Temos vindo a assistir, e de forma crescente, a episódios cada vez mais reveladores de algo que a História há muito nos ensinou e de que não nos deveremos nunca esquecer: são frequentemente os dirigentes e os partidos políticos que se dizem defensores dos cidadãos e, em particular, dos trabalhadores, que cumprem, afinal, a lastimável tarefa histórica de aprovarem, sempre com falinhas mansas e palmadinhas nas costas, as medidas mais reaccionárias e anti-populares de que depois, em momentos de maior crise, os governos, abertamente de direita e defensores dos grandes interesses económicos e financeiros, apenas têm de lançar mão. E se estes o podem então fazer, vangloriando-se até do enterro da Democracia, é precisamente porque aqueles a foram fazendo enfraquecer e agonizar.
As leis dos governos de “esquerda”
Não foi seguramente por acaso que foram quase sempre governos ditos de esquerda que aprovaram as sucessivas reformas do nosso processo penal, que o transformaram num instrumento privilegiado de perseguição a cidadãos incómodos (designadamente jornalistas de investigação) e de abate de adversários políticos, e que criaram um autêntico “Estado dentro do Estado”[1] como é o Ministério Público, o qual, sobretudo no dito processo penal, se habituou a fazer (ou a não fazer) o que bem entende e a não prestar contas a ninguém. Como também não foi decerto por mera casualidade que a primeira lei da greve do pós-25 de Abril de 1974[2], fortissimamente restritiva do direito à greve, foi aprovada com os votos ou posições favoráveis dos partidos ditos de esquerda.
Como o foi a (ainda hoje em vigor e já por diversas vezes aplicada pelos governos do Sr. Costa a greves como as dos estivadores, dos enfermeiros, dos professores ou dos motoristas de matérias perigosas) lei da requisição civil[3]. Como o foi o (também ainda hoje em vigor) regime jurídico da declaração de empresas em situação económica difícil[4] e acabado de aplicar, pela segunda vez, à TAP, permitindo ao governo de cada época, administrativa e unilateralmente, suspender a contratação colectiva, bem como os contratos individuais, diminuir salários e cortar direitos dos trabalhadores.
O “novo normal” da anormalidade constitucional
Para além da forçada “normalização” de uma situação absolutamente excepcional, como deveria ser no nosso quadro constitucional, a do estado de emergência e a da aprovação (à sua sombra) de leis e medidas absolutamente inconstitucionais[5], acabámos agora de ter a “normal” promulgação pelo Presidente da República do diploma legal que permite ao governo impor a obrigatoriedade de certas formas de organização do trabalho, com o teletrabalho à cabeça, até ao final do presente ano e independentemente da vigência, ou não, de qualquer estado de emergência.
Tivemos igualmente uma nova e clara demonstração da concepção de Democracia que tem o “democrata” e “socialista” António Costa: segundo noticiou a própria RTP, o Primeiro-Ministro assegurou no passado dia 26 de Março, em declarações aos jornalistas, que “o estado de emergência deve ser decretado sempre que necessário”, mesmo depois de terminada a última fase do confinamento, que está prevista para o final do mês de Maio, sob o extraordinário argumento de que “para que não haja dúvidas legais, mais vale um estado de emergência preventivo para que as medidas necessárias sejam tomadas”.
Ora aí está! De um estado de emergência que é, nos termos do art.º 19.º da nossa Lei Fundamental, uma medida não apenas absolutamente excepcional e temporária, como estritamente necessária para fazer face a um já verificado estado de calamidade, Costa quer fazer-nos passar para uma medida tida como absolutamente normal e duradoura, de exercício de poderes anormais, e decretada inclusive antes da situação que supostamente a justificaria!
E perante o generalizado e cúmplice silêncio, quer dos políticos que se dizem de “esquerda”, quer dos juristas que se proclamam defensores do “Estado de direito democrático” (e já nem falo sequer da comunicação social…), todos os dias vão sendo dados passos no sentido da construção e consolidação de um verdadeiro proto-fascismo, ainda que, para já, com vestes ou justificações alegadamente sanitárias.
