Caixa Geral de Depósitos – o espelho da corrupção

Subitamente, mas apenas a partir do momento em que foi conhecido um relatório da consultora Ernest & Young, datado já de 2017 e fechado a sete chaves até agora, toda a gente começou a falar do escândalo da Caixa Geral de Depósitos. Muito em particular dos 3 mil milhões de euros de créditos que foram concedidos sem garantias suficientes, sem respeito pelas regras de avaliação de risco e que originaram, pelo menos, perdas de “apenas” 1,2 mil milhões de euros, sendo que os piores períodos terão sido os de 2005 a 2007 com Carlos Santos Ferreira, do PS, como Presidente, e de 2008 a 2012 com Faria de Oliveira, do PSD.

Mas a verdade é que esta é apenas a ponta do iceberg e por isso creio que é preciso ir bem mais longe e mais fundo do que fazer a mera denúncia, quer desse buraco de dinheiros públicos, quer dos seus directos responsáveis, e desde logo pôr a nu a hipocrisia dos que fingem “só agora ter sabido” do que se passava na CGD.

Este caso da CGD é, antes de mais, um exemplo muito significativo do que é a corrupção e das formas que ela assume. Com efeito, o que está aqui fundamentalmente em causa é a concepção e a prática dos partidos políticos do Poder (como o PS, o PSD e o CDS), que consideram as instituições e os cargos públicos como coisa sua, a partilhar entre si e os seus amigos e apoiantes, o que naturalmente implica, reforça e multiplica o jogo das influências e a troca de favores.

Assim, o pano de fundo aparentemente tecnocrático, mas profundamente ideológico de que “as ideologias passaram à História”, de que “aquilo que interessa são os resultados e o sucesso”, de que “os fins justificam os meios”, de que o apego aos princípios é algo ultrapassado e de que o que é moderno e está a dar é o “pragmatismo”, ou seja, toda esta “missa hipnótica” com que todos os dias somos lambuzados e narcotizados conduz em linha recta à admissibilidade, senão como correcta pelo menos como “inelutável”, da circunstância de que os tachos nas administrações e nos cargos superiores das empresas públicas e na própria Administração Pública são mera propriedade pessoal das classes dominantes e dos partidos que as representam. E, logo, podem e devem ser distribuídos de acordo com a lógica da “partilha do bolo” e com a cor do respectivo cartão partidário, e não pela competência e menos ainda pela seriedade no exercício da função pública, com toda a promiscuidade daquela lógica necessariamente decorrente.

Exemplo disto mesmo já eram os 40 governantes que desde o 25 de Abril tiveram cargos no Grupo Espírito Santo. E agora os 13 ministros e secretários de Estado de governos do OS ou do PSD, ou do PS/PSD, ou do PSD/CDS, que tiveram direito a tachos dourados na CGD, de António Sousa, Luís Mira Amaral, Paulo Macedo e Faria de Oliveira (do PSD) a Maldonado Gonelha, Armando Vara, Carlos Santos Ferreira e Almerindo Marques (do PS), passando por Celeste Cardona e Nuno Fernandes Thomaz, do CDS, só para falar em alguns dos personagens em causa.

Ademais, a CGD gasta o escandaloso valor de 2 milhões de euros por ano em reformas douradas de 17 desses seus ex-administradores, tudo de acordo com um esquema complementar de pensões aprovado em Assembleia Geral desde 1993 com o voto favorável do representante do Estado.

E claro que esta completa promiscuidade foi também sempre recompensada e multiplicada com tachos noutras instituições e lugares cimeiros do associativismo financeiro. E assim João Salgueiro, António Sousa e Faria de Oliveira ocuparam a presidência da Associação Portuguesa de Bancos; José de Matos, José Berberan Ramalho e Norberto Rosa foram, ou ainda são, quadros do Banco de Portugal, enquanto outros, como Mira Amaral (BIC), Tomás Correia (Montepio), António Ramalho e Vitor Fernandes (Novo Banco) e João Nuno Palma (BCP), saltaram da Caixa (alguns, como já referido, com reformas verdadeiramente pornográficas como é o caso de João Salgueiro, com 14.352€ mensais na altura, Mira Amaral, Vieira Monteiro, e Tomás Correia) para outros Bancos.

E tal promiscuidade ficou ainda melhor patenteada na recente sessão pública da (re)candidatura à direcção da Associação Mutualista do Montepio Geral por parte de Tomás Correia, o qual, apesar de todas as denúncias que têm sido feitas acerca da sua gestão e dos processos-crime em que é arguido, pôde contar com o apoio explícito de um autêntico desfile de personalidades da classe política e empresarial portuguesa: de Maria de Belém Roseira e Jorge Coelho a Luis Patrão e ao Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Edmundo Martinho, todos do PS, passando pelos empresários Sousa Cintra, Godinho Lopes e Rui Nabeiro, bem como por José Matos Correia e Fernando Seara, do PSD e até à presidente da Câmara Municipal de Setúbal, eleita pela CDU, Maria das Dores Meira.

