pelo “Bloco Central”, sendo que a primeira foi Ministra da Administração Interna (entre 26/11/2015 e 18/10/2017) e o segundo Secretário de Estado Adjunto da Justiça (entre 20/10/2016 e 30/03/2022)[6], ambos de um governo de António Costa.

Mas mais do que tudo isto, a lei, e desde logo o art.º 6.º da Lei Orgânica n.º 9/2007, de 19/02, estabelece que o dirigente máximo (secretário geral do SIRP), os membros do seu Gabinete, os funcionários e agentes do SIS, do SIED e das respectivas estruturas conjuntas “não podem desenvolver atividades que envolvam ameaça ou ofensa aos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição e na lei”, sendo-lhes expressamente “vedado exercer poderes, praticar actos ou desenvolver atividades do âmbito ou da competência específica dos tribunais, do Ministério Público ou das entidades com funções policiais” bem como sendo-lhes “expressamente proibido proceder à detenção de qualquer pessoa ou instruir inquéritos e processos penais”, constituindo a violação de qualquer destas proibições “violação grave dos deveres funcionais passível de sanção disciplinar, que pode ir até à demissão (…) independentemente da responsabilidade civil e criminal que ao caso couber…”.

Verdades a preservar e lições a não esquecer

Ora, perante tudo isto, e perante este quadro legal, torna-se evidente:

1.º Um agente, comprovadamente do SIS, telefonar às 23h (do dia 26/04) para um cidadão que está em sua casa para (ainda mais se sob a invocação de que se actua por “ordens de cima”, de que há “muitas pressões” para resolver o assunto e que “é melhor resolver as coisas a bem ou tudo será mais complicado”) levá-lo a entregar-lhe um equipamento que está na posse do dito cidadão, apreendendo-o, e sem sequer para o levar de imediato à Polícia Judiciária[7], mas sim para um outro organismo administrativo do Estado igualmente na dependência directa do Primeiro-Ministro, consubstancia um conjunto de actos ilícitos, quer do ponto de vista disciplinar, quer do ponto de vista criminal, e faz incorrer todos os autores, materiais e morais, instigadores e encobridores, nas respectivas consequências legais, designadamente penais.

2.º O governo e o seu amigo Conselho de Fiscalização da SIRP estão a querer fazer de nós parvos, cuspindo na nossa inteligência, e forjando, sob a capa protectora da alegada natureza secreta destas actividades, uma pretensa, e totalmente absurda e inverídica justificação.

3.º É inaceitável que o Ministério Público, dirigido pela Procuradora-Geral da República, mais do que para averiguar devidamente o incidente nas instalações do Ministério das Infraestruturas, não tenha logo instaurado o competente inquérito-crime para averiguar da prática deste tipo de crimes, que são públicos e que constituem um atentado ao Estado de Direito, e identificar e acusar os respectivos responsáveis, sejam eles quem forem!

4.º Nem os cidadãos em geral, nem os deputados, em particular os da Comissão parlamentar de Inquérito, devem renunciar um milímetro que seja a exercerem os seus direitos e a cumprirem os seus deveres cívicos e políticos, e a averiguarem toda a verdade dos factos, quer quanto à gestão da TAP, quer quanto à forma como o governo tem actuado relativamente a todas estas matérias.

5.º O Povo Português, por muito que se lhe tente apagar a memória, deve saber dizer “Não!” a todas as manobras, operações e justificações tendentes a legitimar qualquer forma de polícia secreta ao serviço da política do governo, seja ele qual for. Porque se assim não for, estaremos todos, e então também por alguma culpa nossa, em risco!…

António Garcia Pereira


[1] Cada uma das audições da Comissão Parlamentar de Inquérito são disso um significativo exemplo.

[2] Ainda por cima, e sem que o governo de Costa tome qualquer medida, os Bancos portugueses ganham 9,5 vezes mais que os Bancos europeus com as subidas das taxas de juro!

[3] E tendo até, como foi já anunciado, manifestado explicitamente essa intenção por e-mail dirigido nessa noite ao Ministro Galamba, que, todavia, não terá respondido.

[4] O SIS subordina-se hierarquicamente ao Secretário-Geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), que, integrado na Presidência do Conselho de Ministros, depende directamente do Primeiro-Ministro António Costa.

[5] O CEGER, Centro de Gestão da Rede Informática do Governo, é um organismo integrante da Presidência do Conselho de Ministros (art.º 12.º, n.º 3, al. e) do Dec. Lei n.º 32/2022, de 09/05 – orgânica do governo), cujo Director é nomeado pelo governo, sem quaisquer competências de órgão de polícia criminal.

[6] Além de ter sido Director Nacional da PSP entre 05/08/2022 e 29/07/2004.

[7] Sabe-se agora também que Galamba, por si ou através do seu gabinete, só largas horas depois de accionar o SIS é que contactou a Polícia Judiciária, a qual chegou a casa de Frederico Pinheiro na manhã do dia seguinte (27/04) para ser informado pelo ex-assessor de que o SIS já levara o computador na noite anterior.

Um comentário a “Mentiras, computadores e SIS – uma nova polícia política?”

  1. Maria da Conceição Amaro diz:

    Tudo isto é muito preocupante e um risco para a nossa Democracia. É confrangedor ouvir mentiras, inverdades e perceber até que ponto se recorrem a todos os meios (o SIS, o mais flagrante nesta trama) para as encobrir e a falta de transparência generalizada que existe. Os Portugueses Não são estúpidos, o governo não nos podwme tratar como tal.

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