(Declaração de interesses: como é facto público e notório, sou, juntamente com o Sr. Dr. Paulo Graça, advogado de defesa dos 13 militares do “Mondego”)
Atentemos nestas situações, aparentemente distintas entre si:
Primeira – Segundo noticiaram os jornalistas que consultaram o processo “Tempestade Perfeita” (onde são investigadas graves e múltiplas suspeitas de fraude e de corrupção em contratos do Ministério da Defesa, e onde já estão constituídos mais de 70 arguidos), o Director de Serviços das Infraestruturas e Património do Ministério da Defesa Nacional, investigado no âmbito daquele processo, proferiu, em conversa telefónica com outro dos arguidos, a seguinte e ilustrativa frase, interceptada e gravada pela Polícia Judiciária (desculpem a linguagem, mas é importante citá-la ipsis verbis): “Basicamente, sou uma puta. O que eu quero é ter bens materiais, sentir a minha vida boa.”. Diz também o seguinte: “Conseguimos arranjar ou na DGTF[1] ou noutra coisa qualquer e ver se consegue voltar a criar a velha dinâmica… ou então ficamos reduzidos a técnicos superiores”. O Director de Gestão Financeira, outro arguido, foi escutado a dizer isto: “Um lugar que quero é presidente de uma empresa qualquer, até pode ser da ETI[2]. O segundo é ter um lugar lá fora estável, na ESA[3], na NATO, uma merda qualquer a ganhar doze mil euros. O terceiro que aceito é como Director-geral de uma merda qualquer.”[4].
Segunda – A 2/10, ficámos a saber que Marco Capitão Ferreira, ex-Secretário de Estado da Defesa e um dos principais arguidos do processo em questão terá sido a única (!?) testemunha que a “tropa de elite” do Ministério Público (o DCIAP – Departamento Central de Investigação e Acção Penal) inquiriu num outro processo-crime relativo a erros e manigâncias praticadas na então Empordef – Empresa Portuguesa de Defesa, os quais – no entender do Ministério Público – incluiriam actos de gestão danosa, falsificação de documentos e corrupção, praticados no âmbito de uma “criminalidade altamente organizada”. Todavia, e pelos vistos aceitando as “explicações” dadas por Capitão Ferreira a respeito das diversas irregularidades[5], não promovendo quaisquer escutas ou vigilâncias, o procurador do DCIAP proferiu discretamente, a 31/01/ 2022 (ou seja, já depois de rebentar o escândalo da astronómica derrapagem das contas da construção do Hospital Militar), o seu despacho de arquivamento, não obstante a enorme e ostensiva desvalorização do património do Estado, resultante das condutas em causa, e os avultadíssimos ganhos dos privados que adquiriram, a preço de saldo, alguns desses bens.
Recorde-se também que este foi o mesmo procurador do DCIAP que, igualmente em 2022 e sob o mesmo argumento de que “não foram recolhidos indícios de que tenha ocorrido uma conduta dolosa (com vista a prejudicar o Estado ou a beneficiar terceiros)”, arquivou o inquérito, instaurado 8 anos antes, ao escandaloso (e ruinoso para o Estado) negócio da subconcessão – da destruição, melhor dizendo – dos ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo).
Esta miserável liquidação dos ENVC, prosseguida intencionalmente e com argumentos falsos (tratando o governo da altura e os responsáveis da Empordef de invocar que a União Europeia proibia todo e qualquer apoio estatal aos estaleiros[6], fazendo também e simultaneamente com que a Marinha cancelasse as encomendas de 5 navios-patrulha para assim a Empresa ficar sem receitas e sem carteira), além de privar o nosso País de um activo estratégico fundamental, lançou no desemprego directamente centenas, e indirectamente milhares, de trabalhadores, ao mesmo tempo que garantia chorudos lucros aos privados que ficaram com os respectivos despojos.
Terceira – Após vários incidentes e avarias e inúmeras reparações, pinturas e lavagens de cara feitas ao navio “Mondego”, a Marinha, chefiada pelo Almirante Gouveia e Melo, levou a cabo uma massiva operação de contra-informação e de manipulação da opinião pública. Em vez de fazer o “Mondego” retomar as missões para as quais foi comprado, já então com mais de uma década de idade, em 2014 à Dinamarca, a Marinha colocou-o a fazer uma espécie de circuito turístico, com a organização de visitas do público ao navio, onde são pregados aos visitantes as “qualidades” e o “excelente estado” do navio…
Assim, depois de a sua participação em operações navais ter sido convenientemente adiada, o “Mondego” foi já feito acostar sucessivamente aos cais de Viana do Castelo, Leixões (onde, sob o coxo pretexto da chuva e do vento, as visitas foram canceladas em cima da hora), Figueira da Foz e Peniche, sendo que, neste último caso, até houve lugar a reportagem da RTP, com depoimento do Comandante e entrevistas a visitantes! Não nos devemos assim espantar que, nas próximas semanas, o “Mondego” possa ir passear ainda mais para Sul e acostar, para novas operações de “charme”, em Setúbal, em Sines e até eventualmente em Lisboa.
