Porque não defendo nem me vejo representada neste sistema dominado por “jerks” (por Anabela Ferreira)

capitalismo– Já escolheste o restaurante minha querida?

– Já e reservei! a que horas chegas – quis ela saber?

– Antes das 8 estarei despachado. Quero sair cedo e levo os bilhetes para a viagem a Paris e as entradas na Eurodisney. Temos o avião às 10.

– Estou mesmo entusiasmada. E os miúdos estão numa excitação que nem imaginas. Vou buscá-los daqui a pouco. Esperamos por ti ansiosos.

Marido e mulher desligam o telefone com um largo sorriso. Iam-se divertir em família. Bem precisavam.

Imaginemos por uns segundos que este diálogo aconteceu.

O marido deste diálogo hipotético é o director de um hipotético campo de prisioneiros de guerra e suspeitos de actividades subversivas contra o regime que deitou abaixo a ditadura. A prática de tortura, confinamento em solitária e trabalhos forçados são práticas comuns neste campo sob as suas ordens.

Era respeitado pelos seus subordinados mas sobretudo temido. Os prisioneiros para ele, são danos colaterais e sub-produtos da incapacidade humana de produzir seres perfeitos.

Felizmente, para si tudo tinha corrido bem, com a sua determinação, esforço, tenacidade e inteligência. Tinha sabido subir a escada da obediência ao sistema e sabia como subjugar e fazer cumprir ordens como líder exemplar que era. Uma qualidade rara e sempre admirada pelos seus superiores.

Pensando em si com imensa satisfação preparou-se para dar as últimas ordens e despachar-se para o jantar em família. Havia uns certos prisioneiros que deveriam ter “o tratamento especial de correcção” e ele haveria de os dobrar. Essas eram as directrizes que tinha e que ia cumprir como sabia ser capaz.

Sabia a quais dos seus iria entregar essa responsabilidade para partir para um fim de semana descansado…

Fim do hipotético cenário. Extremo, naturalmente…

Como pode um homem conseguir ser estes dois homens? (Como a história nos tem dado tantos exemplos na Europa, na América Latina, na Ásia, em África, na América – dos peregrinos contra os índios, nas colonizações, nos regimes pós – colonizações, nas duas Grandes Guerras – entre tantos mais).

Julgo não me ter esquecido de cobrir nenhum lugar onde um cenário assim tenha acontecido e aconteça.

Podia também o CEO de um conglomerado multinacional de peso, de uma instituição, de um serviço, de uma fábrica, com estivadores, de um sindicato, num partido ou qualquer outro lugar da vossa imaginação numa lógica de mercado onde conta o rendimento, a renda, o lucro nunca o cidadão que paga impostos, paga os riscos, cobre os devaneios do capital.

Algozes e vítimas. A banalidade do mal deste sistema é o meu ponto com este texto. Mais uma vez relembro a actualidade de Hanna Arendt .

Poderá o mal – as acções cegas e/ou conscientes – a quem o pratica, ajudar a realizar com sucesso a catarse da vingança, da solidão, da rejeição, ou do próprio sucesso? Dito de outra maneira, será esta catarse uma forma de compensação?

Vivemos num sistema que banalizou o mal num espectáculo grotesco nos antípodas da vida. Homens banais cometem actos de tortura e maldade sob outros homens e o sistema é tácita e implicitamente aceite por todos os que fecham os olhos, cumprem ordens sem pensar, sem compreender o sistema que nos faz odiar o próximo e odiar o mal que nos faz mal.

Não, não é normal gente vulgar, banal aceitar sem ver, sem questionar, sem querer saber.

Não, não é normal gente vulgar ser triturada pela máquina do mal – que é o sistema actual – e banalizar-se pelo mal, vendo-o como um caminho normal.

Gente que programa fim de semana em família depois de programar a violência sobre outra gente normal e banal.

Gente que de tanto apanhar, gente que de tanto calar só o mal vai saber praticar, sem sequer o ver. Quanto mais entender que é do mal que está a viver.

O que precisamos é combater este sistema. Não deixar que o ódio nos afecte e nos direccione contra os nossos semelhantes que estão no mesmo caminho de sobrevivência que nós.

A solução para a paz só pode ser um caminho de construção de processos legais e cultura democrática que conduza ao fim de um sistema onde todos os seres humanos sejam iguais e não haja uns mais iguais que outros.

Ou que uns seres humanos privilegiados mereçam viver decidindo sobre a vida dos demais.

A essência da vida está nos antípodas deste actual sistema que perigosamente nos empurra para a morte violenta com a aparência de benevolente democracia, neste comboio descontrolado no qual seguimos onde os mercados/grandes corporações(dinheiro,crédito e taxas de juros) mandam mais que os Estados (cidadãos). Onde o capitalismo esmaga a democracia e a cidadania.

Não tenho de pagar juros nem outros interesses para ver a vida se desenrolar.

Porque a vida é mais do que isso. E os “jerks” que nunca foram interessantes perderam toda a graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *