As recentes notícias do caso já chamado “Luanda Leaks” – produto de uma alegada investigação jornalística levada a cabo pelo ICIJ (o Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação, que inclui jornais como o americano New York Times, o francês Le Monde e o britânico The Guardian, além do português Expresso) e incidindo sobre os anos desde 1980 até 2018 – bem como das atitudes relacionadas com a revelação da gigantesca riqueza milionária de Isabel dos Santos, filha do antigo presidente de Angola José Eduardo dos Santos e dos esquemas, financeiros, jurídicos e não só, por ela utilizados para essa sua acumulação, não podem nem devem ficar pela mera contemplação da espuma dos dias e antes devem merecer uma análise mais aprofundada.
Antes de mais, porque essa astronómica acumulação de riqueza (avaliada em 1,98 mil milhões de euros, pelo menos, e em 400 empresas em 41 países) foi, ao que os factos revelados indicam, conseguida sobretudo através da canalização de dinheiros públicos angolanos, em particular da empresa estatal Sonangol, para empresas, contas ou fundos privados, controlados e/ou titulados pela própria Isabel dos Santos ou por alguns dos seus “testas-de-ferro”, durante anos e anos a fio e com a utilização de entidades financeiras (como o Banco Eurobic e não só), a actuarem em Portugal. Tudo isto, não o esqueçamos também, com o apoio e assistência de multinacionais de auditoria e de consultadoria e de grandes sociedades de advogados, americanas e europeias, incluindo portuguesas.
E tudo isto também sempre sem que tais conselheiros, consultores ou auditores se tenham atempadamente demarcado de actuações irregulares ou até ilícitas que fossem chamados a apoiar, a executar ou até a encobrir e, mais grave ainda, sem que as entidades encarregues de fiscalizar o exercício das diversas actividades ali em causa, do Ministério Público ao Banco de Portugal e à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) tivessem tido até aqui qualquer tipo de actuação efectivamente reguladora, fiscalizadora e muito menos sancionatória.
E as autoridades portuguesas compactuam com isto?
Quanto às autoridades governamentais portuguesas (quer do actual governo, do PS, quer dos anteriores, fossem eles do PSD e CDS ou também do PS), a sua posição de fundo sempre foi, e desde há décadas, a de, em nome dos supostos “interesses estratégicos de Portugal em Angola” (leia-se, das empresas e bancos ligados aos negócios naquele país), não fazer ondas nem levantar qualquer “questão” que pudesse incomodar ou irritar Sua Excelência o então Presidente José Eduardo dos Santos, o seu governo e a clique dos seus apoiantes e beneficiários.
Recorde-se que, em Setembro de 2018, António Costa classificou mesmo como um “pequeno irritante” judicial a divergência entre as autoridades judiciárias portuguesas e angolanas acerca de quais seriam competentes para a instrução e julgamento de Manuel Vicente, ex-vice-presidente de Angola. E que Durão Barroso, então Presidente da Comissão Europeia, visitou Angola em 2012 e afirmou precisamente aquilo que o governo de José Eduardo dos Santos pretendia, ou seja, que Angola era uma “democracia madura” e, por isso, não precisava da observação eleitoral, independente das autoridades angolanas, que era reclamada na altura por toda a oposição e pela opinião pública democrática angolana.
Mais do que isso: as pouquíssimas vozes – de que sempre se destacou, honra lhe seja feita, a da ex-eurodeputada Ana Gomes – que se ergueram a denunciar quer as irregularidades e ilegalidades de Isabel dos Santos e do seu grupo, quer a conivência das autoridades portuguesas face a esquemas de transformação do nosso país numa gigantesca lavandaria de ganhos tão fabulosos quanto, no mínimo, suspeitos, foram de imediato desvalorizadas, descredibilizadas e até apresentadas, desde logo pelos próprios governantes portugueses, inclusive do próprio PS, como fruto de imaginações delirantes e de inaceitáveis espíritos persecutórios e, por isso, não merecedoras de qualquer crédito.
Em 2011, o antigo Embaixador Adriano Parreira apresentou em Portugal uma queixa-crime denunciando o desvio de fundos do erário público de Angola e o respectivo envio, numa operação de evidente lavagem ou branqueamento de capitais, para Portugal, apresentando explicitamente nomes de alegados envolvidos no caso.
