A Ministra do Trabalho e da Solidariedade Social, numa audiência parlamentar a 10/7, entendeu afirmar – numa muito curiosa coincidência de opiniões com os patrões – que estes “têm queixas devido à falta de trabalhadores” e que “sabemos que as pessoas recusam propostas de emprego com facilidade”. Ou seja, retomou a estafada retórica de que todos os desempregados têm acesso ao subsídio de desemprego, os quais, por serem alegadamente de valor elevado, levam a que os trabalhadores rejeitem empregos dignos por ganharem mais com os subsídios do que se estivessem a trabalhar.
Ora, estas afirmações são desde logo perigosas, porquanto todos conhecemos que, quando surge este discurso, e muito em particular pela boca dos responsáveis governamentais, se destina sempre a procurar legitimar a restrição ou mesmo a anulação ou inutilização dos direitos sociais básicos, como sucedeu com as chamadas “reformas laborais” do tempo da tróica, que conduziram à expulsão de centenas de milhares de cidadãos do âmbito da aplicação das prestações sociais mais essenciais (subsídios de desemprego e de doença, rendimento social de inserção e complemento solidário para idosos). Como pano de fundo estava precisamente a conversa populista e reaccionária de que os beneficiários de tais prestações não passariam de seres pouco activos e pouco empreendedores, senão mesmo preguiçosos e oportunistas, a viverem à custa do esforço contributivo dos outros. Ora, a ausência destas “transferências sociais” num país como o nosso, que tem cerca de 2 milhões de pobres, ou seja, 1/5 da sua população, aumentaria exponencialmente para 40% o número de pobres, incrementando a pobreza e a consequente exclusão social.
Além de perigoso e absolutamente nocivo do ponto de vista social e da desprotecção dos mais fracos e vulneráveis, este tipo de discurso baseia-se em completas e despudoradas falsidades, como, aliás, bem demonstra o estudo de 15/07/24 do economista Eugénio Rosa. Segundo as estatísticas mensais da Segurança Social, o valor médio do subsídio de desemprego para os desempregados da componente retributiva (o mais elevado) foi, em Maio de 2024, de 649€ mensais, pagos apenas 12 vezes por ano, enquanto o chamado subsídio social de desemprego inicial foi de 427,90€ e o subsídio social de desemprego subsequente de 446,70€, pagos também somente em 12 vezes ao ano e aplicáveis ou quando o normal subsídio de desemprego não é atribuível à partida, ou se já não o é por estarem esgotados os respectivos períodos de concessão. Ou seja, se o salário mínimo mensal é de 820€, pagos 14 vezes por ano, num total de 9.414€ anuais, o valor mais alto do subsídio de desemprego representa apenas 649,1€ x 12 = 7.789,20€ anuais (82,7% daquele).
Por outro lado, se o número oficial de desempregados era, em Maio de 2024 e segundo os dados do próprio INE-Instituto Nacional de Estatística, de 338.000, o número daqueles com direito a receberem subsídio foi de apenas 183.397 (isto é, cerca de somente 54%). Mas se àquele número de desempregados “oficiais” (chamemos-lhe assim) se somar também 94.500 que são os chamados “inactivos disponíveis por não procurarem emprego” (que são também verdadeiros desempregados, mas que desistiram de procurar emprego seja por que, apesar de se terem inscrito no Centro de Emprego, este não lhes conseguiu arranjar trabalho, seja por, devido à sua idade e à baixa qualificação, já não alimentarem qualquer esperança de poderem reingressar no mercado de trabalho – aquela percentagem dos desempregados reais (338.000 + 94.500 = 432.500) que recebem efectivamente o subsídio de desemprego é ainda mais baixa (cerca de 42,5%).
A tudo isto acresce ainda a circunstância de que estes preocupantes números oficiais respeitam somente à chamada economia formal ou ”registada”, enquanto a economia informal ou “não registada” (sector de actividade económica que funciona na absoluta obscuridade, à margem da lei, e onde não há, obviamente, nem direitos, nem ACT-Autoridade para as Condições do Trabalho, nem descontos para a Segurança Social, nem subsídios de qualquer natureza), segundo os dados do estudo de Junho de 2023 da Faculdade de Economia do Porto, representa já mais de 34% do PIB (Produto Interno Bruto), ou seja, cerca de 82,232 mil milhões de euros. Em suma, o que a realidade nua e crua dos números nos mostra é que, enquanto na referida “Economia Não Registada” reina a mais absoluta e violenta lei da selva, mesmo na economia dita registada ou formal apenas 2/3 dos 42,5% dos oficialmente desempregados, ou seja, somente 28% do total dos reais desempregados, recebem subsídio de desemprego, e também que o valor máximo deste não chega sequer a 83% do ainda muito baixo salário mínimo nacional.