Ora, isto ocorre numa altura em que a escandalosa, e até criminosa, deficiência dos meios navais do nosso País se tornou uma evidência inegável, a ponto de o próprio Almirante Gouveia e Melo ter declarado em entrevista à TVI/CNN “sofrer” com a situação (!?), anunciando em 21/09 a próxima aquisição de 17 (dezassete!) novos navios para a Armada. Ao mesmo tempo, têm vindo a ser feitas diversas e consecutivas reportagens elogiosas da Marinha (onde até uma cadela e um drone, mais um fantasmagórico projecto de um fantasmagórico navio com fundos do PRR tiveram honras de referência), numa altura em que já foi apresentada a defesa dos treze militares do “Mondego”, onde o real e desastroso estado do navio, à altura dos factos, é escalpelizado até ao último pormenor.
E o que a Marinha de Gouveia e Melo trata agora de levar a cabo, e à custa dos contribuintes, é uma gigantesca campanha de propaganda, procurando assim influenciar e interferir de forma abusiva e escandalosa nos processos (disciplinar e criminal) em curso e fazer passar a ideia de que o “Mondego” com os seus trinta e um anos de idade, afinal, não é aquilo que verdadeiramente é, e sobretudo aquilo que ele era em Março de 2023[7]. Mas a tendência para entender e praticar que uma mentira mil vezes repetida lá se acabe por transformar em verdade, vem, pelo menos, desde os anos trinta do século passado…
Pelos vistos, para o actual responsável máximo da Marinha Portuguesa, vale mesmo tudo, em flagrante contradição com as honrosas tradições e valores da Marinha, mas em consonância com as velhas e ditatoriais máximas de “quem não é por mim, é contra mim!” e, sobretudo, de “os fins justificam os meios”! Tudo o que se tem vindo a passar (“notícias” plantadas, reportagens e entrevistas combinadas, visitas abertas ao público, “missas cantadas” de louvor ao pretensamente bom estado do navio “Mondego”) é absolutamente reprovável do ponto de vista ético e ilegal do ponto de vista jurídico, mas não propriamente surpreendente. Trata-se, afinal, da continuação da postura de construir uma “verdade alternativa” e, com base nela, queimar sumariamente na praça pública homens com uma enorme dignidade e um profundo orgulho na sua carreira, e, desta forma ínvia, preparar o ambiente e influenciar os processos, disciplinares e criminais, em curso.
Ora, o que têm em comum todas estas situações factuais, mas aparentemente distintas?
Por um lado, pelo adormecimento da nossa consciência colectiva, pela inércia, pela ausência de valores e pela expulsão da mais basilar Ética dos vários domínios da vida, da Política à Justiça, passando pela gestão da Administração Pública, é, afinal, perfeitamente possível todas estas situações ocorrerem e praticamente não se ouvirem vozes críticas e, mais grave ainda, não ocorrer de todo o autêntico pronunciamento popular que elas mais que justificavam, pela indignidade, pela injustiça e pelo atropelo “oficial” da verdade que todas elas representam. Pode ser alguma vez admissível, numa sociedade minimamente decente, que altos dirigentes da Administração Pública pensem e actuem de forma absolutamente indigna, que autoridades judiciárias não investiguem como devem e que entidades públicas procurem afanosamente construir narrativas tão convenientes quanto falsas?!
Por outro lado, a nossa Justiça, em particular a Justiça Criminal, mostra-se quase sempre muito forte e eficaz para com os fracos, ou que se encontram numa situação de fraqueza, mas, inacreditável e imponentemente fraca, incompetente e ineficaz quando se trata de enfrentar realmente os grandes interesses, sejam eles os financeiros, os políticos ou os corporativos, alimentando, aliás, a ideia de que é sempre mais fácil atacar e destruir pessoas pelas sempre cirúrgicas e impunes violações do segredo de Justiça do que investigar e obter, nos processos Judiciais, provas efectivas e a respectiva e fundada condenação. Como é sempre mais fácil – e mais ainda se com a ajuda da imprensa “amiga”[8] – fazer passar como verdade aquilo que não o é, mas antes corresponde à versão, ou até à conveniente mentira, da parte mais forte.