E o que fez o Ministério Público português? Ao que foi noticiado, nunca constituiu quaisquer arguidos, arquivou parcialmente o processo em Agosto de 2014 (por despacho do procurador Paulo Gonçalves), reabriu-o um mês depois por um despacho do ex-Director do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Amadeu Guerra, criando, pelo menos por inabilidade ou por incompetência, uma novela judiciária de decisões e contra-decisões, com a consequência de o processo só ter regressado ao DCIAP, supostamente para a prossecução das investigações, em 2019.
A consequência “natural” desta forma de actuar é a de criar todas as condições para um posterior arquivamento dos respectivos autos já que o crime de branqueamento de capitais pressupõe a demonstração da existência de um crime anterior de onde provieram os ganhos ilícitos cuja origem se pretende dissimular (por exemplo, o de corrupção ou de fraude fiscal) e, se tal crime já tiver sido praticado há vários anos e ainda por cima em Angola, o procedimento criminal do branqueamento poderá entretanto prescrever ou já não ser possível depois, passados muitos anos, investigá-lo devidamente.
Porém, para procurar justificar toda esta inacção e/ou incompetência do Ministério Público português, as suas habituais “fontes” (leia-se, os informadores de certa imprensa) começaram logo a construir uma tese desculpabilizante dessa mesma inacção e a fazê-la passar para a opinião pública através dessa mesma imprensa.
O EuroBic lava mais branco?
Assim, e ao que constará dos documentos agora revelados, uma das operações de enriquecimento ilícito de Isabel dos Santos terá consistido na transferência (entre Maio e Novembro de 2017, quando estava à frente da Administração da Sonangol) de, pelo menos, 115 milhões de dólares de fundos da mesma empresa (logo, fundos públicos do Estado angolano) para uma empresa offshore sediada no Dubai, cujo titular seria uma sua amiga e testa-de-ferro.
Mas, mais do que isso, a conta bancária da Sonangol no Eurobic (banco privado de direito português, com sede em Lisboa, de capitais luso-angolanos, do qual, recorde-se, Isabel dos Santos é a principal accionista e cujo Presidente do Conselho de Administração é Fernando Teixeira dos Santos, ex-ministro das Finanças do último governo Sócrates), que tinha à data da demissão de Isabel dos Santos das funções de administradora da Sonangol qualquer coisa como 57 milhões de dólares, foi por completo esvaziada no próprio dia dessa demissão!
Ora, a tal tese desculpabilizante da inacção do Ministério Público perante todos estes alegados factos agora revelados publicamente passa pela invocação, não da ilegalidade na obtenção das ditas provas, mas sim do argumento de que os mesmos teriam ocorrido apenas em Angola e no Dubai (e também na Rússia, como se viu) mas não em Portugal, pelo que as autoridades portuguesas seriam incompetentes para investigar os ilícitos criminais em causa.
Sendo, porém, óbvio que alguns dos factos ocorreram mesmo em Portugal – é o caso da utilização e posterior esvaziamento instantâneo da conta da Sonangol no Eurobic – e perante as primeiras críticas acerca da sua inacção, a Procuradoria-Geral da República, que até agora não tinha instaurado qualquer inquérito sobre a nova factualidade entretanto revelada, afirmando apenas que “dará seguimento aos pedidos de cooperação judiciária internacional que lhe sejam dirigidos” (também, era o que faltava que não desse!…), lá veio referir também que “está atenta” aos acontecimentos, seja o que for que isso signifique em termos de actuação efectiva e sempre fazer qualquer observação acerca da validade ou da nulidade das ditas provas.
Importa de igual modo sublinhar que só depois de conhecidos e divulgados os elementos relativos a apenas cerca de 75 mil dos tais 715 mil ficheiros e só perante o clamor e a indignação que os factos indiciados justamente suscitaram (desde logo pelo que representam de exploração e de roubo ao povo angolano, mantido, não obstante as enormes riquezas naturais do país, na maior das misérias por uma clique de plutocratas convencidos da sua própria impunidade), é que começaram as reacções dos que até aqui eram mais próximos de Isabel dos Santos, bem como daqueles a quem precisamente competia regular, supervisionar, fiscalizar e sancionar este tipo de comportamentos ilícitos.
