Foi ontem assassinada a 13ª vítima de violência doméstica em 2019.
No momento presente, quando felizmente se generalizou o debate sobre as decisões do juiz desembargador Neto de Moura – e se foi, também, conhecendo um maior número delas – começaram igualmente a surgir “argumentos” tendentes a desculpabilizar, senão mesmo a justificar, a sua conduta e a forma impune, e inclusive valorizada, com que ela pôde ir sendo sempre assumida.
E até porque tais “argumentos” têm sido repetidos e alguns deles foram logo prestimosamente esgrimidos pela incontornável Associação Sindical dos Juízes Portugueses e, acima de tudo, pelo seu Presidente da Direcção, o juiz desembargador Manuel Soares (também ele autor de decisões inenarráveis no campo das violências sexuais, como seja o Acórdão sobre o caso da jovem violada, quando se encontrava inconsciente, num bar/discoteca de Gaia), importa analisá-los e dissecá-los devidamente.
1º “Não se deveriam debater decisões judiciais.”
O primeiro desses “argumentos” mistificatórios, usado não raras vezes por aqueles que nestas ocasiões se preocupam em ostentar uma imagem de pretensa serenidade, é o de que afinal não se deveriam debater (ou pelo menos com esta intensidade) as decisões do juiz Neto de Moura porque a Justiça deve ser mantida no seu manso recato e tal discussão só geraria maiores problemas e perturbações ainda.
Ora, é evidente que as decisões judiciais – todas elas, mas sobretudo as que confrontam e violentam preceitos e princípios constitucionais basilares – podem e devem ser debatidas pelos cidadãos.
Antes de mais, por os Tribunais serem um órgão de soberania e os juízes estarem investidos de poderes de autoridade tão fortes e tão violentos que podem chegar a privar da liberdade um dos seus concidadãos durante 25 anos (condenando-o por homicídio) ou a privá-lo da sua casa (decretando um despejo) ou do pão para a sua boca e a dos seus filhos (confirmando um despedimento).
E muito em particular se se trata, como é o caso, de órgãos de soberania sem legitimidade democrática assente em eleições e em que, por isso mesmo, as preocupações de controle democrático e de responsabilização pela forma como aqueles poderes são exercidos têm de ser ainda mais exigentes.
Por isto mesmo, se todos os actos e decisões da Administração que afectem direitos e interesses legítimos dos cidadãos têm que ser fundamentados de forma expressa e acessível por virtude do preceito do artigo 268º, nº 3 da Constituição, tal exigência de fundamentação é ainda mais apertada e exigente relativamente às sentenças judiciais, por força do artigo 205º, nº 1, da mesma Constituição.
A necessidade democrática da justificação do exercício de todos os poderes estatais, incluindo naturalmente os judiciais, bem como da avaliação de todos os respectivos actos e da rejeição do segredo destes, impõe que as sentenças se tenham de caracterizar pela sua clareza, pela sua inteligibilidade e pela sua conformidade com a Lei Fundamental do país, ou seja, com as normas, com os princípios e com os valores constitucionais.
O conhecimento, a compreensão e o público debate de decisões, em particular de decisões como as do juiz Neto de Moura, constituem assim uma exigência cívica básica. E por isso todos os cidadãos têm não só o direito, mas até também o dever de cidadania de as discutir e debater. Sem insultos e sem recurso a meios vis e mesquinhos. Mas de forma intensa, dura, violenta até. Pois que a violência não reside propriamente no rio de protestos e de críticas contra tais decisões, mas sim nas apertadas e asfixiantes margens de uma postura jurisprudencial que o comprimem.
Por outro lado, importa ter presente não só que – tal como se tem vindo a descobrir – as duas decisões mais conhecidas do juiz Neto de Moura não corresponderam a qualquer desequilíbrio ou desvario momentâneo dele, mas antes a uma prática reiterada ao longo dos anos, como também que há inúmeros, demasiados mesmo, outros Netos de Moura. E não só nos Tribunais Criminais. Também nos Tribunais de Família e Menores, com juízes adeptos fervorosos das tristemente famigeradas teorias da alienação parental a forçarem a guarda partilhada e a residência alternada de menores filhos de vítimas de violência doméstica, expondo as vítimas e as crianças (que também são vítimas) a correr perigos, inclusive de vida, dramaticamente já concretizados nalguns casos.
