É indiscutível que os grandes avanços tecnológicos, em particular os das chamadas Novas Tecnologias da Comunicação e Informação, conhecidos nos últimos 30/40 anos, representaram não só um conjunto de enormes progressos como uma profundíssima alteração do modo de funcionamento da actividade económica, financeira, social e política.
Tais avanços permitiram, entre outras coisas, armazenar e tratar quantidades astronómicas de dados e informações, guardar num chip do tamanho de um alfinete mais documentação do que aquela que há décadas atrás ocuparia um quarteirão inteiro, colocar sondas em Marte, instalar num smartphonemais tecnologia do que aquela de que se dispunha na primeira nave espacial que foi à Lua e automatizar e robotizar uma parcela cada vez mais significativa de actividades até aqui desempenhadas por homens e mulheres (da produção industrial à realização e interpretação de exames de diagnóstico, por exemplo).
Mas a verdade é que tais novas tecnologias também estilhaçaram as noções tradicionais de espaço e de tempo, permitindo comunicar instantaneamente de uma ponta para a outra do mundo e desenvolver actividades, como as económicas e financeiras, 24 horas por dia, transformando o muito curto prazo de 24 horas dos anos 80 do século passado nos próximos 2,4 segundos de 2019.
Com este enorme avanço tecnológico, a própria actividade produtiva (que não já apenas a comercialização e distribuição de bens e serviços) mundializou-se, passando a possibilitar aos grandes interesses financeiros do mundo articularem organizações em rede funcionando 24 horas por dia, passando o essencial da produção para os chamados “países emergentes” ou da “periferia” (Índia, China, Coreia do Sul, Brasil) e colocando os centros nervosos de direcção, designadamente financeira, nos países de economia capitalista mais forte, com cada vez menos indústria e cada vez mais serviços de alta sofisticação e elevada concentração de valor.
Assim, a economia a nível mundial passou a ser definitivamente dominada por grandes campanhas multinacionais, cujo capital não tem pátria, que colocam os seus produtos e tomam as suas decisões onde, em cada momento, mais lhes convém. Algumas delas, mesmo, com a produção exteriorizada a 100% para subsidiárias instaladas em paraísos da desregulação social e laboral e jogando continuamente com manobras de especulação financeira possibilitadas por, nesse campo, ter deixado de haver distinção entre “dia” e “noite”. E, assim, enquanto o técnico indiano assegura a manutenção e reparação do parque e dos sistemas informáticos de um gigante alemão ou americano (quando na Europa ou na América é noite), para os jogadores e especuladores financeiros, logo que a bolsa de Londres encerra, está a abrir a de Hong-Kong…
Ora, é hoje absolutamente claro que o enorme incremento da produtividade e da proficiência do trabalho humano que todos estes progressos científicos e tecnológicos possibilitaram e determinaram não foi de todo colocado ao serviço da Humanidade no seu conjunto, com o que teria sido então possível, por exemplo, diminuir drasticamente o número de horas de trabalho por dia e por semana, reduzir o desemprego, combater eficazmente a fome e a doença e elevar o nível e qualidade de vida do conjunto da população mundial.
Não! Esses enormes progressos científicos e tecnológicos foram antes apropriados por uma escassíssima minoria – aqueles 1% que embolsam mais de 50% do total da riqueza mundialmente criada – que assim pôde aumentar exponencialmente os seus fabulosos lucros.
Deste modo, nos referidos “países emergentes”, aquilo a que se assiste, em nome da globalização, da concorrência e da produtividade, é a um crescente “igualar por baixo” das já miseráveis condições de vida e de trabalho de quem de seu só tem a sua força de trabalho. E nos países ditos do “centro” assistimos a uma permanente chantagem sobre os trabalhadores, designadamente dos sectores industriais que ainda restam (como os da indústria automóvel ou da metalurgia e metalomecânica), para que, sob pena da “deslocalização” das respectivas fábricas e do consequente desemprego, acabem por aceitar salários e condições (ou falta delas) próprios do chamado “Quarto Mundo”. Isto, enquanto os trabalhadores dotados dos saberes mais qualificados e, sobretudo, os jovens, são submetidos a um processo de progressiva proletarização, com vínculos cada vez mais precários, salários cada vez menores, horários cada vez mais extenuantes e uma crescente dificuldade de encontrar emprego.
