Como que ofuscados pelos aspectos ridículos, mas cada vez mais degradantes, que se vão sucessivamente conhecendo acerca do caso de Tancos, temo-nos ficado, de novo, pela superficialidade e pelo imediatismo e temos esquecido algumas questões bem mais profundas e essenciais sobre as quais há que seriamente reflectir e, mais do que isso, agir com decisão e firmeza de princípios.
Na verdade, os militares até agora detidos no âmbito da chamada “Operação Húbris” têm procurado fundar a sua defesa afirmando, por um lado, que executaram ordens superiores e, por outro, que visaram a defesa daquilo a que chamam de “interesse nacional” e, para tal, o que contava era a “eficácia dos meios”, por mais ilegais e ilegítimos que eles pudessem ser, para, pretensamente, recuperar o material de guerra furtado.
Ora, e antes de mais, convirá relembrar que esta tese do “eu só cumpri ordens” não passa de velhas palavras de ordem do fascismo (“tudo pela Nação, nada contra a Nação” e “manda quem pode, obedece quem deve”) e reproduz, no essencial, as teorias de defesa dos guardas e vigilantes dos campos de concentração nazis.
Num “Estado de direito democrático baseado (…) na garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais”, tal como a República Portuguesa é definida no artº 2º da sua Constituição, não só não é devida qualquer obediência a ordens ilegítimas ou ilegais, como até todo o cidadão tem o direito de resistência[1]relativamente a qualquer ordem que ofensa os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão ilegítima quando não seja possível recorrer à autoridade pública (como sucede nos casos em que tal agressão é praticada precisamente pela própria autoridade pública).
Deste modo, e desde logo, para que seja devida obediência a uma ordem, seja de quem for, e isto inclusive se ela for de um membro das Forças Armadas (nem que seja do respectivo Chefe do Estado Maior), militarizadas ou de segurança, tal ordem tem de ser legítima, conforme à lei e emanada da autoridade competente.
E se a ordem for no sentido do cometimento de uma ilegalidade e, em particular, no sentido da prática de um crime, o seu destinatário, em especial se ele for um funcionário público e mais em especial ainda se for um polícia, um magistrado ou militar, este tem até o estrito dever de não a cumprir e até de participar disciplinar e criminalmente contra o seu autor.
Deste modo, essa teoria de que “como me limitei a cumprir ordens, por mais bárbaras e ilegais que elas fossem, pouco ou mesmo nada fiz de mal”, o que procura é caucionar a impunidade de toda a sorte de arbítrios e de abusos, mas é totalmente ilegal e inconstitucional.
Acresce que, no caso concreto da Polícia Judiciária Militar, esta é um órgão de polícia criminal auxiliar da administração da Justiça que, do ponto de vista político e administrativo, está organizada hierarquicamente na dependência do Ministro da Defesa Nacional (como a GNR o está na dependência do Ministro da Administração Interna), mas que, do ponto de vista da promoção da acção penal, tem de actuar sempre[2]sob a direcção das autoridades judiciárias (e, desde logo, do Ministério Público a quem compete[3]promover o processo penal) e na sua dependência funcional.
Significa isto que, mesmo quando se trate de crimes relativamente aos quais a lei[4]atribui competência à PJM em matéria de investigação criminal, a mesma PJM e as respectivas “autoridades de polícia criminal” (como directores e oficiais investigadores) encontram-se funcionalmente dependentes é do Ministério Público, e não de qualquer hierarquia militar.
Assim, o Director da Unidade de Investigação Criminal ou um investigador da mesma Unidade, no exercício das suas competências no âmbito de um dado processo-crime, não tem que cumprir ordens ou instruções, sejam elas quais forem, do Director-Geral, do Chefe do Estado-Maior do Exército ou de quem quer que seja da hierarquia militar e, se o faz, viola os seus deveres e até pratica um crime. Violação de deveres e prática de crime esses que serão ainda mais graves se já se souber que o Ministério Público avocou a investigação dos factos criminais em causa ou a atribuiu a outra polícia, designadamente à Polícia Judiciária.
Isto é claramente assim no actual quadro legal. E, note-se bem, sem sequer entrar, ao menos, para já, na discussão de saber se no presente regime jurídico-constitucional ainda se justifica constitucionalmente uma polícia judiciária militar. Isto porque a Constituição proíbe Tribunais criminais especiais[5], apenas permite a existência de Tribunais militares em tempo de guerra[6]e, em tempo de paz, somente permite a participação de juízes militares nos Tribunais que julguem crimes de natureza militar e, ainda assim, somente para a investigação destes é que admite (apenas) “formas especiais de assessoria”.
É que para além da clara natureza meramente civil da nossa Justiça (também na área penal), a estafada tese de que “de questões e de crimes militares só percebem os militares”, a ser verdadeira, que não é, decerto levaria à criação de uma “Polícia Judiciária Médica” ou de uma “Polícia Judiciária Engenheira” porque de questões médicas ou de arquitectura só percebem os respectivos profissionais.