E igualmente nos Tribunais do Trabalho, com juízes a proclamarem “não terem de pôr a mão debaixo dos trabalhadores”, a gabarem-se de nunca terem feito um julgamento em casos de despedimento colectivo ou até a consagrarem que os empregadores privados teriam o direito de terem gestões ruinosas.
2º “Os cidadãos não possuem conhecimentos suficientes para poderem debater acórdãos.”
A segunda mistificação é, e isto em linha recta com a anterior, a de que os cidadãos, além de não deverem discutir e debater decisões judiciais, também não estariam em condições de o fazer por não disporem para tal de suficientes conhecimentos técnicos, apenas ao alcance do corpo de elite dos juízes ou, no máximo, dos juristas.
Ora, esta é uma ideia tão profundamente corporativa quanto errada, que passa pelo preconceito (mais um…) de que os juízes, assim que entram para a sua escola de formação, o CEJ – Centro de Estudos Judiciários, seriam objecto de um “toque divino” que os colocaria acima do comum dos mortais, os quais seriam, em oposição àqueles, pressionáveis, impressionáveis, preconceituosos e até ignorantes. E, logo, merecedores de muito menos respeito e consideração que Suas Excelências,
O que temos aqui é uma concepção e uma prática – consolidadas ao longo de 48 anos de ditadura e que não foram beliscadas, muito menos demolidas, na sequência do 25 de Abril de 1974 – que pretendem continuar a ver e a impor em todos os actos judiciais e a todos os cidadãos o tratamento próprio dos Tribunais do fascismo, em particular dos famigerados Plenários (cujos responsáveis, relembre-se, permaneceram completamente impunes…), a cuja autoridade todos teriam que dobrar a cerviz.
Concepção e prática essas que passam pelo desprezo ancestral pelos Tribunais de júri. Como também pela sucessiva desvalorização da constitucionalmente obrigatória fundamentação, necessária e suficiente, das decisões judiciais, de modo a que elas se imponham ao conhecimento e, pela sua justeza, ao respeito da comunidade. E ainda pela incapacidade de suportar o contraditório e de debater em pé de igualdade estas matérias.
Está perfeitamente ao alcance do cidadão comum saber e determinar se é aceitável procurar justificar a benevolência com que é tratado pelo Tribunal um determinado agressor violento com o “argumento” de que a mulher é adúltera e, logo, não é de confiança, ou de que, embora a vítima estivesse inconsciente e logo não tivesse consentido em qualquer acto sexual, como a noite fora supostamente de “muito álcool e sedução”, a sua violação não se revelaria de ilicitude particularmente acentuada.
Aqui não há nenhum problema da lei ou das suas possíveis interpretações. Há, sim, uma conduta anti-lei do próprio juiz, ditada por preconceitos ideológicos contrários à nossa Constituição e que não podem de todo passar por “argumentos”.
3º “A discussão foi longe demais.”
A terceira mistificação é a de que a discussão já foi longe demais e, como logo se apressou a clamar o juiz desembargador Manuel Soares (colega de Neto de Moura no Tribunal da Relação do Porto, Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses e co-autor do Acórdão do referido caso de violação no bar de Gaia), “um juiz tem direitos” e “não é um saco de pancada”.
Mas, oh Deuses do Olimpo, quem antes de mais tem direitos, e não é de todo um saco de pancada, é cada uma das mulheres vítimas de violência doméstica que viram as agressões e os espezinhamentos quotidianos dos seus direitos, à integridade física, à integridade moral, à dignidade pessoal, serem em Tribunal grosseiramente desvalorizados e não só pelo juiz Neto de Moura como também por todos aqueles que com ele concordaram ou até subscreveram os respectivos Acórdãos.
Obviamente que as decisões judiciais, como todas as decisões de quem tem poderes de autoridade, têm de estar sujeitas à crítica. E até pode haver críticas injustas ou infundadas, embora no caso das decisões de Neto de Moura não tenha conta de nenhuma…
O que acontece é que os juízes de uma forma geral, e Neto de Moura não é excepção, não estão habituados nem a verem as suas decisões ser confrontadas e rebatidas, menos ainda publicamente (que saudades dos tempos em que não havia publicação generalizada dos Acórdãos e as respectivas assinaturas eram ilegíveis!…), nem a terem de discutir em pé de igualdade com os outros cidadãos relativamente aos quais se arrogam a tal “aura” de pretensa superioridade moral, que não têm, nem podem ter!