Os ratos abandonam o navio…
Numa patética e vergonhosa demonstração de cobardia, esses “valentes” amigos e colaboradores de Isabel dos Santos), ao verem o respectivo barco a afundar-se, saltam dele, agora e desesperadamente, ao pior estilo do “salve-se quem puder, que eu não quero é ir ao fundo com ela!”.
É assim que a famosa consultora multinacional Pricewaterhouse Coopers (PwC) – que tanto, e em tantas operações, apoiou Isabel dos Santos – já correu a anunciar o corte de relações com esta e a afastar do cargo o responsável máximo do seu departamento fiscal e de auditoria em Portugal (Jaime Esteves). Algo similar, mas só agora também, fez a administração Teixeira dos Santos do Eurobic, anunciando querer “cortar relações” com a empresária angolana, como se nunca se tivesse apercebido de onde vinham e para onde iam os fluxos financeiros das contas da Sonangol e de Isabel dos Santos e como se o banco não estivesse obrigado a aplicar apertadas regras, quer nacionais, quer comunitárias, de natureza prudencial e de combate ao branqueamento de capitais.
O Banco de Portugal – a quem compete a supervisão e fiscalização de todas as entidades financeiras a operarem em Portugal (e que até agora, e tal como nos casos do BPN e do BES, por exemplo, nada verdadeiramente tinha supervisionado nem fiscalizado), apressa-se a vir dizer que “está atento”, que já “criou um gabinete de crise para avaliar a situação” no Eurobic, e fez inclusive constar que estará “a pressionar no sentido de alterar a estrutura accionista do banco” para dela afastar Isabel dos Santos que detém 42,5% do respectivo capital.
A CMVM – que só acordou já em Janeiro deste ano com a notícia do arresto em Angola de bens de Isabel dos Santos – veio também apressadamente invocar que já acompanhava a situação há vários anos e que “está atenta” à mesma.
Tudo “atenções” a título póstumo, como se vê…
Até os amigos da organização da elite financeira e imperialista mundial denominada Fórum Económico Mundial – célebre pelos seus encontros anuais em Davos, na Suíça, onde se reúnem os principais líderes políticos e empresariais, bem como os mais importantes ideólogos e defensores do capitalismo financeiro mundial – já fizeram saber que Isabel dos Santos não é convidada para o próximo Encontro…
Manter-se-á a impunidade?
É óbvio que todas estas manobras de última hora não podem servir para mascarar ou branquear as responsabilidades jurídicas, políticas e sociais de todos aqueles que, seja por acção directa e até empenhada, seja por criminosa inacção, se comprove terem sido co-autores, executantes materiais ou cúmplices dos crimes cometidos, em particular contra o povo angolano. E, por isso mesmo, estes não podem pensar que se safam de prestar contas perante os Tribunais e perante os cidadãos por aquilo que fizeram ou, como Pôncio Pilatos, não fizeram.
Mas a verdade é que também não pode passar em claro a repugnante miséria moral de todos os “ratos” que, vendo agora em perigo a situação de que sempre beneficiaram, tratam de morder a mão que até aqui sempre lhes servira para lhes dar a comer da respectiva gamela.
E não, também não podem escapar impunes todos aqueles que, do alto dos seus cargos públicos e em nome do tal princípio da defesa dos interesses estratégicos de Portugal em Angola (que é, afinal, o mesmo princípio que o imperialismo americano defendeu e defende para justificar as invasões do Afeganistão, da Líbia, do Iraque e da Síria e para apoiar regimes terroristas e sanguinários como os da Arábia Saudita e da Turquia), sempre nada fizeram para prevenir e sancionar as ilegalidades. Antes procuraram descredibilizar e silenciar todas as vozes que, como Ana Gomes, ousaram denunciar o escândalo quer da construção de fortunas fabulosas à custa dos mais duros e extremos sacrifícios do povo angolano, quer do apoio, directo ou indirecto, por parte de entidades portuguesas, nomeadamente de autoridades públicas, a tal saque.
E é só ver o silêncio vergonhoso e envergonhado a que se submetem no momento presente os principais responsáveis dos partidos políticos portugueses que, nas últimas décadas, foram governo – ou o apoiaram… – para se perceber como estão à espera que “a onda passe” e que ninguém lhes exija responsabilidades.
Perguntas incómodas que não podem deixar de ser respondidas
Há, finalmente, duas questões (muito) incómodas a que, aparentemente, ninguém quer responder.