O “exemplo” da Faculdade de Direito
Dentro desta cada vez mais sinistra lógica de que os fins justificam todos os meios e que, com o alegado combate à pandemia, dentro ou fora do estado de emergência, tudo se justifica e tudo é legal e legítimo, aliado a uma veneração quase saloia perante tudo o que se apresenta como “nova tecnologia”, também já não espanta que a Direcção da Faculdade de Direito de Lisboa tenha tentado implementar, para os exames não presenciais, um sistema de vigilância à distância – o famigerado e pidesco Proctorio – que não só filmaria como gravaria o aluno e toda a sala em que ele se encontra, como poderia detectar quaisquer movimentos (inclusive da cabeça e até dos olhos dos estudantes) e qualquer alteração de ruído!?
É preciso, para além de criticar com veemência este tipo de medidas, sobretudo reflectir sobre como é que é possível que numa Faculdade de Direito, que se preza de se apresentar como “de referência”, onde são formados muitos dos futuros juristas, advogados, juízes e procuradores deste país, possa sequer ter sido pensada, quanto mais decidida, uma medida destas, que viola clarissimamente a lei, e desde logo o Regulamento Geral de Protecção de Dados, e que representa uma inadmissível violação de direitos pessoais básicos e uma inaceitável invasão da privacidade. E ainda reflectir sobre o facto de que, embora sempre apresentada sob o pretexto de que se destinava à mais que bondosa e legítima finalidade do combate à fraude nos exames, tal medida só tenha sido abandonada após uma firme oposição cívica por parte de vários alunos. Ora, que tipo de cidadãos e de juristas se formam afinal numa Escola de Direito que dá exemplos destes?!
O “Big Brother” em acção
É por tudo isso também que, disfarçadamente, o chamado Gabinete de Segurança da Presidência do Conselho de Ministros aprovou e fez publicar, na remota 2.ª série do Diário da República do passado dia 12 de Março, um despacho[6] que regulamenta a avaliação e verificação não presenciais da identidade das pessoas, designadamente pelo uso dos dados biométricos de cada cidadão, recolhidos aquando do processamento da emissão do seu documento de identificação, e que permitirão mais tarde a chamada “comparação biométrica fácil”, inclusive automática (a denominado sBIO).
Ora, para mais tendo-se presente a situação de autêntica “roda livre” e de ausência de real controlo e fiscalização em que se movimentam os diversos serviços de informações (desde os centrais, como o SIS e o SIED, até aos das diversas polícias, que todas os têm), fácil são de perceber as vastíssimas possibilidades de controlo “orwelliano” dos cidadãos que este tão desapercebido sistema pode propiciar.
A multiplicação dos abusos policiais
Dentro da lógica de que, para combater a COVID-19 (e independentemente de qualquer serena e isenta demonstração científica da respectiva eficácia), todos os meios decretados ou inventados por quem tem poder de decisão e/ou de execução serão bons e não devem ser enfraquecidos ou sequer discutidos[7], multiplicaram-se os casos das arbitrariedades e dos abusos policiais[8].
Assim, a 4/2, um cidadão que foi comprar “gomas” numa máquina à porta de um estabelecimento comercial da Lousã, cometeu o “crime” de meter umas quantas à boca e logo uma prestimosa patrulha da GNR o autuou com uma coima de 200€. A 25/3, um outro cidadão que trabalha para uma empresa de limpezas e duas associações de animais, uma delas situada na localidade (Lapas) para onde se dirigia, tendo as respectivas justificações documentais para se deslocar, cometeu o “pecado” de parar por uns momentos para descansar e comer uma sandes, e logo uma patrulha da PSP de Torres Novas lhe saltou em cima e lhe aplicou a coima de 200€. Em Paço de Arcos, uma senhora de 80 anos foi às 8 horas da manhã do dia 29/3 comprar pão e à saída da padaria, numa rua vazia, deu uma dentada num dos pães e foi de imediato apanhada por dois agentes da PSP que a multaram em 200€ e que até a acompanharam à caixa multibanco, para assim garantirem o respectivo e imediato pagamento.
Para além do completo absurdo da repressão policial em todas estas situações, em particular na última, o que sobretudo delas resulta é a completa e gritante diversidade dos critérios usados pelas chamadas “autoridades”. Porque, entretanto, todos os dias vemos na televisão programas de entretenimento com dezenas e dezenas de participantes ou comitivas de 20 e 30 governantes e respectivos acompanhantes em acções e cerimónias públicas, sem respeitarem as regras de distanciamento, alguns inclusive sem máscara, e nada lhes acontece.