E, sim, “exagerado” foi quem – uma vez mais do alto da sua “cátedra” – julgou que podia calar as vozes dissonantes e críticas com o único instrumento que, pelos vistos, sabe utilizar, ou seja, a força da máquina judiciária. Onde, ainda por cima, e sob a invocação do artigo 17º, nº 1, al. h) do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei nº 21/85, de 39/7) e o pretexto de que se trata de processo em que o juiz é parte por via do exercício das suas funções, ele goza de isenção total de custas ao contrário dos cidadãos por ele demandados, que as têm de suportar do seu bolso.
4º “O Conselho Superior da Magistratura não pode intervir disciplinarmente.”
A quarta mistificação é a de que o CSM – Conselho Superior da Magistratura não poderia intervir disciplinarmente (outra vez, visto que já aplicou a Neto de Moura uma pena de… advertência), porquanto as barbaridades por este proferidas nos Acórdãos – e apresentadas singela e simpaticamente como trechos “menos felizes” ou “menos adequados” – constituiriam “matéria jurisdicional”, isto é, respeitariam a um aspecto jurisdicional da actividade dos Tribunais que o princípio da independência dos juízes impediria de ser objecto de actuação disciplinar.
Este argumento pode, à primeira vista, parecer interessante, mas a verdade é que não resiste a uma argumentação mais funda e com base em princípios.
É que exactamente o princípio da independência dos juízes na sua função de julgar pressupõe que os mesmos a exerçam vinculados à Lei e à Constituição. Um comportamento de um juiz que revele a mais completa falta de respeito pelos cidadãos em geral e muito em especial por pessoa referida na respectiva sentença (e, desde logo, a própria vítima), e/ou que recorra à utilização de expressões manifestamente ofensivas ou desrespeitosas da dignidade da pessoa humana, para além de poder constituir a prática de um crime (como o de difamação, por exemplo), configura ainda uma óbvia violação de deveres ético-disciplinares e, desde logo, os da manutenção da dignidade, do decoro, da probidade e da sobriedade no exercício da função e o do respeito pelos outros.
Não é, com efeito, o facto de numa dada decisão judicial se fazerem “argumentações” ou até se citarem muitos artigos da lei que permite transformar uma qualquer conduta num acto dito jurisdicional, eximindo-o à responsabilidade disciplinar ou até também penal.
Dito de outra forma: uma coisa são divergências de opinião e de interpretação das normas jurídicas e outra, completamente distinta, é arvorar em “fundamentação” das sentenças, preconceitos e atoardas ideológicas, não só social e civicamente indecorosas, como constitucionalmente inaceitáveis.
Um juiz não pode eximir-se às suas responsabilidades quando desculpabiliza ou trata benevolamente um agressor e/ou quando desconsidera a prova decorrente de depoimentos. Sejam eles o da vítima (sob o pretenso argumento do que ela é, ou até simplesmente de que há a suspeita de que seja, adúltera e, logo, é “uma pessoa que mente, engana, finge. Enfim, carece de probidade moral” – sic) ou de testemunhas de raça negra ou de etnia cigana (sob o “argumento” – que, um dia destes, e se tal permitíssemos, também estaríamos a ter de ler em nome da “independência dos juízes” – de que “é sabido que estes mentem muito” ou algo similar).
Aliás, convirá porventura recordar aqui que, por exemplo, na vizinha Espanha, há cerca de uma década e meia, que este entendimento da responsabilidade disciplinar dos juízes por este tipo de aleivosias se encontra pacificamente firmado.
E aqueles juízes dignos da toga que envergam – que os há, e bastantes, como é óbvio! – que, num primeiro impulso, e nomeadamente sob a preocupação da sua própria independência, tendam a evitar pronunciar-se, de forma clara, contra as aleivosias de Neto de Moura e afins, deveriam antes reflectir um pouco e verificar que a sua classe só se dignifica se, precisamente, eles se demarcarem com clareza daquele tipo de decisões.
5º “O CEJ e o CSM nada podem fazer.“
A quinta mistificação é a da que nem o CEJ nem o CSM (isto, para além da responsabilidade disciplinar) poderiam fazer o que quer que fosse relativamente a reaccionarices e incorrecções paleolíticas como as de Neto de Moura, as quais se transformariam assim numa espécie de inelutável fatalidade do destino.
Ora, isto não é de todo verdade!