Não porque também aqui as novas tecnologias, se colocadas ao serviço de toda a comunidade humana, não permitissem dar a todos trabalho, e trabalho digno, com elevadas condições de segurança e saúde no trabalho e com salários adequados, mas porque as exigências da manutenção e de crescimento dos astronómicos ganhos dos grandes grupos financeiros tal não pretendem nem permitem.
Torna-se assim cada vez mais evidente a contradição entre forças produtivas sucessivamente mais poderosas e desenvolvidas (como vimos, sobretudo nestas últimas 2 ou 3 décadas) e umas relações sociais de produção cada vez mais injustas e impeditivas do progresso da Humanidade. É cada vez mais importante, necessária e urgente a resolução de tal contradição e, logo, a percepção dessa verdadeira necessidade histórica, assim como a assunção e a tomada nas próprias mãos da possibilidade dessa profunda transformação social.
Ora, é precisamente aqui que se impõe fazer, mesmo que contra todas as modas do momento (ou seja, as concepções do pensamento dominante), uma séria e aprofundada reflexão acerca de onde conduziu este processo de apropriação, pelos grandes interesses financeiros, dos chamados novos meios de informação e comunicação, e em particular das redes sociais.
Assim, e antes de mais, convirá recordar que as marcas mais valiosas do mundo, segundo o relatório anual de 2018 da consultora Interbrand, são a Apple (214 mil milhões de dólares), a Google (155 mil milhões), a Amazon (101 mil milhões), a Microsoft (93 mil milhões), seguindo-se, uns lugares abaixo (após o escândalo da cedência dos dados pessoais de milhões de utilizadores à Cambridge Analytica), mas ainda dentro do chamado top ten, o Facebook. Ou seja, tudo gigantes cuja riqueza consiste, sobretudo ou mesmo exclusivamente, em informação (conteúdos e tecnologias).
E isto porquê? Exactamente porque a recolha, tratamento e uso de dados e informações pessoais (inclusive para campanhas de manipulação política e eleitoral) têm um papel e um valor estratégico fundamentais no controle ideológico e político das grandes massas.
A veiculação dos valores e dos padrões de conduta tidos por convenientes, a pregação da “missa hipnótica” da alienação, da pretensa impossibilidade de contruir alternativas e, de uma forma geral, a defesa de todo o ideário da sujeição e aceitação da sociedade capitalista, arvorada – como defendeu o ideólogo ultra-conservador Fukuyama – em personificação do “Fim da História”, são em absoluto essenciais à manutenção e reprodução dessa forma de sociedade.
Hoje em dia, após as grandes cerimónias públicas, a sistemática propaganda feita através dos jornais, das revistas e até das rádios (como sucedeu nos regimes nazi e fascistas, incluindo o português) e, depois, do papel muito importante – que ainda hoje em parte se mantém – dos órgãos de comunicação de massas por excelência que são as televisões, há um crescente e relevante papel nesse domínio assumido pela internet e, em particular, pelas redes sociais.
E é aqui então que uma reflexão séria e profunda, e ainda que contra a corrente, se impõe fazer.
É claro que a origem dos malefícios que hoje se começam a compreender melhor não está nas referidas novas tecnologias, mas sim no modo como são utilizadas e sobretudo ao serviço de que interesses.
Não há, por isso, que exorcizar essas mesmas novas tecnologias como se de uma “arma do Demo” se tratasse, repetindo assim o tipo de posição, tão conservadora quanto inútil, daqueles que, nos primórdios da Revolução Industrial, clamavam contra as máquinas a vapor, ou até – em desespero pela destruição dos empregos artesanais tradicionais que elas acarretavam – praticavam a sua destruição.
Aí também, como a História se encarregou de confirmar, a questão não estava nas novas tecnologias de então, mas sim na respectiva apropriação pela pequena minoria dona dos principais meios de produção.
Mas é preciso ver que as redes sociais são (também) um factor e um pretexto para a exposição total dos cidadãos e para a destruição (tendencial, pelo menos) dos seus espaços de intimidade e privacidade, sem os quais, não nos iludamos, não há democracia para os mesmos cidadãos.