E quando os pressurosos agentes policiais são chamados para situações dessas e por casualidade ou distracção, compareceram, tal como aconteceu em Odemira com o Ministro do Ambiente Matos Fernandes, não só nenhuma coima foi aplicada, como o governante tratou foi de se escapulir para ir, mais tarde, dizer de “peito feito” à televisão o que não ousou dizer na hora e local aos ditos policiais, ou seja, que eles estariam a agir com “excesso de zelo” e que nem sequer a identificação dos presentes podiam pedir.
“Juízes” em causa própria
Em paralelo com tudo isto, e tal como no tempo do fascismo, quando são as próprias autoridades do Estado que se pseudo-investigam a si mesmas, já ninguém deverá ficar surpreendido que, relativamente à eventual responsabilidade disciplinar das duas magistradas do Ministério Público que, sem mandato judicial, sem limitação de tempo e sem justificação desse tipo de medidas, ordenaram à PSP que vigiasse, seguisse e fotografasse dois jornalistas, o respectivo processo tivesse sido objecto de uma decisão de arquivamento por parte do Conselho Superior do Ministério Público.
O qual, contra a opinião do próprio instrutor do processo, consagrou mais uma outra absolutamente extraordinária tese – a de que a falta de clareza, de delimitação no tempo e de fundamentação das medidas de vigilância, significando embora que a Procuradora Andrea Marques “não agiu com o cuidado e a ponderação que o caso exigia nem terá ponderado se o meio era indispensável e adequado ao fim pretendido”, e, “podendo ser reprovável o posicionamento processual da magistrada”, afinal, a sua errónea actuação “não assume relevância disciplinar”, por isso apenas “podendo ser analisada e ponderada em sede classificativa”!
E é claro que, com uma decisão disciplinar absolutória destas, nem valeria a pena apresentar ao Ministério Público uma queixa-crime (por exemplo, por abuso de poder) contra dois membros do mesmíssimo Ministério Público, pois o resultado logo seria, também e evidentemente, o respectivo arquivamento.
Pois é assim que se vai destruindo e enterrando a Democracia e que se vai edificando a sociedade em que nos estamos sucessivamente a transformar. Os contratos são para serem cumpridos, mas apenas se forem os contratos golpistas e fraudulentos das privatizações (como as da TAP, da ANA, dos CTT ou dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo) ou da cobertura dos gigantescos buracos dos bancos privados (com o Espírito Santo à cabeça), mas claro que tal princípio já não será para aplicar se se tratar dos contratos de trabalho dos trabalhadores da TAP ou da Groundforce…
As leis, e em particular as (supostas) leis do confinamento, são para serem cumpridas pelo cidadão comum, como o cidadão da Lousã, a velha senhora de Paço de Arcos ou o vendedor de Torres Novas, mas já não o são se se tratar de membros do Governo em permanente auto-promoção, de magistrados do Ministério Público ou até de uma Faculdade de Direito.
Todos os diplomas legais e todos os instrumentos, tecnológicos e outros, por mais desadequados ou inconstitucionais que se revelem, serão bons se servirem para controlar cidadãos tidos por realmente, ou até apenas potencialmente, perigosos para o Poder, enquanto as denúncias e os protestos desses mesmos cidadãos serão tratados como irrelevantes, excêntricos ou até absurdos.
É cada vez mais favorecido e insuflado o ambiente da delação e da “bufice”, que permite ao particular fazer a polícia perseguir e caçar o vizinho de que não gosta apenas porque este está, por exemplo, a jogar dominó com mais 3 amigos numa mesa improvisada no interior de uma drogaria…
Os abusos e as violências policiais – que obviamente recaem não sobre governantes e agentes do poder, mas sobre cidadãos comuns, e desde que em reduzido número, pois que, por exemplo, aos 3.000 manifestantes anti-confinamento que se juntaram no outro dia no Rossio, os “corajosos” portadores do cassetete e do livro das multas já não se chegaram… – são cada vez mais apresentados como coisa “normal” e até justificados em nome da “autoridade do Estado”.
