O que a telenovela dos partidos do Poder nos faz esquecer

Assistimos, nos últimos dias, a uma autêntica telenovela mexicana acerca da questão do reconhecimento ou não do tempo de carreira dos professores.

Nenhum dos partidos parlamentares se saiu bem nesta novela, a qual, em todos os seus contornos, é bem reveladora do grau zero a que chegou a política portuguesa. Em que é possível a um político habilidoso como António Costa, perante uma campanha eleitoral (a das eleições europeias) que lhe estava a correr francamente mal, conseguir desviar por completo as atenções dessa mesma campanha e até aparecer – com o prestimoso apoio de um certo sector da Comunicação Social, é certo – como símbolo de “seriedade” e “responsabilidade”.

Na verdade, o PS – que tem um forte e enraizado passado genético anti-professores (com particular destaque para os governos de Sócrates e para a Ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues) – já tinha, contudo, feito promessas, quando estava na oposição, no sentido de reconhecer todo o tempo de serviço dos professores, que havia sido congelado nos tempos da Tróica e do Governo PSD/CDS. E já tinha reafirmado, no final de 2017, essa posição, ao votar a favor e fazer passar no Parlamento uma resolução (nº 1/2008) de recomendação ao Governo para que este fizesse aos professores “a contagem de todo o tempo de serviço para efeitos de progressão na carreira”.

Para depois, enquanto Governo, simular – aliás, de forma vergonhosa – uma negociação com os Sindicatos dos professores e logo de seguida tratar de impor unilateralmente o reconhecimento de apenas 2 dos 9 anos devidos.

E para agora vir agitar números (como fez através de Mário Centeno, do próprio António Costa e dos seus habituais “carros de assalto” como o Ministro Santos Silva) que sabe perfeitamente serem falsos, mas, apesar de tudo, com eles conseguir impressionar a opinião pública, primeiro e principal alvo de todo esta teatral e mediática operação.

Ora, a tal respeito basta dizer que, ao referir-se ao custo anual da contabilização da totalidade dos 9 anos, 4 meses e 2 dias, o Governo e o PS – que falaram em 635 milhões de euros anuais – esqueceram-se cirurgicamente que, a tal valor bruto da despesa (mesmo a admitir que ele estava certo e a verdade é que não está, pois andará, quando muito pelos 500 milhões de euros brutos, como agora mostrou também a Unidade Técnica de Apoio Orçamental – UTAO) seria afinal e efectivamente de cerca de 430 milhões pois que, ao primeiro valor (de 635 milhões), teria de ser sempre abatido o valor total (de cerca de 200 milhões) descontado dos salários dos professores a título de IRS e de contribuição para a Segurança Social, desconto esse que é claramente receita do Estado, e não despesa.

E o dito Ministro das Finanças Mário Centeno – que se multiplicou em “esclarecimentos” verbais e por escrito – não só nunca explicou como chegou aos bombásticos valores com que inundou a opinião pública, como manipulou grosseiramente os números e as contas, como bem demonstrou Paulo Guinote, num artigo intitulado “As contas de Centeno saberão nadar?”, publicado no Jornal Público do passado dia 4 de Maio. Um exemplo: todas as contas do Governo e do seu Ministro das Finanças foram feitas com base num valor de “aumento médio” de 205€ (que é, afinal, o valor resultante da média dos aumentos apenas dos 4 escalões superiores da carreira) multiplicado pelo número total de professores (100.000), quando é perfeitamente sabido – e desde logo pelo próprio Governo e pelo PS – que esse valor nãose aplica à grande maioria dos professores. E constitui mesmo uma verdadeira e intencional fraude intelectual pois que o respectivo cálculo foi feito sem a ponderação do número de professores que se encontram em cada escalão e, como assinala Paulo Guinote, “dividindo apenas os valores da progressão nominal pelo número de escalões, mesmo os que já não têm margem para progressão”.

Por outro lado, é inevitável que aos teóricos da “insustentabilidade financeira”, se tenham de recordar, entre outros, os seguintes números:

– 20.000 milhões enfiados na última década nos bancos falidos por até aqui praticamente impunes fraudes financeiras;

– 500 milhões de créditos incobráveis do BCP a offshores;

– 3.000 milhões de negócios ruinosos do BPN;

– 1.000 milhões de dívidas praticamente incobráveis da Ongoing;

– 968 milhões de dívidas incobráveis de Joe Berardo;

– 340 milhões de perdas da CGD com os produtos Boats Caravela;

– 214 milhões de perdas da CGD com os créditos à empresa La Seda.

Onde e para quê falta então o dinheiro?

