A palavra de ordem “Nem um passo atrás!” volta a ressoar, gritada pelos estivadores, e não só pelos de Setúbal, mas também pelos seus camaradas de trabalho de todos os outros portos do país, em solidariedade para com aqueles.
Mas o que se passa, afinal, com o trabalho portuário, em particular no porto de Setúbal?
Antes de mais, o trabalho portuário é regulado por uma lei[1] que foi objecto de uma revisão em 2013[2]que transformou os portos portugueses num autêntico paraíso de contratação precária.
Assim, de acordo com o artº 7º dessa Lei, os chamados contratos de muito curta duração (que é possível irem até ao máximo de 15 dias e que no sector portuário são ao dia ou até ao turno!?) podem ir até ao escandaloso limite máximo, por cada empregador, para a actividade de movimentação de cargas, de 120 dias de trabalho em cada ano civil. Isto significa que se os patrões portuários usarem da habilidade de criar duas empresas juridicamente distintas, podem contratar a totalidade dos estivadores que operam num determinado porto com contratos ao dia ou “à jorna” durante todo o ano (120 dias úteis formalmente com uma das empresas e os outros 120 dias com a outra), e isto durante anos ou até décadas a fio, como precisamente sucede em Setúbal.
Por outro lado, enquanto por força do Código do Trabalho[3], no caso das médias ou grandes empresas, o número máximo de horas de trabalho suplementar é de 150 horas por ano, na prestação de trabalho portuário esse limite é elevado para o número astronómico de 250 horas por ano, podendo mesmo este número ser ainda aumentado por acordo da empresa ou contrato colectivo de trabalho.
Este regime legal – que violenta por completo o princípio constitucional da segurança no emprego[4] pois que contratação temporária e trabalho suplementar apenas deveriam ser usados em situações excepcionais e temporárias por natureza – transformou-se, sobretudo a partir da alteração de 2013, num autêntico maná para os patrões dos portos, os quais têm podido acumular lucros de milhões e milhões à custa do uso e abuso do recurso ao trabalho extraordinário e, sobretudo, da contratação esclavagista “à jorna”, bem como das condições miseráveis, desde logo de remuneração, que ela possibilita.
No concreto caso de Setúbal, chegou-se mesmo ao cúmulo de, não obstante o volume da actividade portuária justificar pelo menos cerca de uma centena de trabalhadores permanentes, a empresa Operestiva ter apenas 30 trabalhadores com contratos permanentes, e simultaneamente dispor de 2 bolsas de eventuais, de 150 trabalhadores cada!
Ou seja, num porto em que se existissem cerca de 100 trabalhadores com vínculos permanentes eles estariam sempre a trabalhar, os patrões querem ter, e têm tido, menos de 1/3 desse número com contratos sem prazo, e todos os restantes “ao turno”.
Entretanto, e desde há já alguns meses, os trabalhadores permanentes associados do SEAL – Sindicato dos Estivadores e da Actividade Logística, vinham levando a cabo uma greve (apenas) às horas extraordinárias, em protesto contra perseguições e discriminações levadas a cabo contra os seus filiados. No porto do Caniçal, na Madeira, por exemplo, todos os associados estão confrontados com processos disciplinares que apontam para o respectivo despedimento, e em Leixões verifica-se uma sistemática discriminação quer nas remunerações pagas, quer na atribuição de trabalho aos filiados do SEAL.
Acontece que em 5 de Novembro, fartos da precariedade extrema e do ambiente de intimidação e coacção por parte da administração da Operestiva a que se encontram sujeitos, os 93 trabalhadores “à jorna” passaram a mostrar-se indisponíveis para continuarem a trabalhar nessas indignas condições.
Tanto bastou para que o porto de Setúbal paralisasse por completo, numa claríssima demonstração de que há mesmo uma necessidade permanente do trabalho de um elevado número desses trabalhadores precários e, consequentemente, que eles deveriam era estar integrados no quadro, com contratos sem termo.
Ora, o que fizeram então não só os patrões, mas também os governantes?
Primeiro, começaram, uns e outros, por negar que existisse precariedade totalmente injustificada (e, logo, por completo ilegal) no porto de Setúbal. De seguida, e enquanto a ministra do Mar vinha declarar reconhecer o que antes sempre negara, a Operestiva começou a tentar contratar quem furasse a paralisação dos estivadores, mas não logrando obter êxito nessa manobra pois a grande maioria dos contratados rejeitou pronta e vigorosamente essa possibilidade.
Depois e como, apesar de todas as pressões e intoxicações da opinião pública (designadamente procurando imputar-lhes até o pôr em causa a subsistência da Autoeuropa) contra elas levadas a cabo, os estivadores do porto de Setúbal se mantivessem unidos e firmes, eis que o Governo e patrões, na quinta-feira 22 de Novembro, levaram a cabo uma autêntica operação de verdadeira pirataria:
Mandaram vir para Setúbal o navio “Paglia” (que, tendo sido embora detectado pelos estivadores no Marine Vessel Traffic[5] foi até ao limite ocultado na plataforma digital “Janela Única Portuária”[6]!!) e impuseram pela força que o embarque de automóveis da Autoeuropa fosse feito por trabalhadores contratados ainda agora não se conhece onde (fora do sector da própria estiva?), mas com condições (500€ diários, mais alojamento e alimentação por 3 dias de trabalho) inacreditavelmente superiores às pagas aos estivadores do porto. E fazendo com que tais substitutos dos grevistas fossem transportados às escondidas, num autocarro de vidros escuros, e a sua entrada no porto imposta pela força de dezenas e dezenas de polícias do Corpo de Intervenção e das chamadas Equipas de Intervenção Rápida da PSP, os quais arrastaram à força os estivadores grevistas, para assim abrirem caminho à consumação da ilegalidade da substituição de grevistas, frontalmente proibida pelo Código do Trabalho[7]. Tudo isto em execução de um plano minuciosamente preparado e levado à prática pelo mesmíssimo Governo que, ainda na véspera, tratara de se apresentar como o melhor amigo dos estivadores.