No que respeita ao CSM, a grande questão que há que colocar é a de saber como é que um juiz que assim actua e, mais, actua de forma reincidente, pode afinal ser classificado de “Muito Bom” e progredir tranquilamente na carreira (sendo já juiz desembargador, um dia destes ascenderá mesmo a juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça)?
Dito de outra maneira, o que tudo isto põe também a claro é que – magna questão esta que desde logo o próprio CSM pretende evitar que se discuta – os critérios de avaliação e classificação dos juízes estão profundamente errados.
Na verdade, com tais critérios – propositadamente não conhecidos da generalidade dos cidadãos – o mesmo CSM está a criar uma determinada figura de juiz ideal, que é a do juiz “bem comportado”, que “tira os processos de cima da secretária” (ou seja, que “avia” muitos processos, o que é bem diferente de decidir muito bem os mesmos processos…), que se mostra submisso e colaborante com a “chefia” e o Conselho.
E também com outros mecanismos como o da figura – que considero inconstitucional por, essa sim, ser violadora do princípio da independência dos juízes – do Juiz Presidente da Comarca, que até pode fixar objectivos aos juízes sob a sua “autoridade” ou retirar-lhes processos e atribuí-los a outros juízes com o CSM a homologar tal tipo de decisões.
A isto acresce que os critérios para preenchimento de vagas nos Tribunais superiores, nomeadamente privilegiando o número de anos de exercício de funções no próprio CSM, no CEJ ou até em cargos políticos, encerram o círculo vicioso da definição de quantos podem chegar, mais ou menos célere e facilmente, ao topo da carreira.
Por outro lado, perante os Netos de Moura da nossa praça, também o CEJ não pode mais eximir-se a que se discuta que tipo de quadros mentais e de estrutura de carácter ele afinal forma, primeiro, e fomenta, incentiva e reproduz, depois.
Todas as escolas que vejam um dos seus antigos membros actuar da forma como Neto de Moura tem actuado no exercício da função de juiz não podem deixar de se interrogar sobre o que terá corrido mal e o que será necessário corrigir no futuro. Todas, excepto, pelos vistos, o sempre imperturbável e sempre imperturbado CEJ…
Face a tudo isto que conclusão tirar? A de que temos de ser nós, cidadãos, a impor que a violência doméstica, e até o homicídio das suas vítimas, não mais possam continuar a ser tratados como um género de fatalidade ou, pior, uma espécie de justo castigo que, embora um pouco duro, seria “compreensível” e até “socialmente aceitável”.
Porque, também aqui, os lobos podem perder os dentes, mas não perdem nunca os intentos!…
E não é o facto de Neto de Moura ter acabado de ser transferido da secção criminal do Tribunal da Relação do Porto para a secção cível, por decisão do respectivo Presidente, Nuno Ataíde Neves, que pode impedir ou abafar a necessária e saudável discussão cívica.
Em Junho de 2018 – cerca de 8 meses depois do tristemente célebre Acórdão das citações bíblicas e de 4 meses antes da nova barbaridade de 31 de Outubro de 2018 – Neto de Moura foi apresentar um requerimento da sua escusa num recurso que fora interposto num determinado processo de violência doméstica. Não para se reconhecer espontaneamente incapaz de ter uma posição de isenção em tal tipo de processos, mas, como escreveu em tal requerimento, para se apresentar vítima de uma “campanha de ódio e de instigação à violência” contra ele supostamente desencadeada por parte de algumas pessoas “cavalgando a onda da mentira e deturpação” e que o estariam “a denegrir para provocar uma reacção contra ele por parte do CSM” (a quem, aliás, acusa tão explícita quanto impunemente de ser a fonte da informação e a origem de notícias sobre o próprio).
E “argumenta”: “tem-se andado a escabichar as decisões em que intervim (seja como relator, seja como adjunto) para as pôr em causa e encontrar um pretexto qualquer que seja para prosseguir a campanha persecutória e pressionar o CSM a agir contra si” (sic, do mesmo requerimento de escusa transcrito no Acórdão do STJ de 14/6/18, no Processo nº 748/17.0PBMAI-A.P1-A.SI).
Neto de Moura segue, pois, em contramão na auto-estrada, a mais de 200km/hora, clamando azeda e violentamente contra todos os outros condutores que, em sua opinião, persistem em circular em sentido proibido…
António Garcia Pereira
Mais uma lição de clarividencia e de sabedoria. Obrigado, Dr.