E são estes figurões que nos aparecem todos os dias nos jornais e nas televisões a discursar sobre a situação económica e financeira do País, e a pregar por mais austeridade e por menos direitos para quem trabalha!?

Tudo isto mostra como a corrupção é um fenómeno inerente à sociedade capitalista, que mercantiliza tudo e em que o Estado não passa de um comité para gerir os negócios de toda a classe burguesa e consistente nisto mesmo – uma teia de interesses, de cumplicidades e de compadrios, determinante de uma troca de favores que permita a perpetuação e reprodução do sistema e que funciona como um mecanismo de enriquecimento e de reforço do poder de quem nada produz e vive da expropriação do produto do trabalho dos outros.

Não pode admirar, pois, que o dinheiro dos contribuintes fosse usado na CGD para distribuir pelos amigos, fundamentalmente grandes empresários e especuladores. E desde o milhão de contos (5 milhões de euros) emprestados no final dos anos 90 à Dinensino/Universidade Moderna, e mesmo já depois de conhecidos os seus problemas judiciais, sem quaisquer garantias, até aos 476,4 milhões de empréstimos e 214 milhões em perdas de crédito (imparidades), num total de 690,4 milhões, ao Grupo Artlant, e aos 318,4 milhões ao Grupo Efacec, valia tudo e tudo era também admitido e chancelado pela tutela e pela supervisão.

E convém recordar ainda que o citado relatório da consultora Ernst & Young só abrange o período temporal de 2000 até 2015 e o certo é que os enormes prejuízos que obrigaram à recapitalização da CGD em 4,9 mil milhões só foram reportados depois, ou seja, já em 2016, pelo que o buraco há-de ser muito maior que os agora anunciados 1,1 mil milhões.

A CGD e os seus serviços, ao mesmo tempo que sempre se mostravam implacáveis na exigência de toda a sorte de condições e garantias a um cliente individual (para um crédito à habitação, por exemplo) ou a um pequeno empresário (para o financiamento do seu diminuto parque de máquinas, por exemplo), impondo taxas de verdadeira agiotagem a quem está em dificuldades e a apresentação de duplas ou até triplas garantias (hipoteca, letras ou livranças assinadas em branco e, não raras vezes, também fiador), eram uns “mãos largas” para os amigos que precisavam de milhões para as respectivas negociatas e para os seus golpes. Designadamente com o financiamento de compra de acções para assim propiciar o assalto ao poder de algumas instituições (como sucedeu com o BCP) ou o êxito de privatizações (como as da EDP e da REN), chegando-se ao ponto de permitir que empresários “amigos” e “bons clientes” usassem os dados pessoais dos trabalhadores das suas empresas para simularem a existência da (legalmente exigida) pluralidade de compradores de acções quando na realidade era apenas um, o patrão.

Outra questão que não pode ser ignorada é a de que toda a gente – desde logo dos órgãos internos da CGD com funções fiscalizadoras como a Direcção de Auditoria (e os administradores que a tutelavam) e o Conselho Fiscal até à tutela governamental e às entidades de supervisão, como a CMVM e o Banco de Portugal – sabia perfeitamente que isto era, e desde há largo tempo, assim, e, todavia, nada fez! E tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica à porta…

Mas também o Ministério Público conhecia este tipo de situações – umas porque, apesar de todo o secretismo mantido a coberto do sacrossanto “sigilo bancário”, eram ou se tornaram públicas, outras porque lhe foram formalmente denunciadas – e também não fez nada! E sabe-se agora que tem uma investigação em curso desde Setembro de 2016, ou seja, há quase 2 anos e meio, mas da qual não resultou ainda a constituição de qualquer arguido.

E estamos a falar não apenas das situações macro, como os grandes financiamentos, por exemplo, a Joe Berardo e à sua Fundação. A quem, já agora, recorde-se também, o Governo de Cavaco entregou a programação do Centro Cultural de Belém por alegada falta de verba e, na sequência, Miguel Relvas despediu o então Presidente António Mega Ferreira. E relativamente ao qual, Berardo, a CGD levou 8 longos anos (de 2009 a 1017) para finalmente executar a garantia (75% da colecção de arte) de uma dívida de centenas e centenas de milhões de euros.