A primeira é esta: porque é que em Portugal, regra geral, a Justiça só avança verdadeiramente contra grandes responsáveis, sejam eles governantes, deputados, banqueiros ou dirigentes desportivos, quando eles deixam de ocupar esses cargos? O último caso, e particularmente significativo, é o de Tomás Correia (que só agora foi objecto de buscas domiciliárias – à procura de encontrar o quê ao fim de todo este tempo?! – apesar das sucessivas denúncias que desde há largos anos contra ele vinham sendo apresentadas), mas o mesmo sucedeu com, por exemplo, Vale e Azevedo, José Sócrates, Duarte Lima e Ricardo Salgado. Será que a deficiência de meios, materiais e humanos, e as dificuldades na cooperação judiciária internacional permitem explicar cabal e completamente aquela tendência? Ou será que, afinal, em vez do princípio da legalidade (como manda o Código do Processo Penal) temos um mais ou menos encapotado “princípio da oportunidade”, em que o Ministério Público desencadeia, ou pelo menos desencadeia a sério, a acção penal (apenas) se e quando o acha conveniente? E quem, uma vez mais, controla isso?
A segunda destas questões é a seguinte: porque é que, relativamente a todos estes dados e documentos (715 mil ficheiros e 356 gigabytes de dados acabados de revelar pelo ICIJ, tal como, aliás, já sucedera com os chamados “Panama papers”), nenhuma das entidades e autoridades portuguesas, agora que vêm prometer a atenção e a acção que não tiveram no passado, se parece preocupar com a licitude ou ilicitude da sua origem?
É que, sendo óbvio que não foi Isabel dos Santos que “gentilmente” cedeu os documentos que servem para a incriminar, é também evidente que eles só podem ter surgido nas redacções dos órgãos de informação que compõem aquele consórcio jornalístico porque alguém primeiro acedeu, de forma não autorizada e, logo, ilegítima ou indevida, a ficheiros, mails e sistemas informáticos de pessoas singulares, empresas, bancos, consultoras, auditoras e até porventura escritórios de advogados, cometendo assim um ou vários crimes de acesso ilegítimo ou indevido e depois os fez chegar àqueles mesmos órgãos de imprensa. E. tratando-se de intromissões abusivas (porque não executadas no âmbito dum determinado processo-crime, autorizadas por despacho de um juiz de instrução e executadas por uma autoridade judiciária), as provas assim obtidas serão, do ponto vista jurídico-penal e por força do disposto expressamente no nº8 do artº 32º da Constituição, irremediavelmente nulas e de nenhum efeito.
Então, Banco de Portugal, CMVM e sobretudo a Justiça portuguesa, designadamente a Procuradoria-Geral da República e o Ministério Público, agora e neste caso dizem estar particularmente atentos e prometem mesmo actuar perante factos susceptíveis de integrar vários e gravosos ilícitos criminais, porém revelados mediante o tal acesso indevido e ilegítimo a dados e documentos, tudo isto sem se preocuparem com a natureza ilícita dos acessos e com a nulidade jurídica das provas que deles possam resultar mas, no caso de Rui Pinto, já adoptam a postura exactamente oposta? Porquê?
Que outra explicação existe para esta total contradição de critérios que não seja a da natureza das matérias e da identidade dos eventuais envolvidos nos documentos a que o mesmo Rui Pinto terá acedido e que, segundo já foi ampla e publicamente noticiado, dirão respeito não apenas ao mundo do futebol, à corrupção nele existente e aos obscuros interesses políticos e económicos que nele gravitam, mas também à própria Procuradoria-Geral da República e a concretos processos judiciais, como os da Operação Marquês, do BES/GES e até de Tancos (e haverá outros ainda)? Será que, por exemplo, existem (mais) instruções hierárquicas secretas para se efectuarem ou, mais ainda, não se efectuarem diligências em determinados processos, como foi tornado público que aconteceu precisamente no processo de Tancos? Que outros segredos inconfessáveis se pretende, afinal, continuar a esconder?
Enquanto os ratos saltam desesperadamente para fora do barco de Isabel dos Santos a afundar-se, importa também que se averigue e se descubra o que afinal os altos responsáveis do Ministério Público, e não só, temem que os ditos ficheiros e mails acedidos por Rui Pinto possam revelar!
António Garcia Pereira
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