Sabe-se também que os salários dos trabalhadores portugueses são, em geral, tão baixos que pelo menos 20% dos jovens se veem obrigados a acumular trabalhos e pelo menos 1/5 dos cidadãos que vivem abaixo do limiar de pobreza têm, afinal, um emprego, mas cujo vencimento não lhes permite sair desse estado, sendo Portugal, segundo dados da Pordata, o 6.º país da União Europeia com mais pessoas que, mesmo trabalhando, têm rendimento inferior ao limiar do risco de pobreza!
Ora, quando perante um panorama destes, um Governo, qualquer que ele seja, se preocupa em (re)lançar para a praça pública a ideia de que aquilo que é necessário e prioritário é o combate aos malandros e ociosos dos desempregados que não querem é trabalhar, preferindo ser – como tantas vezes se ouve, sobretudo às vozes da extrema direita – “subsídio-dependentes”, fica perfeitamente claro não apenas quais são os interesses que tal Governo verdadeiramente defende, como também o “modelo” económico e social que prossegue – o dos “malaios da Europa”, ou seja, do trabalho intensivo, de mão-de-obra pouco qualificada, mal paga, e hiper-explorada, e com uma lógica de desprezo, de abandono, senão mesmo de perseguição, a quem não tem emprego porque não o consegue arranjar ou porque está doente ou incapacitado.
E a quem tem dúvidas de que assim seja efectivamente, em particular os próprios trabalhadores, as suas estruturas representativas e as organizações políticas e sociais que se dizem defensoras dos seus interesses, sugiro que estejam atentos às reformas laborais que decerto virão na esteira deste recente e governamental discurso anti-desempregados. Reformas essas que, seguramente, passarão desde logo por manter regras absolutamente odiosas e inconstitucionais (como a das miseráveis indemnizações por despedimento de apenas 14 dias de vencimento-base por cada ano de antiguidade, ou a que exige que o trabalhador devolva ao patrão a indemnização a que tem direito para poder impugnar um despedimento, colectivo ou por extinção do posto de trabalho, que ele considere ilícito.[1]
Passarão também por, correspondendo às insistentes exigências patronais nesse sentido, alterar ou mesmo revogar a nova regra de presunção da existência de contrato de trabalho nas plataformas digitais[2], como a Uber ou a Glovo, por proceder à alteração e facilitação do regime dos despedimentos colectivos, e enfraquecimento do seu controle jurisdicional. Ou pela revogação de novas normas, entretanto entradas em vigor em Maio de 2023 com a chamada “Agenda do Trabalho Digno”, como a que veio proibir que se despeçam trabalhadores do quadro para os substituir por “recibos verdes” ou para entregar a sua actividade a empresas ditas de prestação de serviços[3], ou a que veio declarar ilícitas as chamadas cláusulas remissivas gerais e abstractas[4], de acordo com as quais o trabalhador, para receber o que lhe é sempre legalmente devido (por exemplo a título de férias, subsídios e respectivos proporcionais), tem que assinar declarações totalmente genéricas no sentido de que “nada mais tem a haver ou a reclamar, seja a que título for”.
E veremos se não prossegue igualmente a depreciação e a debilitação da capacidade interventiva da ACT, a desvalorização e o desprezo pela Justiça do Trabalho e o cúmplice e até criminoso fechar de olhos, sempre em nome dos sacrossantos interesses económicos, às cada vez mais alargadas áreas de hiper-exploração de mão-de-obra escrava ou quase escrava, seja na agricultura (como em Odemira), seja na restauração (como no Algarve) seja na apanha de bivalves (como no Montijo e no Samouco), seja na construção civil (um pouco por todo o país).
Em suma, com a dignidade de quem vive apenas do seu trabalho e os direitos que ainda estão formalmente consagrados na lei a serem espezinhados todos os dias…
António Garcia Pereira
[1] Números 1.º, 4.º e 5.º do art.º 366.º do Código do Trabalho, respectivamente.
[2] Art.º 12.º A do Código do Trabalho.
[3] Art.º 338.º A do Código do Trabalho.
[4] Art.º 337.º, n.º 3 do Código do Trabalho.
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