O esplendor das ratazanas

Tem-se vindo a assistir nos últimos dias a um crescente frenesim de demarcações e renegações por parte de diversas pessoas, e designadamente de dirigentes do PS, relativamente a Sócrates e ao(s) processo(s) em que é arguido.

Quais ratazanas correndo freneticamente para fora do navio que se afunda, multiplicam-se lastimáveis preocupações de demarcação por parte de pessoas que nunca, bem pelo contrário, se demarcaram politicamente de Sócrates e da sua governação reacionária, que pretendem ser aquilo que nunca foram (ingénuos ou distraídos) e que até parecem querer dar razão e conferir legitimidade aos sucessivos atropelos da lei que os investigadores foram praticando no processo judicial, designadamente com as sempre cirúrgicas violações quer do segredo de Justiça, quer de outras regras processuais (desde as filmagens da detenção até à recente publicação de alguns excertos de vídeos de interrogatórios, passando pela sistemática ultrapassagem, pelo Ministério Público, de todos os prazos processuais).

Em suma, temos hoje um considerável número de pessoas que, enquanto Sócrates esteve no Poder, nunca se lembraram – e muito menos fizeram a menor crítica acerca dele – da sua governação autoritária e anti-popular, da sua ânsia de tudo controlar (da Comunicação Social aos Serviços de Informações), das medidas que adoptou contra os trabalhadores e em defesa dos grandes interesses financeiros, a começar pelos dos Bancos. E que também nunca repararam em como o mesmo Sócrates mentia, e mentia descaradamente, circunstância esta de que um dos exemplos mais gritantes foi seguramente a forma propositadamente enganosa e aldrabona com que, na própria noite em que o assinou, apresentou ao povo português o famigerado “Memorando de Entendimento” com a Tróica.

Nessa altura, simplesmente porque estava no Poder e/ou dele beneficiava, toda esta gente não apenas fechou a boca num silêncio cúmplice como até apoiou e mesmo aplaudiu todas as medidas, mesmo as mais reacionárias e desastrosas, tomadas por Sócrates. E, de uma forma geral, nunca mostrou qualquer preocupação com o autêntico “Estado dentro do Estado” em que o Ministério Público fora sendo transformado e com um processo penal acolhedor e propiciador dos maiores abusos e arbitrariedades, devendo já agora notar-se que em larga medida por virtude de reformas da Justiça adoptadas ou apoiadas pelo Partido Socialista e respectivas direcções e governos. Para os quais o modelo de processo penal e o poderio incontrolado e incontrolável do Ministério Público seriam – como eu próprio tive de ouvir, designadamente da boca de deputados do PS, numa audição parlamentar – “um dado cultural adquirido” e, logo, não sujeito a discussão e muito menos a qualquer alteração.

Ou seja, para pessoas sem princípios como estas, tais poderes e mecanismos perversos são uma coisa boa quando se está no Poder e eles servem para atacar e eliminar adversários políticos, e apenas se transformam numa coisa má quando lhes batem à porta e as atingem. E mesmo quando tal acontece, se, todavia, conseguirem safar-se a tempo, argumentando que, coitados, “não sabiam” ou até que “foram enganados” e conseguirem escapulir-se pondo os pés em cima do amigo de ontem e enterrando-o por completo no lodo, então aquilo que na véspera haviam qualificado de mau já passa a ser bom ou, pelo menos, aceitável. E assim se legitima a repetição futura, e impune, dos golpes e das batotas judiciárias e, ao mesmo tempo, se inocenta politicamente aquilo que não pode deixar de ser condenado.

Recorde-se – até pela actualidade do exemplo… – que o PS, nas legislativas de Fevereiro de 2005, sacou os votos dos cidadãos eleitores, em particular dos eleitores trabalhadores, com a promessa de que, caso fosse (como efectivamente foi) vitorioso nessas eleições, logo iria alterar o Código do Trabalho em todos aqueles pontos em que, com contundentes e acertadas críticas ao “Código Bagão Félix” de 2003 feitas pelo seu então deputado Vieira da Silva, votara contra. Mas, assim que se alcandorou ao poder, com Sócrates como 1º Ministro, do que tratou foi de manter intacto o dito Código do Trabalho em todos esses aspectos mais gravosos. E Manuel Pinho (outro exemplo bem actual) que, a nível interno, até se proclamava pai do chamado “choque tecnológico”, foi vender o nosso País aos neocapitalistas chineses como um “oásis de custos salariais mais baixos”, ao mesmo tempo que propiciava à GALP e à EDP os ganhos mais astronómicos.

