Tive recentemente a oportunidade de ler dois livros particularmente interessantes e que muito nos podem ajudar a compreender os tempos de hoje: Discurso sobre a servidão voluntária, de Étienne de La Boétie e Livres de obedecer – a gestão, do nazismo aos dias de hoje, de Johann Chapoutot. O livro de La Boétie, ainda que escrito há quase 500 anos, constitui um magnífico e actualíssimo estudo das relações entre o domínio e a servidão e da sua dimensão, não apenas política, mas também ética. O livro de Chapoutot, escrito em 2020, evidencia e demonstra como muitos dos temas e dos conceitos do neo-liberalismo, tais como os famigerados conceitos de “colaboradores” (em vez de trabalhadores), “flexibilidade”, trabalho por “objectivos” (a atingir a todo o transe) e “avaliação de performances” constavam já das teorias e das aplicações práticas da Menschenführung (liderança) do III Reich.
Ora, na verdade, é no discurso legitimador do capital financeiro multinacional, isto é, na ideologia do chamado “neo-liberalismo”, assente naqueles alicerces do nazismo e da sua dogmática, que encontramos afinal as afirmações do pretenso “fim da História” e do “não há alternativa” (proclamando assim as pretensas eternidade e invencibilidade do sistema capitalista de produção e procurando levar os novos escravos a aceitarem voluntariamente a sua servidão), a desvalorização (como coisas “ultrapassadas) das ideologias e dos princípios e a sua substituição pelo “pragmatismo” ou “tacticismo” (leia-se, pelo mais vicioso dos oportunismos…), o entusiasmado elogio (como valores supremos a tudo sacrificar) do poder, do dinheiro e do sucesso a todo o custo, e, enfim, a lógica de que a pretensa legitimidade (decretada simplesmente por quem tem poder para tal) dos “fins” ou dos “objectivos” justificaria todos os meios, por mais ilegais (do ponto de vista do Direito), ilegítimos (do ponto de vista da Política) e até ignóbeis (do ponto de vista da Ética) que eles sejam, tudo, do abuso mais brutal à mentira mais ignóbil, desta forma legitimando e “normalizando”.
Este é um ideário claramente destinado quer à legitimação dos poderes mais arbitrários, quer à aceitação da submissão e da servidão em relação aos mesmos, designadamente sob os dogmas da “autonomia da vontade” e da “liberdade contratual”, como se estas pudessem realmente existir da parte do servo perante o senhor, do pobre perante o rico. Mas a ele está ainda intimamente ligado todo um outro conjunto de conceitos, profundamente ideológicos, mas muitas vezes disfarçados de “postulados técnicos” ou de “modernidades”, que passam pelo elogio e pelo permanente apelo ao instantâneo, ao superficial, ao instintivo ou ao espectacular, ainda que – ou melhor, precisamente porque – extremamente manipulador e falsificador da realidade. Passam também pela pregação do individualismo mais feroz, da desconfiança e até do ódio mais primário pelo “outro”, apresentado como inimigo a afastar ou até a abater ou eliminar, transformando-nos assim e cada vez mais em seres de instintos primários, não pensantes nem reflexivos, antes absorvendo comodista e acriticamente tudo aquilo que nos é apresentado como o (novo) “normal”, seja a situação do País, a cultura organizacional da Empresa ou do serviço em que trabalhamos, ou até simplesmente o modo de (não) nos relacionarmos uns com os outros.
A gestão científica do medo por tudo aquilo que não seja o nosso próprio microcosmos, a crescente imposição da ideia de que outro caminho nos não resta que não seja o do “não levantar ondas” (ou seja, o da obediência cega), a aceitação de que a verdade é (apenas e tudo) o que nos é disponibilizado como tal, em versão reduzida e simplificada, e até já devidamente mastigada pelos responsáveis da comunicação, e assim fácil e acriticamente digerível num qualquer écran, constituem a última porção da viscosa argamassa ordenadora desta “nova” forma de organização e actividade social, onde os servos são levados a aceitar a sua própria servidão e onde os chefes – os tais que se orgulham de não lerem mails ou cartas com mais de duas linhas, mas que sabem empunhar o chicote para garantir o cumprimento dos sacrossantos objectivos… –, fiéis à missão de disciplinar adequadamente as ovelhas do rebanho, dão ordens, que são indiscutíveis. E, claro, dos subordinados apenas se espera obediência cega e servil, punindo-se severamente os que reclamam, os que protestam, ou os que simplesmente se atrevem a querer exercer direitos, até para desta forma se “passar uma mensagem” muito clara a toda a comunidade acerca daquilo que acontece aos que ousem pensar pela própria cabeça, ter as suas próprias ideias e apontar e criticar aquilo que considerem ser errado e injusto.
