Não há arte ou engenho na escrita que consiga superar os textos que são escritos na primeira pessoa. Não há arte ou engenho na escrita que consiga transmitir de forma sentida uma vivência de vida como a transmitida num texto escrito na primeira pessoa.
Miguel Martins, vive em Vila Nova de Gaia, tem 48 anos, é divorciado, vive só com os seus dois filhos e não tem qualquer tipo de apoio. Miguel Martins é engenheiro mecânico e está há três anos desempregado. Este é o seu desabafo, um desabafo certamente igual a milhares de outros, a centenas de milhares de outros neste País onde, contrariamente à propaganda do regime, a cada dia que passa há mais Miguel Martins.
Este é o espelho dum País e dum Povo que deu mundos ao mundo e que parece ter adormecido, parece ter-se acobardado, parece ter desistido de lutar. Mas acima de tudo, este é o desabafo duma pessoa, duma família, duma vida.
“DESEMPREGADO, a minha auto-estima, tal como a de todas as outras pessoas que estão na minha situação, está de rastos. Somos obrigados a pedir esmola, sujeitar-nos a ouvir todos a dizer-nos – Vai mas é trabalhar! – , agradecer muito pelos produtos fora de prazo que conseguimos trazer mais baratos do supermercado…
E o que custa mais, de tudo, é não sabermos explicar às pessoas, a todas as pessoas!, como ocupamos o nosso tempo.
Porque ninguém consegue perceber as actividades de pôr comida nos pratos, no meu e nos dos filhos… depois, lavar esses pratos… Afinal de contas todas as pessoas do mundo têm que fazer essas actividades menores e muito para além disso têm que trabalhar em empresas para receberem um ordenado.
Se analisarmos cada caso individual, iremos descobrir que cada caso é um caso. Várias dessas pessoas estão realmente numa empresa 8 horas por dia, algumas dessas horas a trabalhar, e depois têm alguém que assegura todas as tarefas domésticas. O que lhes permite gozar do merecido descanso.
Também há pessoas, na tradição eram mulheres, que ficam em casa a tratar dessas tarefas menores enquanto os maridos vão trabalhar para assegurar o sustento. Geralmente, essas mulheres até nem tinham que tratar das papeladas por exemplo… IRS, seguros, questões de condomínio ou outras coisas assim… Mas nunca tinham que explicar a ninguém como ocupam o tempo. Têm uma actividade profissional – são esposas, ou donas de casa, ou maridos…
Claro que também há pessoas que, sozinhas, têm que aguentar empregos e depois vir para casa tratar dos filhos. E geralmente nem sequer têm tempo para viver. E nem têm tempo para pensar nisso! Mas pelo menos podem sentir a felicidade de ter como explicar aos outros a sua situação e beneficiar da compreensão e da palmadinha nas costas daqueles que a rodeiam. E até ser apontadas como exemplo de resistência e de coragem.
Coragem uma porra. Ai aguentam aguentam! Que remédio têm eles!!! Alguns até nem aguentam e suicidam-se, dão em loucos, em sem abrigo, ou drogam-se, ou etc. São os fracalhotes!
Já os desempregados é outra coisa. Independentemente dos esforços que até façam para arranjar emprego, têm sempre a culpa por não o arranjarem!!! Quando uma pessoa normal quer arranjar um emprego, responde a meia duzita de anúncios e arranja qualquer sítio para trabalhar. O desempregado não! Esse já respondeu à tal meia duzita de anúncios. E não conseguiu emprego. Então começa a perceber que se calhar fez mal o curriculum…
Se calhar tem que reduzir às qualificações que põe no curriculum… ou se calhar não…
Se calhar devia emigrar…
Se calhar tirou o curso errado…
Tem que deixar de ser orgulhoso e ir pedir um trabalhito àqueles que conhece… àqueles que o exploraram e maltrataram quando até estava empregado. Que até o despediram porque apesar de saberem das excelentes qualidades de trabalho que o desempregado tinha, a verdade é que o tal desempregado nunca foi suficientemente subserviente e bajulador para interessar ao possível empregador.
Os desempregados não têm direito a ter orgulho, mesmo que encarado apenas como a satisfação de saberem que fizeram boas coisas num passado qualquer. O passado não interessa para nada. Agora o que interessa é o futuro. Nunca se conseguirá explicar a um empregador que o passado interessa na medida em que foi nele que nós conseguimos adquirir todas as qualificações que o empregador nos exige.
Mas o empregador não quer saber! Interessa-lhe apenas a serventia que o desempregado poderá ter, no futuro, para o empregador! Como se todo o conhecimento do candidato a emprego tivesse surgido num flash, no instante imediatamente anterior.
E o desempregado desanima, sente-se um peso para a sociedade, um peso para os familiares e amigos em quem sente necessidade de se pendurar para ver se lhe oferecem um prato de sopa que permita aguentar umas poupançazitas que vão servir para pagar a luz, a àgua, o gás, o condomínio, os seguros, e até os impostos… (porque os desempregados também pagam impostos!!! O IVA, o IMI, o IUC, …)
Porque um desempregado não tem nada que usufruir desses luxos que são: ter um tecto, ainda por cima com água canalizada e luz e TUDO… e até internet, vejam bem!!!!!! Que é necessária para responder a empregos, mas que vá a um cibercafé!!!!!
Um desempregado não tem direito à vida! É um peso para a sociedade e para todos os que o rodeiam! Os familiares e amigos suportam-no só porque tem que ser, porque sentem essa obrigação. E o único lado positivo é poderem sentir que efectuaram a sua boa acção diária…
Às vezes, o desempregado consegue responder a alguns empregos. Enche-se de ânimo e responde a uns anúncios para que sabe que tem qualificações mais do que suficientes e que, mesmo que não seja exactamente da área em que adquiriu mais experiência, o desempregado sabe que não terá quaisquer dificuldades em adaptar-se às novas funções. Relativamente a ordenado, o desempregado já está por tudo e só quer ganhar o suficiente para pagar as contas… Que o desempregado não sabe com rigor quanto é… porque não lhe apetece somar as parcelas das despesas fixas… porque sabe que vai chegar à conclusão que o dinheiro não chega… e por isso o melhor é suicidar-se.
Depois o desempregado fica esgotado. Fica exangue (desbotado, pálido, esvaído, exausto, débil, cansado. deriva do francês. aquele(a) que perdeu muito sangue). Fica à espera de uma resposta àqueles anúncios a que enviou o curriculum. Porque os anúncios, no fundo, são todos iguais… Se não o querem para aqueles trabalhos, porque diabo o vão querer noutro lado qualquer?
Fica alguma esperança… E principalmente fica desesperança!
O desempregado sabe de todos esses argumentos que estás a pensar… que tem que se ir tentando, que se num emprego nem lêem, noutro até podem gostar muito, que não se pode desanimar, etc, etc, etc…
O desempregado, agora, está a tentar arranjar ânimo para responder a mais anúncios….
Miguel Martins”
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