O caso Boaventura Sousa Santos: este é o país que temos, mas é o país que queremos?

As inquirições parlamentares do caso da TAP, como todos temos vindo a assistir, têm posto a nu um autêntico lodaçal de negociatas, de abusos de poder, de tráfico de influências e sobretudo de aldrabices por parte dos respectivos responsáveis, muito em particular os políticos, mas tudo está preparado para que nada lhes aconteça. Ao ponto de o Governo agora se arrogar, com o maior desplante, recusar-se a disponibilizar documentos (que nada têm de reservado ou confidencial) solicitados pela Comissão Parlamentar.

A mesma Justiça e as mesmas polícias que perseguem tenazmente os pilha-galinhas e os pequenos delinquentes, mostram, afinal, uma singular indulgência para com quem é forte, rico ou autor daquelas violências e abusos que a ideologia e “cultura” dominantes tendem a desvalorizar ou até desculpabilizar, como a violência doméstica, a violação e o assédio moral ou sexual. E, por isso, repetidamente se suspendem as penas aplicadas a violadores e agressores e se condena a pena de prisão efectiva o sem-abrigo que é apanhado a furtar uma peça de fruta para comer…

Ouve-se, promove-se e elogia-se, não quem tem princípios e os defende sempre, custe o que custar e perante seja quem for, mas antes o pragmático, o esperto e o manipulador, que, descarada e impunemente, tanto mente quanto muda de ideias como quem muda de camisa…

É por tudo isso que, quando se chega a um caso como o das denúncias contra Boaventura Sousa Santos, logo sucede que se definem e tomam, em catadupa, posições que nada têm a ver com a defesa de princípios, e, assim, enquanto uns parecem tentar de imediato descredibilizar as alegadas vítimas e as respectivas denúncias e absolver o denunciado, outros, sobretudo alguns daqueles que não gostam do pensamento político e social do mesmo, partem de imediato para a lógica dos autos de fé e dos julgamentos e execuções em praça pública.

Tudo isto quando as ideias e regras a lembrar e observar num caso como este deveriam, afinal, ser absolutamente claras e transparentes:

1º A existência e impunidade de práticas de assédio moral e sexual são, infelizmente, uma realidade da nossa sociedade, muito em particular em sectores e instituições caracterizadas pelo corporativismo e/ou opacidade (como, por exemplo, a Igreja Católica e as Universidades), e não uma “invenção” de uns ou umas “histéricas” ou “descompensadas psicológicas”, que é a “explicação” com que sempre se procura descredibilizar as queixas e todos aqueles ou aquelas que denunciam este tipo, particularmente cobarde e indigno, de crime.

2º É mais que sabido que, por diversas razões – que vão desde a vergonha e o constrangimento pessoal e social ao medo de represálias e à falta de confiança em que da queixa resulte alguma coisa que não seja a revitimização de quem denuncia ou até a sua perseguição criminal como caluniador –, as vítimas não se queixam logo, e em muitos casos não se queixam mesmo nunca.

3º Dito isto, constitui princípio civilizacional basilar – a não tolerar jamais que seja revogado ou destruído, como infelizmente tem tantas vezes sucedido entre nós – a presunção de inocência de todo o acusado até que a sua culpa haja sido definitivamente decidida e declarada, pelo que são absolutamente inaceitáveis as lógicas das condenações sumárias e públicas, mais ainda quando ditadas simplesmente pelas afinidades ou antipatias pessoais, sociais ou políticas que se tem com o acusado.

4º Não gosto nem sou favorável a sistemas baseados em denúncias anónimas – até porque todos sabemos os terríveis abusos a que, ao longo da História, eles conduziram – mas não só as alegadas vítimas não devem ser destratadas e descredibilizadas à partida, como, sobretudo nos casos e nos sectores e instituições onde impera a lei do silêncio e da ameaça ou onde já se conhecem outros indícios ou suspeitas, devem ser claramente apoiadas. E mesmo não se admitindo denúncias anónimas – e a nossa lei processual penal até as admite dentro de determinados circunstancialismos… –, em muitos casos se imporá mesmo garantir a confidencialidade dos seus autores até os factos estarem suficientemente investigados e serem obtidos dados fiáveis sobre a existência ou inexistência de indícios probatórios bastantes.

5º Em geral, mas muito em particular nos já referidos sectores e instituições caracterizados por elevado grau de corporativismo, opacidade, hierarquia ou “lei do medo”, manifestamente que os inquéritos ou investigações não podem ficar a cargo de alguma pessoa ou estrutura dessas mesmas instituições, tendo que ser atribuídos a entidades independentes, constituídas por pessoas de reconhecida independência, isenção e idoneidade.

6º Por fim, será também importante relembrar que podem existir condutas que podem não constituir crime (ou já não poderem ser objecto de perseguição criminal, como, por exemplo, por prescrição), mas que nem por isso deixam de ser ética e socialmente reprováveis. E porque a Verdade e a Dignidade não prescrevem, esse juízo de censura ético-social não deverá ser impedido por argumentos estritamente jurídico-formais.

Deste modo, uma atitude correcta, do ponto de vista dos princípios, relativamente ao chamado “caso Boaventura Sousa Santos” – e sublinhando que toda a verdade deve ser apurada, só então sendo legítimo formular juízos (condenatórios ou absolutórios) definitivos –, não pode, contudo, deixar de assinalar desde já, e sem qualquer pré-juízo relativamente aos mesmos, alguns pontos relevantes:

1º Se não deixa de causar alguma perplexidade a circunstância de que a primeira denúncia agora publicamente divulgada (a das três investigadoras) haja sido feita (apenas) num capítulo de um livro científico e largos anos após os alegados factos, também não pode deixar de impressionar o número de relatos, entretanto já aparecidos, e sobretudo a similitude de métodos das condutas denunciadas.

2º Por outro lado, se, obviamente, o estatuto social ou profissional, ou a filiação, inclinação ou simpatia política do alegado abusador não pode nem deve nunca influenciar, em nada, o apuramento da verdade dos factos, também não podemos ser ingénuos ao ponto de não notar o afinco e a pertinácia com que alguns autores e pensadores da Direita, em particular da mais “caceteira”, já trataram de julgar, condenar e sentenciar publicamente Boaventura Sousa Santos, para mais quando se calaram ou muito pouco disseram quando se ouviram denúncias similares (entretanto todas arquivadas!) sobre condutas de assédio moral e sexual alegadamente cometidas, por exemplo, por professores da ultra-conservadora Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ou sobre repetidos e gravíssimos casos de assédio moral no local de trabalho praticados em algumas das grandes empresas do País, a começar pela TAP…

Se queremos ter um país de Liberdade e de Democracia, de respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos, de defesa dos mais fracos e vulneráveis, em vez de um país de abusos e de arbítrios, de Torquemadas e senhores absolutos, então, o que temos de tratar de impor, neste como em todos os outros casos, é que seja levada a cabo uma investigação séria, isenta, empenhada, corajosa se necessário for, feita por gente independente e idónea. E que do resultado de uma investigação assim conduzida sejam retiradas todas as consequências, das éticas e sociais às jurídico-criminais, e relativamente a todos, sejam eles autores, cúmplices ou encobridores.

António Garcia Pereira

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