Quanto ao PSD e ao CDS, começaram por ser, em particular no governo de Coelho/Portas, os principais responsáveis pelos maiores cortes de salários e de pensões de que há memória. Para, já na oposição, é claro, se virem declarar os maiores amigos dos professores e afirmarem apoiar, mais ou menos entusiasticamente, a contabilização da integralidade do respectivo tempo de serviço e até a aprovarem formalmente na votação na especialidade na Comissão de Educação. Para, perante o golpe de António Costa, retirarem a grande velocidade, ainda que aos gritos: “Em frente, meus bravos!”. Ou seja, mediante o subterfúgio de dizerem que afinal não aprovarão, em sede de votação na generalidade, aquela contabilização do tempo integral se os seus “travões” não forem – como já sabem perfeitamente que o não serão – aprovados. E os referidos “travões” são condições de tal ordem que o reconhecimento da integralidade do tempo de serviço ficará, afinal, dependente da vontade do governo de cada época, qualquer que ele seja, e só ocorrerá se e quando ele quiser, ou seja, no chamado dia de S. Nunca à tarde.

É que afirmar que só se paga isto ou aqueloutro se a situação financeira, o estado da economia ou a produtividade do País o permitirem, é dizer o mesmo que o PSD e o CDS já diziam quando estavam no governo e com esse tipo de pretextos fizeram o que fizeram às carreiras e salários e às pensões dos portugueses.

Por fim, é também absolutamente lamentável o papel desempenhado pelo PCP e pelo BE. Primeiro, sustentam até à última o Governo da “geringonça”, possibilitando – desde logo com o sucessivo voto favorável dos diversos Orçamentos de Estado – o essencial da sua política. Mas, depois, e só na altura em que lhes pareceu que isso lhes poderia ser favorável em termos de votos (ou seja, com a aproximação das eleições) e para menorizar os danos, inclusive os próprios danos internos, que essa colagem ao PS e ao Poder lhe tem vindo a acarretar juntos das suas próprias bases, é que se lembraram de fazer uns quantos simulacros de demarcação da política governamental, designadamente quanto à questão da contagem de serviço dos professores. 

E o seu apego aos lugares à mesa do Orçamento vai mesmo ao ponto de, agarrados ao Poder como estão, terem já garantido ao PS a manutenção do Governo de António Costa, por meio de um voto que, dizendo-se contra as tais condicionantes ou “travões” apresentados pelo PSD e pelo CDS, conduz em linha recta à derrota da proposta que fora aprovada, também pelos próprios PCP e BE, na especialidade.

Que lastimável telenovela esta!

E, entretanto – e como fundamentalmente o PS e António Costa pretendiam –, com a campanha das eleições para o Parlamento Europeu a decorrer, não se discute nada daquilo que a tal respeito verdadeiramente interessaria…

Desde logo, não se debate que sentido faz aos portugueses votarem para o Parlamento Europeu. O que vão lá defender os deputados eleitos? Que poderes existem desde logo no Parlamento português, ou não é verdade que este verdadeiramente nada decide que não tenha sido já previamente decidido em Bruxelas? Que balanço pode ser feito destas três décadas e meia de integração europeia que não seja a da destruição massiva dos nossos principais sectores produtivos (da indústria, designadamente da metalurgia, da siderurgia e da construção e reparação naval, à agricultura e pescas, apesar de sermos formalmente titulares de uma enorme Zona Económica Exclusiva) e da transformação de Portugal num país essencialmente de serviços e cada vez mais dependente do exterior? Para que serviu o euro senão para permitir e aprofundar a dominação da Alemanha (para quem a moeda única constituiu um óptimo negócio) e a destruição das economias mais fracas como a portuguesa? Estamos ou não hoje bem mais pobres, face à generalidade dos outros países europeus, do que antes da entrada do euro? Em suma, e também no campo das questões europeias, o que temos de fazer para recuperarmos a nossa autonomia e a nossa independência, com relações políticas e económicas em pé de igualdade e de reciprocidade com todos os países do mundo?

E, é claro, se nenhuma destas questões relacionadas com a União Europeia se discute, também nada se debate relativamente a questões nacionais de enorme importância.

