Há dois anos começava o lockdown por toda a Europa. De repente estendia-se por todos os lugares com bandeira. Fechavam-se portas e janelas, sem deixar brechas nas casas do mundo. Uma guerra com um terrorista, inimigo invisível. De onde vem? Quem vai atacar? Era palpável o medo. O desespero tomava assento no cockpit de um avião sem plano de voo. Eu que viajava como se viajar fosse uma doença endémica, fui obrigada a ficar em terra, de castigo. Sem me poder abastecer do comburente com as octanas que me dão vida. Fiquei numa Albion com colinas verdejantes, narcisos e pacatez, entre sobreviventes da Segunda Grande Guerra, ouvindo histórias de quem já estava liberto de medo.
O desespero tomava assento no cockpit de um avião sem plano de voo. Eu que viajava como se viajar fosse uma doença endémica, fui obrigada a ficar em terra, de castigo. Sem me poder abastecer do comburente com as octanas que me dão vida. Fiquei numa Albion com colinas verdejantes, narcisos e pacatez, entre sobreviventes da Segunda Grande Guerra, ouvindo histórias de quem já estava liberto de medo. Entre lavagens de brócolos com lexívia e desinfecção até cair a pele ao pensamento, reinventámos o pão e aprendi a fazer rolos de papel higiénico em origami como entretenimento. Nasciam arco-íris, canções, vídeos e unicórnios que no bico traziam a desavergonhada esperança de esperançar. Vai ficar tudo bem, diziam…Essa desavergonhada…Quatro anos antes estava em lockdown em Bruxelas à conta de uns terroristas que de maneira bem visível e palpável atiraram o medo sobre os cordeiros vítimas. Eram terroristas amigos daqueles que meses antes tinham feito o mesmo em Paris. Uma guerra que trazia o medo à flor da pele. O desespero e a desconfiança fazia-nos suar nos bancos da frente da vida. A postura era generalizada “o medo vai desconseguir de nos acabar”. Sobrepunha-se a coragem. Terroristas tinham sido armados e preparados para ensinar o medo, como comburente da vida. A nós, soldados ingénuos e despreparados que nada queremos com essas guerras. Nessa altura fui vítima de um ataque directo e ainda me vi envolvida num momento digno de uma peça de teatro dos horrores, no centro da cidade. Julguei que era o meu fim, ingloriamente deitada no chão, fingindo-me morta como nos filmes doces de sangue do Tarantino, aguardando o tiro de misericórdia dos terroristas já que qualquer terrorista sem óculos perceberia que eu não só estava ali vivinha tremendo à vista desarmada. De medo.Devo ter perdido anos de vida naqueles dias. Podia ter perdido peso, mas esse agarrou-se com medo e não me deixa. Nas minhas sinapses corriam impulsos eléctricos desvairados por não saberem colocar a razão naquele jogo de vida e morte. Se tivesse morrido, teria escrito na certidão de óbito “ jovem morre de ataque de estupefacção”. A minha vida dava-me sinais perturbadores de demência. Não pessoalmente, mas a geral que acontecia à minha volta. Começava a ser trendy viver em lockdown. Seria essa a nova vida, pensei na altura? E agora? A guerra contra o vírus ainda não acabou e já começou uma nova. Num terreno onde reina o medo. De extinção. De novo palpável. Nada pode ser mais palpável. Conto estas memórias como forma de não as perder, no caso de as perder. Como balanço. Porque só sou “expert” da minha vida. Dos demais assuntos, resumo-me a opiniões pela rama. E essas, as opiniões, tenho-as e ferozes, vindas de algumas experiências e uns estudos. Contando histórias pessoais ou do todo, aprendemos a perceber o nosso lugar no mundo. A nossa pequenez e a nossa grandeza. Resta-me perguntar para que me serve infligir dor e medo ao outro?O medo tem sido meu amigo e salva-me desde há duzentos mil anos. Como me atira para o profundo desgosto de perceber que por causa dele a razão não encontra lugar à mesa. Deixa de ser servida e nós somos comidos, sem molho, a seco. Tem sido assim ao longo de duzentos mil anos. O vírus, os terroristas, as guerras são fruto de guerra biológica, escapou-se de um animal para o humano, é consequência da vida extrema que conduzimos sem consideração pelo planeta, é a necessidade de controlar a população, é a luta de classes ou de interesses geo-estratégicos? Poderei multiplicar exponencialmente as questões. Ficarei sempre sem resposta revista por pares e cientificamente comprovada. Quais as origens desta ânsia de provocar medo e dor sobre os outros? Pode ser um conjunto de excentricidades desenvolvidas por mentes dementes com psicoses comprovadas cientificamente. Bem como falta de abraços, de amor, a começar no amor de mãe. Ou de não ter aprendido a paciência que nasce do fazer origami. Assim, do dia de hoje faço o dia internacional
Vido que eu quiser, dois anos depois de um vírus me ter tocado os pulmões e de não os querer oxigenar, um vírus com gana de circular nas veias de uma vida inteira, de me tocar nas mãos deixando-me suja, infectada, de me tocar o coração fazendo-me sentir a perda dos meus e os dos outros. Dois anos enterrados de corpo e cabeça na areia, de trazer mar nos olhos, por inteiros meses de histórias vividas em partes partidas, falhadas. Todas doridas. Vividos nas franjas das metades. Sim, hoje é dia internacional de fazer a fotossíntese. De sair à luz, de me sentar nas pétalas do sol. Na falta da doçura dos abraços por tempo a mais, na rua da paixão ali no cruzamento com a praça do amor, as minhas células usaram a luz solar para que o dióxido de carbono e a água se transformassem em glicose. Que mais posso fazer que dar à vida um puro poema prosado em creme adocicado? Posso respirar entre guerras pouco sanitizadas? Agora que quase todos temos as vacinas expiradas podemos empreender novo ciclo de medo. Para já respiro.Coloco a máscara de Antígona (os Gregos inventaram todas as tragédias para nós continuamente as repetirmos) falo contra os ímpetos de Creontes nascidos por todos os lugares, que vestem a vida de medo. De puro terrorismo. Amanhã não sei que medo nos virá cobrir, qual a tendência para vivermos trancados acontecerá, que máscara nos esconderá os olhos, por isso hoje é dia internacional das meninas que sonham desde tenra idade, por entre sombras e luz, no refúgio poético das células que as formam para viverem sem medo, até que a idade ternamente as torne tenras. Saduva(Saduva, em Swahili- “ninguém pode matar o meu espírito, ninguém me pode pisar”)
Anabela Ferreira
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