A imposição da “lei da rolha” na Administração Pública, a perseguição miserável a adversários políticos (como a dos processos disciplinares instaurados a um professor do PSD que proferiu uma graçola sobre as condições da licenciatura de Sócrates e a um médico afecto ao PCP que afixou no Centro de Saúde de Vieira do Minho um escrito irónico sobre palavras do Ministro da Saúde, bem como a dos processos-crime, nomeadamente contra blogs críticos do Governo), o uso da velha e malfadada técnica de aprovar no mês de Agosto os diplomas legais mais controversos (como as alterações aos Códigos de Processo Penal, do Processo Civil, Penal e de Insolvência, ao Regime do acesso aos documentos administrativos e ao RDM – Regime de Disciplina Militar), a tentativa de criação de um pidesco sistema de fichagem de grevistas da Função Pública (correcta e felizmente chumbado pela Comissão Nacional de Protecção de Dados), a diminuição das pensões, o início do desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde, a facilitação – em nome do chavão de “flexisegurança” – da contratação precária (como a dos contratos a prazo, sobretudo para os jovens) e fraudulenta (como a dos falsos recibos verdes), tudo isso os então amigos de Sócrates não viram.

Como também não viram como, em nome do pretenso “papel estruturante” da Banca na Economia, enquanto se tributava e perseguia fiscalmente de forma implacável quem vive do seu trabalho, se aplicavam impostos muito mais baixos aos Bancos, e o Banco de Portugal e a CMVM nada verdadeiramente supervisionavam e antes permitiam que os banqueiros não só acumulassem crescentemente lucros fabulosos como os desviassem ou para “offshores” ou para a especulação financeira e o roubo mais descarados.

Os antigos amigos de Sócrates, e que agora dele se procuram astuciosamente distanciar, querem fingir que não perceberam que os governos do mesmo Sócrates não eram só ele, mas tinham também ministros, secretários de Estado, assessores, chefes de gabinete,spin doctors, directores de comunicação, dirigentes de cargos superiores da Administração Pública, todos ou praticamente todos do aparelho partidário do partido do Governo, ou seja, do PS. Tal como tinha sucedido com os governos de Cavaco Silva e o aparelho do PSD. E voltou a suceder depois com os Governos de Coelho e Portas e de António Costa.

E é aqui que reside verdadeiramente o cerne do problema e o cerne da corrupção – na verdade, impõe-se compreender que, num sistema capitalista, em que são os grandes interesses financeiros que mandam (e por isso mesmo pôde suceder o que se passou com a Banca cujos buracos de dezenas de milhares de milhões de euros são os cidadãos contribuintes que têm tido de pagar), a corrupção é um seu elemento estruturante, faz parte do seu ADN, e que um Estado e um Governo não são maus por serem corruptos mas, ao invés, são corruptos porque são maus.

Ninguém – especialmente se próximo do Poder e do aparelho do Estado – tem o direito de pretender não ter reparado que só do Grupo Espírito Santo, desde o 25 de Abril de 1974 para cá, saíram mais de 40 quadros para ocuparem, nos sucessivos governos, lugares de ministros ou secretários de Estado. E que negociatas obscuras como, por exemplo, as das intervenções do Estado na Banca e as das privatizações de empresas absolutamente estratégicas como a GALP, a EDP, os CTT, a ANA, a TAP, etc., constituíram verdadeiros negócios com vantagens recíprocas de parte a parte, que toda a gente sabia existirem, mas que os partidos e os dirigentes políticos do poder, por razões óbvias, nunca quiseram que fossem devidamente examinadas e esclarecidas. E que, verdade seja dita, também nunca o foram por alguns dos que agora se pretendem fazer passar por justiceiros e super-guardas da legalidade.

Por isso, é mais relevante do que nunca reafirmar os princípios, mesmo quando, e até sobretudo quando, não se gosta pessoalmente ou – mais importante ainda do que isso – se discordou e se discorda social ou politicamente de alguém que é acusado da prática de crimes graves: esse alguém deve ser julgado e, tendo sido feita a devida prova num processo justo e equitativo, deve ser devida e adequadamente objecto de uma sentença condenatória. Pelos Tribunais, e não por uma qualquer Comunicação Social. Com provas produzidas, e não com a versão das provas que convém a uma das partes. No momento próprio e com contraditório, e não antecipada e unilateralmente. E tudo aquilo que seja feito de forma diferente desta constitui uma batota, perigosa e absolutamente inaceitável num Estado que se diz de Direito democrático.

Isto, mesmo quando é difícil defendê-lo por se tratar de alguém como Sócrates que, na minha opinião, levou a cabo uma governação profundamente antipopular e antipatriótica, de endividamento e de venda do nosso país, de ataque aos direitos mais fundamentais dos cidadãos e de protecção dos interesses dos ricos e poderosos, ainda que tudo isso fosse então convenientemente maquilhado pelos manipuladores de opinião pública de serviço como “moderno”, “avançado” e “progressista”!

Dessa governação, porém, ele não pode nem deve ser absolvido politicamente! Que é afinal aquilo que é feito por todos aqueles que, neste momento e tão somente para salvar a todo o custo a sua própria pele, tratam de se proclamar “enganados” quanto aos crimes de que o Ministério Público faz acusações e até filmes, ao mesmo tempo que, pelo menos alguns, ressalvam a pretensa “nota muito positiva” daquela mesma governação.

Nunca gostei de ratazanas, mas é nisso que se transforma quem, em nome do “pragmatismo”, mercadeja os princípios em troca da vantagem imediata de se poder escapulir pela porta do fundo.

António Garcia Pereira

 

 

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