Desde logo, a da gigantesca dívida pública, a qual, embora ninguém fale aprofundadamente disso, não cessa de aumentar representando um magnífico negócio para o grande Capital – era de cerca de 89 mil milhões de euros em 2007, 196 mil milhões em 2011, tendo atingido em Dezembro último o astronómico montante de 251,1 mil milhões, representando assim cerca de 125% do PIB (quando era de 54% em 1991, 53,4% em 2001 e passou em 2011 para 11,4%, chegando aos 130,6% em 2014). Entretanto, enquanto em 2000 o peso dos encargos com a dívida em Portugal era claramente ultrapassado por diversos outros países europeus (como Grécia, Itália, Bélgica e Malta), praticamente todos esses países reduziram, entretanto, de forma substancial esses mesmos encargos, sendo que em 2018 Portugal foi o país com o maior aumento dos mesmos (a Grã-Bretanha e a Croácia também os tiveram em níveis elevados, mas em menor percentagem do PIB).

Significa tudo isto que essa dívida – que não foi de todo contraída pelo Povo português nem o foi em seu benefício – se revela não só como eterna (o que convém ao grande Capital financeiro, apropriador dos respectivos juros), como representa encargos e juros anuais que sugam, para pagar a esses credores financeiros, montantes elevadíssimos muito semelhantes aos gastos com o Serviço Nacional de Saúde ou com o Sistema Público do Ensino (que são as maiores rubricas do Orçamento de Estado) e que davam para pagar o equivalente a quatro vezes os cortes anuais dos salários e pensões ditados pelas políticas da Tróica.

Por que é que então ninguém quer discutir como e por quem é que esta dívida foi constituída, a quem serve e se ela deve ou não ser paga? Simplesmente porque, no silêncio e nas canções de embalar das “políticas amigas do povo trabalhador”, ela, por mais que se apague, vai sempre aumentando e sempre engordando os ditos credores.

Por fim, saliente-se um ponto aparentemente muito concreto, mas que é muito significativo da actuação e da política do Governo PS, com o apoio do PCP e do BE, e do qual, uma vez mais, ninguém fala:

Persistente e arrogantemente, o Executivo de António Costa manteve e mantém em vigor algumas das mais gravosas leis laborais do Governo Coelho/Portas (como, por exemplo, a que drasticamente facilitou e embarateceu os despedimentos colectivos – que cresceram enormemente com tais leis, atingindo 82.555 trabalhadores em 2012 e nos termos das quais as indemnizações passaram a ser, como são hoje, da miséria de apenas 12 dias de salário base por cada ano de antiguidade, não podendo ultrapassar 12 meses).

Mas não contente com tudo isso, o Governo do Sr. Costa prossegue com a política (idêntica, se não pior, relativamente à do Governo PSD/CDS) de completa desestruturação dos organismos encarregues da fiscalização, designadamente da fiscalização das leis laborais.

Assim, o projecto de decreto-lei que o Governo fez publicar no Boletim do Trabalho e Emprego de 22 de Abril último e relativo ao regime jurídico de um conjunto de carreiras especiais ditas “setoriais” (sic) é um tão lastimável quanto demonstrativo exemplo de desarmamento e desestruturação da acção fiscalizadora do Estado.

Tal como diversas personalidades ligadas à Inspecção-Geral do Trabalho (IGT) e o próprio Sindicato dos Inspectores do Trabalho justamente denunciaram, a filosofia de base desse projecto de diploma menoriza por completo a função reguladora (designadamente da IGT), diminui drasticamente a estrutura salarial dos inspectores, estabelece uma carreira que leva entre 70 e 140 (!?) anos a ser completada e destrói a sua motivação, sujeita-os (sob o estabelecimento, de forma totalmente indeterminada, de um amplíssimo dever de sigilo) a uma autêntica e inconstitucional “lei da rolha” e põe gravemente em causa os princípios da independência e da autonomia dos corpos de fiscalização do Estado e, desde logo, da IGT (princípios esses que estão, quanto a esta, consagrados nas Convenções nºs 81 e 129 da Organização Internacional do Trabalho – OIT). 

A “cereja no topo do bolo” deste regime que o Executivo do Sr. António Costa pretende fazer aprovar, é a possibilidade do exercício de funções de inspecção ser efectuado através do vínculo – de natureza eminentemente precária e podendo cessar a qualquer momento por ordem governamental – da Comissão de Serviço.

Possibilitando assim ao Governo usar os referidos serviços de inspecção – como a IGT, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) ou a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) –, não como instrumentos de efectiva fiscalização do cumprimento das leis e, desde logo, das laborais, mas como dóceis e instrumentalizadas armas de arremesso contra os seus adversários políticos e os oponentes incómodos (como já precisamente fez com a ASAE relativamente ao crowdfundingdos enfermeiros e, mais recentemente, com a IGAS e até a Polícia relativamente à Ordem dos Enfermeiros).

É isto um Governo de esquerda, amigo dos trabalhadores, sério, responsável e defensor da Democracia?

António Garcia Pereira

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