Quando, para qualquer determinada questão, são necessários conhecimentos técnicos altamente especializados, há então lugar a assessorias e exames periciais levados a cabo pelos possuidores desses conhecimentos. Mas isso não leva a transformá-los nem em polícias nem em juízes…
O que está então por detrás das práticas agora amplamente conhecidas no caso de Tancos e das construções teóricas com que se procura justificá-las?
É, afinal, a circunstância de, 44 anos após o fim do regime fascista e 36 anos após a revisão constitucional de 1982[7], em muitos sectores das Forças Armadas não se querer entender que num Estado de direito democrático não pode haver obediências cegas seja a quem for, que com a extinção do Conselho da Revolução se pôs fim à tutela militar sobre o que quer que seja do regime democrático e que às mesmas Forças Armadas passou a estar constitucionalmente atribuída uma só, embora muito importante, missão que é a da defesa militar da República[8]. E mesmo esta apenas perante ameaças externas[9]e sempre em obediência aos órgãos de soberania competentes, ou seja, ao Poder Político democrático[10]ao qual compete, e não aos militares, definir o que é o interesse nacional.
É inegável que há titulares de cargos políticos, a começar pelo de Ministro da Defesa Nacional, que se mostram tão desconhecedores das realidades quanto arrogantes e incompetentes, nomeadamente de Aguiar Branco a Azeredo Lopes.
Mas a justa e democrática reivindicação da sua demissão deve ser colocada e decidida na esfera da acção política civil e não pode nunca legitimar posições a ambições corporativas de poder militar.
Passou, deste modo e desde 1982, a haver uma clara linha de demarcação entre os objectivos, as missões e as competências da segurança interna – a cargo da polícia, como elemento integrante da Administração Pública[11]– e os da defesa nacional – a cargo das Forças Armadas.
Ora, esta questão – que só aparentemente é desinteressante, mas que se prende afinal com a própria natureza da República Portuguesa – é bem mais relevante e tem bem maiores implicações do que à primeira vista poderia parecer.
Ela significa que às forças policiais, mesmo militarizadas como a GNR (e deverá esta continuar a existir como polícia militarizada no actual quadro constitucional?), não podem ser atribuídas missões de natureza militar como, designadamente, fez o então Primeiro-Ministro Durão Barroso para fintar a resistência do então Presidente da República Jorge Sampaio ao envolvimento de forças militares portuguesas em operações militares no estrangeiro como a intervenção no Iraque em 2003.
E, simultaneamente, não podem as Forças Armadas exercer, como competências próprias, funções de polícia como, por exemplo, as de intercepção, busca, revista ou detenção de cidadãos, seja em ruas, em florestas ou em embarcações, apenas lhes competindo disponibilizar o (decerto muito útil) apoio, designadamente logístico, que pelas autoridades judiciárias e policiais civis lhes for solicitado.
É aqui que radica também a (velha de séculos) permanente tentativa da Armada de controlar, dirigir e até tratar como um seu departamento, a Autoridade do Estado no Mar (actualmente denominada Autoridade Marítima Nacional), procurando justificar essa perversão constitucional com a tese do chamado “duplo uso” dos meios da Marinha e, desde logo, das suas embarcações, mas sempre sob a direcção da própria marinha. E opondo-se sempre, e com unhas e dentes, à criação de uma mais que necessária Guarda (civil) Costeira.
É que, como já vimos, no nosso quadro constitucional, as Forças Armadas têm uma missão que é a defesa militar da República, e um objectivo, que é o aniquilamento do inimigo (externo) em cuja prossecução o critério fundamental é o da eficácia, aligeirando-se o rigor quanto à legitimidade dos meios. Já as polícias lidam, não com “inimigos”, mas com cidadãos, e têm por funções a defesa da legalidade democrática e a garantia da segurança interna e dos direitos dos mesmos cidadãos. E aqui, a busca da eficácia na prossecução dos objectivos nunca pode justificar a lesão ou o atropelo de tais direitos, sendo absolutamente inadmissível, por exemplo, a tortura de um preso para se descobrir o paradeiro de um bem por ele furtado.
Permitir e alimentar confusões a este respeito não tem outro resultado que não seja o de estar a chocar verdadeiros ovos de serpente…
António Garcia Pereira
[1]Consagrado no artigo 21º da Lei Fundamental.
[2]Por força dos artºs 55º e 56º do Código de Processo Penal.
[3]Nos termos do artº 48º do Código de Processo Penal.
[4]Neste caso, a Lei nº 92-A/2009.
[5]Cf. artº 209º, nº 4.
[6]Cf. artº 213º.
[7]Operada pela Lei Constitucional nº 1/82 de 30/9.
[8]Cf. artº 279º, nº 1 da Constituição.
[9]Cf. artº 273º, nº 2.
[10]Cf. artº 275º, nº 3.
[11]Cf. artº 272º do Título IX da Constituição.
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