Mas como ainda assim os estivadores do porto de Setúbal, com a solidariedade activa dos seus camaradas dos outros portos, não quebrassem, não dessem um passo atrás e antes prosseguissem na sua luta, eis que o Governo ensaia nova manobra, desta vez com a rábula do polícia bom e do polícia mau. Enquanto a Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, volta aos discursos sobre a precariedade e trata de marcar reuniões de “negociação” em que se diz “muito empenhada”, o Primeiro Ministro António Costa – primeiro responsável pela repressão da polícia sobre os trabalhadores em greve – volta ao ataque contra o SEAL, permitindo-se afirmar que ele “felizmente não está disseminado” (como se o sindicalismo fosse um qualquer vírus infeccioso…) “em muitos outros portos”, e ainda, e à boa maneira cavaquista, que tal sindicato “é uma fortíssima condicionante ao bom funcionamento do porto”. É a versão recauchutada da velha lengalenga fascista dos agitadores ao serviço de interesses inconfessáveis que põem em causa o bom funcionamento das instituições!…
Por outro lado, com a arrogância e o desplante próprios dos representantes dos Capital, o administrador da Operestiva, Diogo Vaz Marecos, ataca os estivadores em luta, ataca o Sindicato que, ao invés de outros, ele não consegue domesticar, e mostra-se “muito preocupado” com a Autoeuropa. A mesma Autoeuropa, aliás, que, por incompetência dos seus administradores, já paralisou por várias semanas por rupturas no abastecimento de peças….
Mas é esse mesmo administrador que foge a explicar, por exemplo, quem são e como foram contratados os trabalhadores “paralelos” do golpe de 22 de Novembro ou as razões dos processos disciplinares da Madeira. E que, ao mesmo tempo que fala em “prejuízos” decorrentes da greve, se esquece de informar qual foi o montante dos lucros já alcançados em Portugal pelo Grupo turco Yilport, o qual, através da sua participada Sadoport, é quem detém a Operestiva. E que já tem também nas mãos quase toda a movimentação de contentores nos portos nacionais, a saber: terminal de Leixões, Liscont e Sotagus em Lisboa, Socarpor em Aveiro (com duas concessões), Sadoport e Tersado em Setúbal e Liscont na Figueira da Foz.
Não se trata, pois, de uma pequena e modesta empresa portuguesa, mas de uma gigantesca e poderosa multinacional, pelo que aquilo que os estivadores “David” estão mesmo a enfrentar e a fazer recuar é um enorme patrão Golias!
Ora, o que os estivadores de Setúbal e o SEAL pretendem é básico, mas essencial:
– solução global, e não parcial, da contratação de 93 trabalhadores de forma permanente: desde já 56 (nos quais, naturalmente, não se incluem os 10 que a empresa entretanto conseguiu forçar a aceitar a contratação pelas condições por ela ditadas) e os restantes 27 numa fase posterior, mas tendo de imediato prioridade na contratação por turno;
– integração de todos no nível salarial correspondente ao tempo de serviço que já contam desde que começaram a trabalhar, em regime de precariedade ilegal, para a Operestiva;
– negociação de um contrato colectivo de trabalho que defina uma solução global para todos os trabalhadores do porto e que permita pôr fim às discriminações salariais e às manobras divisionistas e intimidatórias por parte dos patrões.
Trata-se, assim, de combater pelo fim de um sistema em que centenas de trabalhadores não sabem nunca quando irão trabalhar e em que, quando tal sucede, são então explorados até ao tutano! O fim de um sistema em que a contratação ultraprecária é usada para preencher necessidades obviamente permanentes de trabalho e para permitir o arrecadar de lucros astronómicos. O fim de um sistema em que a luta dos trabalhadores por direitos básicos como o da contratação colectiva e o do princípio do “a trabalho igual, salário igual” constitui pretexto para toda a sorte de discriminações (designadamente não os chamando para trabalhar) e/ou de perseguições (como os processos disciplinares do Caniçal).
Esta luta é, assim, mais que justa e por isso merece, e tem tido, todo o apoio solidário dos trabalhadores de outros portos, quer nacionais, quer estrangeiros, e de inúmeras outras empresas, inclusive a própria Autoeuropa.
E a firmeza deste combate e aquilo que ele já conseguiu alcançar, ao mesmo tempo que já permitiu desmascarar o Governo do Sr. Costa, os seus apoiantes e a sua conversa dita de “esquerda”, constitui ainda uma bela e mesmo emocionante demonstração de que vale sempre a pena lutar por aquilo que é justo e um importante exemplo a ser seguido por todos os que vivem do seu trabalho.
E que, por isso mesmo, a palavra de ordem que deve agora, sobretudo agora, ressoar por toda a parte é ainda e sempre a de “Nem um passo atrás!”.
António Garcia Pereira
[1]Dec. Lei nº 280/93, de 13/8.
[2]Lei nº 3/2013.
[3]Cf. artº 228º, nº 1, al. b).
[4]Consagrado no artº 57º da Constituição.
[5]Sistema de monitorização da localização em tempo real de embarcações em qualquer parte do mundo.
[6]Plataforma de informação portuária electrónica contendo a informação das escalas de navios e movimentação de mercadorias.
[7]Cf. artº 535º.
Pague se o justo valor a quem trabalha e conceder lhes os respetivos direitos
O tempo da escravatura jà là vai pague se o justo valor a quem trabalha e conceder lhes os respetivos direitos