Mas também foi dado conhecimento ao Ministério Público de uma diferença de mais de 6 centenas de milhares de contos detectada nas existências de material em armazém, denunciada por trabalhadores e declarada num relatório da Direcção de Auditoria da CGD, cuja Administração o meteu na gaveta durante quase uma dúzia de anos, bem como a existência de um aparelho gravador de comunicações – marca RACAL RECORDERS, modelo Wordnet, adquirido pelo valor de 3.393.000$00 (cerca de 16.924€) à empresa M.R.A. Instrumentação para Medição, Registo e Análises, S.Apelo denominado GPS – Gabinete de Protecção e Segurança da CGD – com capacidade não só de gravação, mas também de intercepção de chamadas telefónicas feitas ou recebidas por funcionários e gestores da Caixa; e bem assim a atribuição de créditos pessoais e à habitação fora das condições imperativamente estabelecidas no Acordo de Empresa a “amigos” especiais como directores ou ex-governantes (como Sérgio Monteiro, secretário de Estado das Infraestruturas, dos Transportes e das Comunicações, de Passos Coelho), com um valor superior a 800 mil euros); e ainda a existência de uma autêntica rede de interesses, com quadros superiores da CGD a constituírem empresas para com ela celebrarem contratos milionários para a prestação de serviços, designadamente de segurança ou de apoio técnico a infraestruturas eléctricas e electrónicas, num esquema semelhante ao que já fora tão ampla quanto impunemente praticado na RTP nos anos 80 com empresas produtoras de espectáculos…

Ora, todos estes factos, conhecidos publicamente e/ou participados formalmente ao Ministério Público, são susceptíveis de consubstanciar a prática de diversos crimes (desde o da corrupção até ao da participação económica em negócio, passando pelo de infidelidade ou ainda o de administração danosa), que são todos crimes públicos, ou seja, para os quais o Ministério Público tem plena legitimidade para promover a acção penal independentemente de alguém lhe apresentar ou não queixa.

Porque é que então o mesmo Ministério Público e os seus “super-procuradores” – tal como o Banco de Portugal e a CMVM – reiteradamente nada fazem para investigar a sério e fazer punir todo este tipo de práticas que vão pôr quem trabalha – e que é quem unicamente paga a sério impostos em Portugal e com uma carga fiscal das mais elevadas! – a ter que suportar, e pagar do seu bolso, pelo menos mais de mil milhões de euros?

A razão é, lamentavelmente, simples: pela mesma razão por que, quando toda a gente sabe que a banca está cheia de trabalhadores que exercem funções nas instalações dos bancos, usando os instrumentos e ferramentas de trabalho daqueles, estão sujeitos à hierarquia e às regras e directrizes e cumprindo os horários dos mesmos bancos e assegurando o contacto e o tratamento das várias questões dos clientes dos ditos bancos, não são porém formalmente trabalhadores desses mesmos bancos porquanto… se encontram habilidosamente contratados através de empresas prestadoras de serviços ou de trabalho temporário, e toda a gente sabe onde eles se encontram, e às centenas (por exemplo, no Tagus Park)!

Ou seja, sob o argumento não afirmado, mas claramente aplicado, e tão hipócrita quanto cobarde (e ainda bem elucidativo de até onde chega o não cumprimento dos deveres a troco, designadamente, de vantagens de não ter problemas com entidades poderosas), de que a banca é um “sector estratégico” e que, “a bem da economia nacional e do evitar dos efeitos sistémicos”, convém não a hostilizar…

Ou seja, para estes “guardiões da legalidade” os interesses do grande capital financeiro e dos seus agentes e representantes não podem ser perturbados ou afectados.

Tudo isto bem mostra, afinal, que constitui uma verdadeira ilusão – a qual, aliás, e como se vê, pode até decorrer de boas intenções, mas se paga bem caro – pensar que a corrupção é a causa de todos os males da sociedade capitalista e que, por isso, seria possível combatê-la de forma consequente e eliminá-la nesse mesmo tipo de sociedade. É que é antes a lógica da sociedade capitalista que é a causa da mesma corrupção e apenas com a instituição de uma sociedade de onde tenham sido banidas a exploração e a opressão é que deixarão de vigorar os entendimentos do dinheiro e da vantagem económica como valores supremos e de que vale tudo, incluindo explorar e até sacrificar vidas humanas, para garantir e elevar os ganhos da ínfima minoria daqueles que nada produzem, mas que de toda a riqueza de apropriam.

Dizer não e combater a corrupção passa por combater e castigar os corruptos, mas passa sobretudo por dizer “não” e por combater a exploração, a miséria e a fome da escravidão assalariada!

António Garcia Pereira

2 comentários a “Caixa Geral de Depósitos – o espelho da corrupção”

  1. Manuel Cruz diz:

    Muito bem Dr. Garcia Pereira. Infelizmente é o retrato da nossa sociedade. Mesmo assim acho que vozes incómodas como a sua e outras que são capazes e tem inteligências para junto de instâncias superiores, serem denunciados e julgados.

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