E esta questão é mesmo muito mais importante, quer do ponto de vista quantitativo, quer qualitativo, do que à primeira vista se poderia pensar. Por um lado, e de acordo com um estudo recente da OCDE, 8 em cada 10 jovens portugueses “sentem-se mal quando não estão on line”. E segundo um outro estudo, este da Marktest e realizado no Verão de 2017, em Portugal, há cerca de 5 milhões de pessoas entre os 15 e os 64 anos de idade que usam regularmente as redes sociais e 95% delas declararam ter um perfil criado no Facebook, estando estimado em 1h44m o tempo médio que, por dia, dedicam às redes sociais.
Por outro lado, estamos perante mecanismos que – sobretudo se não houver, como temos de reconhecer que não há, uma consciência cívica generalizada e apurada – permitem cumprir uma importantíssima função ideológica e política, mas que são tão mais eficazes quanto tal função pode ser levada a cabo sob vestes que a disfarçam de forma muito eficiente, precisamente por se apresentarem como agradáveis e até apetecíveis.
Podendo ser – como já foram, e por diversas vezes – utilíssimas na transmissão de informações que, de outra forma, poderiam ou iriam ser facilmente abafadas, e na denúncia, explosiva e imparável, de abusos e atrocidades cometidos por todo o mundo e que, sem tal denúncia, ficariam desconhecidos e impunes, a verdade é que as redes sociais, e sobretudo pela forma como o seu uso é induzido e até imposto (inclusive sob a aparência de inócuas regras “técnicas”), permitem e amplificam vários fenómenos e mecanismos verdadeiramente demolidores e aniquiladores dos direitos dos cidadãos.
1º Destruição do valor da privacidade, intimidade e individualidade
Depois de pregar o individualismo mais feroz, de gerir cientificamente o medo (e desde logo o medo do “outro”, sempre apresentado como um concorrente a vencer, senão mesmo um inimigo a abater), de procurar quebrar todos os vínculos de relacionamento pessoal e social e os laços de solidariedade colectiva, a ideologia do capitalismo financeiro faz crer que se podem criar “amigos” (como no Facebook…) sem esses mesmos vínculos e laços, que o combate ao isolamento e à solidão passa por expor publicamente todos os aspectos (e, logo também, todas as debilidades…) da vida pessoal e familiar e, finalmente, que aquilo que cada cidadão precisa de conhecer é (apenas) aquilo que lhe é disponibilizado ou permitido aceder pelas grandes centrais do controlo ideológico, do Google ao Facebook. Tal como todos os dias sucede com as “notícias” que nos são servidas ou com os conteúdos e funcionalidades que nos são sugeridos.
2º Transmissão de uma falsa ideia de Democracia
Possibilitando que qualquer um possa publicar qualquer coisa em qualquer lugar, alimentam assim a ilusão, desde logo dos próprios comentadores, de que a sua voz é ouvida por quem detém o Poder das grandes decisões e, sobretudo, que influencia minimamente a tomada destas, não sendo então necessário o activismo social e político. A consequência é, aliás, já bem conhecida – a criação de verdadeiras multidões de “comentadores de sofá” que, opinando sobre tudo, quiseram ser, ou foram levados a aceitar e a praticar, que, assim, já não é preciso participar em reuniões e manifestações nem levar a cabo greves ou outras formas de luta. E, claro, o Poder político dominante agradece…
3º Escamotear que afirmar não é informar e que gritar e insultar não é debater
Permitindo a distância física, a ausência do “olhos nos olhos” do outro e até o anonimato (designadamente através de avatares ou falsos perfis), possibilitam em larga escala o verdadeiro abismo do insulto cobarde e miserável, do vazio moral, do apelo aos sentimentos mais baixos e primários do ser humano (da calúnia e silenciamento de quem pensa diferente, ao tribalismo, à xenofobia, ao racismo e à mais absurda cegueira ideológica, étnica e religiosa). Como todos decerto bem sabemos, a internet está cheia de trollsque têm todo o tempo do Mundo – e se julgam detentores de todo o direito para tal… – para se dedicarem ao ataque pessoal, ao insulto e à calúnia. E, no geral, das redes sociais têm tanto tempo de antena quanto o dos que querem realmente informar, ser informados, esclarecer e debater…