Ao já referido individualismo mais feroz anda também sempre associada a mistificação – grosseiramente amplificada por gigantescas máquinas de propaganda – dos chamados “discursos motivacionais”, tendentes a alimentar, sobretudo junto daqueles que trabalham cada vez mais, mas que ganham cada vez menos, (sobre)vivendo cada vez pior, a ilusão de que a solução para os seus problemas não está na destruição da sociedade capitalista e na tarefa colectiva de construção de um mundo melhor e mais justo, mas antes em “estratégias” individuais, como “fazer de cada dificuldade, uma oportunidade” ou até a de, perante o urso ameaçador que se avizinha, correr mais rápido que o companheiro do lado, ou até mesmo empurrar ou rasteirar este, para que o animal perigoso o consiga apanhar e devorar, dando assim tempo ao mais “esperto” ou mais “eficaz” para se safar e escapulir entretanto!…
Uma das vertentes ou modalidades mais “modernas” de todo este discurso legitimador da exploração e da opressão é a dogmática – imposta em nome precisamente da “flexibilidade” e da “performance” – da submissão de quem trabalha ao regime da plena disponibilidade e ao ritmo das novas máquinas, à sua avaliação em função dos objectivos definidos com base em parâmetros quantitativos, próprios dos sistemas binários, liquidando deste modo e de forma crescente as valorações e juízos qualitativos e sobretudo todos os espaços e todos os tempos não só do necessário descanso, como também do lazer, do convívio com a família e com os amigos, e bem assim do exercício de qualquer outra actividade, seja ela cívica, desportiva, cultural, política, religiosa ou outra.
“Bom” trabalhador, nesta concepção ideológica, é, pois, aquele ser meio zombie que está contactável e disponível para trabalhar 24 horas por dia, 7 dias por semana, 52 semanas por ano, que não discute ordens, que se mata a trabalhar (destruindo a sua vida pessoal e familiar) e que cumpre os objectivos quantitativos que algum “sábio” algoritmo previamente estabeleceu. Porque é esse que garante adequadamente o fluido e tranquilo funcionamento e, claro, o elevado lucro das empresas “flexíveis”, “avançadas” e “lucrativas” que a propaganda oficial tanto elogia.
Se a isto somarmos a lógica da aceitação acrítica, sem reservas e até comodista, de tudo aquilo que, com a ajuda de uma verdadeira legião de comentadores e “especialistas”, todos os dias nos oferecem, a título de informação, os novos meios de comunicação de massas, decerto compreendemos melhor como, de forma mais directa ou mais subtil, se foi instaurando o império de todo um edifício ideológico legitimador e impulsionador de uma cada vez mais brutal exploração da força de trabalho e fomentador de uma postura de obediência cega e de servidão, e de sujeição de tudo e de todos ao objectivo do máximo lucro e do ganho imediato. Mas também, e muito em particular, da aceitação do meio da mentira como ferramenta absolutamente normal e legítima para atingir os fins e alcançar o poder e o sucesso pretendidos, nos diferentes planos da nossa vida, sejam eles o social, o político ou até, por exemplo, o desportivo.
Com efeito, no campo da Política, é inegável que se banalizou por completo o mal da mentira, achando-se normal e aceitável que se falte à verdade para assim evitar derrotas ou obter ganhos. O espectáculo dantesco da sucessão de mentiradas, por exemplo, na Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP – as quais, num país decente, deveriam ter levado à imediata demissão de todos os que, por acção ou omissão, ali faltaram à verdade – e da sua posterior e completa desvalorização é disso uma demonstração inequívoca, como se preparar às escondidas a audição da CEO no Parlamento ou chamar o SIS para exercer abusivamente funções policiais, que manifestamente não lhe competem, e depois mentir descaradamente na nossa cara sobre tudo isso, fossem umas meras questões de somenos (os tais “casos e casinhos”…). O mesmo se diga do incumprimento sistemático das promessas feitas em campanha eleitoral e com as quais se sacaram os votos aos cidadãos eleitores ou, ainda e por exemplo, a recente e escondida (propositadamente não colocada na agenda oficial) deslocação do Primeiro-Ministro, em avião do Estado, para assistir na Hungria ao jogo da final de uma competição futebolística.