E aos grandes órgãos de comunicação de massa, maxime às televisões – com as raríssimas excepções de algumas, muito poucas, “flores”, normalmente destinadas a compor o ramalhete da pseudo-pluralidade de correntes de opinião – só chegam as vozes do pensamento dominante, sempre cordatas e sempre sensíveis aos apelos do poder à sua “responsabilidade”, e sempre ferozmente silenciadoras de todos os que não aceitam essa “canga” ideológica.
E todos e cada um de nós, o que fazemos perante tudo isto? Aceitamos conformarmo-nos e alegremente embalarmos na velha e fascitóide cantilena da Mocidade Portuguesa, do “lá vamos cantando e rindo”?
Será mesmo que não queremos ver que, quando amanhã eclodir a grande crise e económica que a passos largos se aproxima, as principais medidas políticas, legais, tecnológicas e ideológicas já assim foram sendo criadas, usadas e treinadas para então fazerem frente aos justamente revoltados e os dominar pela força bruta dos guardiões da “segurança do Estado”?
E iremos aceitar que os principais responsáveis por tais medidas possam então chorar hipócritas lágrimas de crocodilo pelos “excessos” que foram eles que assim prepararam e possibilitaram?
António Garcia Pereira
[1] Exemplo disso mesmo é um recente acórdão do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 121/2021, de 09/02 – Processo n.º 1126/2019) que consagrou a inacreditável tese de que ao juiz de instrução criminal estaria vedada a competência jurisdicional de conhecer e declarar as invalidades e nulidades cometidas pelo Ministério Público em actos processuais como os da constituição de alguém como arguido ou da aplicação a esse cidadão da medida de coação do termo de identidade e residência.
[2] Decreto-Lei n.º 392/74, de 27/08, com as assinaturas de Vasco Gonçalves e Costa Martins, que, por exemplo, proibia as greves por solidariedade e permitia certas modalidades de lock-out.
[3] Decreto-Lei n.º 637/74, de 20/11, aprovado com as assinaturas de Vasco Gonçalves, Almeida Santos, Salgado Zenha, Silva Lopes, Rui Vilar, José Augusto Fernandes, Costa Martins e Maria de Lurdes Pintassilgo.
[4] Decreto-Lei n.º 353-H/77, de 29/08, aprovado com as assinaturas de Mário Soares, Sousa Gomes, Medina Carreira e Maldonado Gonelha, precisamente para dar cobertura legal às medidas impostas pelo FMI aquando da sua primeira intervenção em Portugal.
[5] É o caso da restrição, por decreto-lei ou até por mera resolução do governo, de direitos, liberdades e garantias e até da criação de novos tipos de ilícitos criminais, quando uma e outra coisa constituem matéria de reserva de lei e de competência reservada da Assembleia da República (art.º 112.º, n.º 1 e 5, a 165.º, n.º 1, al. b) e c) da Constituição da República Portuguesa).
[6] Despacho n.º 2705/2021, de 11/03/2021.
[7] Um recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/03/2021, proferido pelos Juízes Desembargadores Calheiros da Gama e Abrunhosa de Carvalho, no processo n.º 166/20.3PCLRS.L1-9, citando o recentemente eleito Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Adão Carvalho, e contrariando o entendimento já firmado noutras decisões, designadamente do Tribunal da Relação de Guimarães, impôs a aplicação efectiva de sanções previstas numa lei claramente inconstitucional, sob o espantoso e fascinante argumento de que os prevaricadores devem ser punidos de forma rigorosa e, sobretudo, de que outro entendimento “retiraria toda a eficácia ao dever global de recolhimento domiciliário como um dos deveres do estado de emergência” e faria o Estado “prescindir da sua autoridade”.
[8] É certo que não apenas em Portugal, como bem demonstram, por exemplo, as imagens do brutal espancamento por dois polícias, com violentas bastonadas e pontapés, de uma jovem que se encontrava sem máscara numa rua vazia de Benidorm, barbaridade esta que só terá dado origem a um inquérito por ter sido filmada por um cidadão que a colocou nas redes sociais. A verdade, porém, é que se a fascista lei que Macron tentou pôr em vigor em França – e que André Ventura logo tratou de propor em Portugal – estivesse em vigor, tal denúncia não teria sido possível e o crime teria passado impune.
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