4º Incentivo à superficialidade e ao instantâneo em detrimento do conhecimento, da reflexão e da memória
Pelas suas próprias regras de funcionamento (que são tudo menos aquilo como se apresentam, ou seja, meramente “técnicas” e “neutrais”), as redes sociais – e o exemplo mais significativo disso é seguramente o Twitter – permitem e amplificam as tiradas tão rápidas quanto simplistas e populistas, sem contraditório nem tempo para explicações, valendo a pena pensar porque é que o dito Twitter é tão do agrado dos dirigentes políticos mais primários e que mais odeiam o diálogo e a livre e séria discussão de ideias…
Assim, a correcção das afirmações e posições deixa de constituir o critério de aferição da sua legitimidade para ser substituída pelo critério do seu impacto. A verdade deixa de ser o instrumento e o critério de classificação e qualificação da conduta das pessoas e é trocada por aquilo que é apresentado como sendo o que verdadeiramente interessa, ou seja, o número de likes, criando e multiplicando assim a desinformação e as mentiras feitas verdades (com que já Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler sonhava), e cidadãos cada vez mais ideologicamente desarmados e menos preparados para as detectar, desmontar e desmascarar.
5º Dissolução da verdade dos factos e dissolução da memória
Esta dissolução da memória, colectiva e individual, passa por uma anti-cultura de desprezo pela História, pelo seu conhecimento e pela sua preservação, como também pela desvalorização e até destruição da língua materna: o uso de cada vez menos palavras (e já nem falo no desconhecimento da sua origem etimológica…) e de vocabulários cada vez mais pobres e simplistas, a substituição da literatura mais rica por micro-textos pretensamente sintéticos, o “nacional-saloismo” (já presente, por exemplo, em muitas das nossas universidades…) do progressivo abandono da língua portuguesa (como se esta não fosse um instrumento fundamental do desenvolvimento do raciocínio lógico). E tudo isto, bem como as filosofias e práticas da gestão empresarial e política do estilo “eu cá só leio mails de um único parágrafo”, embotam, e cada vez mais, a razão crítica.
As novas tecnologias da comunicação e informação são poderosíssimos aceleradores, do bom e do mau. E se são inegáveis os progressos que as redes sociais permitiram alcançar e os aspectos positivos em que esses progressos se concretizaram, importa também que não esqueçamos nunca os enormes riscos que elas acarretam. E entre os instrumentos mais adequados para enfrentar com êxito tais riscos estão precisamente a memória e a capacidade de pensar pela própria cabeça, que são duas das mais importantes armas dos cidadãos em Democracia.
E quando se procura atrofiar uma e outra, o que se está afinal a fazer é a desarmar o Povo e, de uma forma bem mais eficaz e aparentemente bem mais “simpática” e “democrática” do que no tempo da ditadura fascista, a procurar criar, não cidadãos activos e conscientes, mas sim seres ideologicamente domesticados e bloqueados na sua capacidade de avaliação e discussão críticas. Sempre com o tristemente célebre e mil vezes repetido “argumento de Vichy”, ou seja, que se os nazis ocuparam brutalmente a França e arrogantemente marcharam sob o Arco do Triunfo, em Paris, logo, seria “correcto” e até “patriótico” aceitar essa dominação porque, supostamente, “não há alternativa”…
Mas essa alternativa – como também se viu em França nos anos 40 do século passado… – existe, e a Resistência provou-o, contra as botas cardadas, as armas pesadas, as torturas e as atrocidades dos seus (só aparentemente) invencíveis algozes.
A questão essencial é então esta: hoje em dia nós, cidadãos, é que somos, é que temos de ser, essa Resistência!
E usar as redes sociais para preservar a memória, para divulgar a informação séria e fundamentada e fulminar o boato e a falsidade, para promover o debate de ideias elevado e responsável e para denunciar e desmascarar o insulto e a calúnia faz, afinal, parte dessa mesma Resistência.
António Garcia Pereira
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