Ao contrário do que se poderia pensar, porém, isso também é já rigorosamente assim no campo do Desporto, em particular nos desportos profissionais e mais ainda naqueles que movimentam somas de dinheiro muito elevadas. Alguém duvida do que sucederia se, por exemplo, num jogo que decide um campeonato, um jogador que sabe que concretizou um golo irregularmente ou que simulou uma falta e assim ludibriou o árbitro, levando-o a marcar um penalti inexistente, reconhecesse publicamente, e desde logo perante o próprio juiz da partida, essa sua conduta, e com isso a sua equipa não obtivesse afinal a desejada vitória? Ou que, apercebendo-se de que o guarda-redes adversário sofrera um problema de saúde e ficara subitamente incapacitado, em vez de chutar para a baliza vazia e assim marcar, tratasse de atirar a bola para fora e ir socorrer esse outro jogador?
Não é verdade que cairia “o Carmo e a Trindade” e que, muito provavelmente, esse herói do desportivismo jamais seria contratado de novo? E também não é evidente que todos os dias assistimos, e com uma quase completa impunidade, a múltiplos comportamentos de golpes sujos e irregularidades graves, mas sempre tolerados, senão mesmo aceites, como “limpinhos”, desde que permitam atingir o objectivo de, não interessa como, levarem à desejada vitória?
E, por fim, no próprio campo da Justiça, temos também diversos e gravíssimos exemplos do que é, e a que conduz, este discurso legitimador de que venho falando, e que praticamente expulsou da Justiça todas as preocupações e exigências da Ética. Porque é isso mesmo que está em causa quando o Ministério Público e as polícias, não conseguindo ganhar “em campo” (leia-se: na investigação e na obtenção de provas suficientes), procuram ganhar fora dele, ou seja, no campo dos prévios, sempre incendiários, de consequências irreparáveis, e tantas e tantas vezes injustos, julgamentos na praça pública, através das sempre cirúrgicas e impunes violações do segredo de Justiça, sempre desculpabilizadas e até justificadas sob o sinistro argumento de que “Deus escreve direito por linhas tortas” e que, ao menos assim se conseguiu alcançar o tão legítimo objectivo da condenação daquele suspeito (ainda que “só” na praça pública). Como são a manipulação e a mentira que se impõem quando se manipulam as estatísticas e se fala apenas na “maravilha” da diminuição do número de “processos pendentes” (em curso), omitindo-se, todavia, que, por exemplo na Justiça Laboral e em virtude do pornograficamente elevado valor das custas judiciais, o número de acções intentadas por trabalhadores lesados nos seus direitos (designadamente vítimas de despedimentos ilegais) tem diminuído de forma drástica, tornando, e cada vez mais, o direito constitucional de acesso à Justiça uma miragem.
Ou, enfim, quando o Conselho Superior da Magistratura avalia os juízes (quase) exclusivamente por critérios quantitativos, de cumprimento de objectivos numéricos de processos despachados, com o que o “bom juiz” passa a ser aquele que “avia” muitos processos, mesmo que o faça com o atropelo completo de regras legais específicas (por exemplo, indeferindo tudo o que lhe atrase a agenda, ou ouvindo as testemunhas “agrupadas”, ou seja, “ao molhe”, ou não examinando, muito menos rigorosa e correctamente, as questões a decidir) ou da preocupação, que deveria ser essencial, da realização efectiva da Justiça, bastando-se com a formalidade da produção quantitativa de decisões, por mais bárbaras e injustas que ela sejam, que lhe garanta a boa classificação e a progressão e o sucesso na carreira.
Uma vez aqui chegados, podemos ignorar tudo isto e continuar a aguentar a canga de condições de trabalho e de vida cada vez mais degradadas e degradantes, não obstante os enormes progressos científicos e tecnológicos que se têm conhecido, em particular nas últimas décadas. Tal como bem podemos continuar a admitir como verdadeiro aquilo que consta do último feed de notícias do Facebook ou da última “informação” lançada no Twitter ou no Instagram e a aceitar acriticamente que “não temos alternativa” e que “nada podemos fazer” a não ser cumprir acefalamente as ordens e a Ordem estabelecida.
Ou então podemos, e devemos, tratar de construir alternativas, começando por nos empenharmos em compreender, denunciar e derrotar aquilo que está aqui verdadeiramente em causa, e que tão bem definido consta no posfácio do livro Livres de Obedecer:
Disciplinar as mulheres e os homens, considerando-os simples factores de produção, e devastar a terra avançam a par. Levando a destruição da natureza e a exploração da “força vital” a níveis inéditos, os nazis surgem como a imagem deformada e reveladora de uma modernidade enlouquecida – servida por ilusões (a “vitória final” ou a “retoma do crescimento”) e por mentiras (“liberdade”, “autonomia”).
António Garcia Pereira
Deixe um comentário