O enriquecimento ilícito e as alheiras (por Carlos Matos Gomes)

Carlos Matos Gomes    Em 2012 o Tribunal Constitucional rejeitou a proposta de criminalização que tinha sido aprovada na AR e enviada pelo presidente da República. Apesar da popularidade da medida, o TC entendeu que eram violados os princípios constitucionais da “presunção da inocência” e da “determinabilidade do tipo legal”. Insignificâncias para a turba. Relativamente a este último princípio, o presidente do TC esclareceu que “tem que decorrer de uma incriminação qual é a conduta que é claramente proibida ou qual é a conduta que é ordenada, aquilo com que o agente se deve conformar”. Isto é, a proposta dos parlamentares de todos os partidos, excepto do PS, assentava na presunção de que alguém podia enriquecer ilicitamente sem ter praticado nenhum ilícito e, pior, que alguém podia ser incriminado sem que fosse acusado de um crime concreto, como roubar, corromper, desviar, branquear, especular ou até a mais óbvia: fazer moeda e notas falsas! Mais ou menos como um médico de família concluir que um doente chegou à condição de obeso sem antes lhe detetar maus hábitos alimentares, sedentarismo ou distúrbios glandulares! Chegou a obeso sem causa!

 Como era invertido o ónus da prova, aos polícias e aos magistrados bastava ver o “novo rico” com os seus símbolos, acusá-lo de criminoso e entregá-lo a um juiz, a quem ele teria de provar que não tinha cometido o crime de enriquecimento ilícito. Os investigadores, em vez de investigarem roubos, corrupções, assaltos, especulações, contrafacções, abusos limitavam-se a espiar o património, os carros, as casas, os fatos, os relógios, as jóias, as idas aos restaurantes, aos cabarés, as férias, as amantes… Embora o projecto de lei não esclarecesse, não materializasse nem quantificasse os factos, os objectos e a dimensão do que configurava o enriquecimento ilícito. Tanto quanto me recordo referia-se a “sinais exteriores de riqueza”! Vá lá, a riqueza interior não era passível de criminalização. Mas admito que um pijama com monograma apesar da sua intimidade, já pudesse ser. ..

 A generalidade dos cidadãos aplaudiu esta criminalização, aplaude este tipo de investigação que dispensa os polícias e os magistrados de investigarem e os juízes de analisarem provas, mas permite apontar o vizinho que lá ai no seu novo carrinho. Que admite a arbitrariedade de um qualquer polícia, a má vontade de um concorrente, a vingança de um invejoso. Todos transformados de denunciantes, de bufos, em potenciais agentes da boa justiça. O provérbio quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem, passa a palavra de honra. Dispensa a investigação de existirem cabras… Os falangistas espanhóis declaravam na certidão de óbito dos fuzilados: muerte por disfunción!

 O pior, para mim, nem são os atentados às relações de causa e efeito, o pior, para mim, é a figura dos “sinais exteriores de riqueza” e aquilo que ela permite. Temo o pior de uma sociedade como a portuguesa, herdeira da Santa Inquisição, que funcionou durante 284 anos, de 1536 a 1820, onde o primeiro auto de fé se realizou em 1540 e o último em 1761 por suspeitas de judaísmo, isto é sinais exteriores de uma dada condição, a de judeu, todos eles com aplauso das multidões e grande assistência. Todos os condenados sujeitos a julgamento por juízes sérios e graves do Tribunal do Santo Ofício. Temo o pior, porque esta mesma sociedade, a de hoje, é ainda herdeira das práticas de quase 50 anos de polícias políticas que assumiram vários nomes e acabou como PIDE e DGS, mas funcionaram sempre na base da denúncia de sinais exteriores de qualquer coisa, em geral a de comunismo, ou oposicionismo, mas também sempre com a intervenção do poder judicial, neste caso através dos tribunais plenários, dos seus juízes e procuradores.

 Numa sociedade, como a portuguesa, em que, para evitar a fogueira, os judeus, ou cripto-judeus inventaram a alheira para disfarçarem a recusa em comer carne de porco, acredito que aqueles que enriqueceram de forma ilícita se confundam com os que enriqueceram de forma lícita com uma artimanha deste tipo e que serão condenados apenas os pobres diabos que não saibam fazer alheiras.

(Texto publicado pelo Coronel Carlos Matos Gomes no blog Jardim das Delícias)

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