Por outro lado ainda, este é um mau, um péssimo caminho, que não podemos mais permitir que seja percorrido! Porque é por aqui que precisamente escapam os mais corruptos e os autores das maiores golpadas e desmandos. É por aqui que se mantém a impunidade e até a ausência da simples prestação de contas por parte daqueles a quem incumbia em primeiro lugar, prevenir e evitar, e, em segundo lugar, perseguir e sancionar todas estas patifarias e os respectivos responsáveis. É por aqui que a Verdade, a Justiça e a Dignidade valem cada vez menos e por onde o oportunismo, a demagogia e os discursos pretensamente anti-sistema passam e obtêm apoios.
É, pois, imperioso e urgente lutar por impor uma cultura democrática e de cidadania, que sujeite todos os Poderes, incluindo os da Política, da Justiça e das Corporações, à necessidade de falarem verdade, de assumirem responsabilidades e de prestarem contas por tudo o que, no exercício dos poderes de que estão investidos, fazem ou deixam de fazer. Temos que impor uma cultura de alto rigor ético que, independentemente de juízos e decisões de legalidade, submeta-os a todos, e em especial a todos os que exerçam funções públicas, e que não permita que “putas”, corruptos e falsários tenham lugar na nossa sociedade. Mas, antes e acima de tudo, é absolutamente necessário que cada um de nós se assuma, não como um “lutador de sofá” cheio de “activismo” para despejar comentários nas redes sociais, mas como um soldado activo e consciente neste quotidiano combate cívico por um mundo melhor, mais digno e mais justo!
António Garcia Pereira
[1] Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, do Ministério das Finanças, responsável pelo sector Empresarial do Estado e pelo Património Imobiliário e Apoios Financeiros do Estado.
[2] Empordef – Tecnologias de Informação, SA, é uma empresa de capitais exclusivamente públicos que afirma desenvolver soluções na área da simulação e treino virtual, de aprendizagem interactiva, e que integra o conjunto de participações sociais detidas pelo Estado através da chamada idD – Portugal Defence, a qual é também titular a 100% do capital social da “Arsenal do Alfeite, SA” e tem participações menores nas empresas OGMA, Naval Rocha, Extra – Explosivos da Trafaria, EiD e Edisoft.
[3] Agência Espacial Europeia, fundada em 1975 e contando actualmente com 22 Estados membros, que trabalha em todas as áreas do sector espacial (construção e lançamento de foguetões e satélites, treino de astronautas, exploração do espaço, etc.).
[4] Conforme noticiado pela TVI/CNN a 26/9.
[5] As irregularidades e suspeitas de crimes graves como os de corrupção e de gestão danosa haviam sido denunciadas em Março de 2009 por um ex-alto quadro da Empordef, que entregou ao Ministério Público uma “pen” cheia de documentos e informações, e passavam, entre outras coisas incluindo “habilidades” contabilísticas, pela ostensiva subvalorização de terrenos da Empresa, os quais haviam sido avaliados por uma entidade independente em 80 milhões de euros e estavam afinal contabilizados na Empresa pelo irrisório valor de 113 mil euros…
[6] O Direito da Concorrência da União Europeia – tal como invocou e demostrou a Comissão de Trabalhadores dos ENVC numa tomada de posição perante a Direcção-Geral da Concorrência que enfureceu o governo português, que propositadamente se recusou a defender os apoios dados aos Estaleiros – permitia tais apoios, quer por se tratar de empresa que fabricava equipamento militar (navios para a Marinha), quer porque a sua liquidação provocaria, como efectivamente provocou, um grave impacto económico e social.
[7] No dia em que se averiguarem e determinarem, a sério e por entidades verdadeiramente independentes (e não subordinadas de Gouveia e Melo), todas as intervenções e reparações que, com guias ou outros documentos, ou sem eles, foram desde então e até hoje efectuadas no “Mondego”, e a apreciação dos factos assim apurados puder ser feita serena, objectivamente e em pé de igualdade, a verdade, tal como o azeite, virá decerto ao de cima…
[8] São certos órgãos de comunicação social e os seus agentes que dispõem sempre de “fontes próximas” dos processos ou das instituições, e que aparecem, como que por milagre e a coberto do “segredo das fontes”, de posse de elementos ou informações cuja divulgação interessa a quem os disponibiliza e à respectiva versão dos factos. É também o caso das teorias da “rebelião”, dos “cabecilhas” e da “conspiração” para prejudicar a candidatura presencial do Almirante Gouveia e Melo, dos “suficientes níveis de segurança do navio”, etc., etc., etc.
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