Recentemente, um personagem que preside a um denominado “Fórum para a Competitividade” e que dá pelo nome de Pedro Ferraz da Costa, ao ser questionado sobre o actual valor dos salários dos trabalhadores portugueses e em particular do salário mínimo nacional (600€ brutos), decidiu proferir esta frase lapidar: “Os nossos salários são baixos? Muitas pessoas até ganham mais do que deviam”.
Ora, antes de mais, convirá recordar que o dito “Fórum para a Competitividade – Associação para o Desenvolvimento Empresarial” não passa de uma associação que confessadamente defende os interesses dos grandes grupos económicos e financeiros e cujas grandes propostas, no momento actual, são a redução do Imposto sobre os Rendimentos do Capital e a revisão da lei laboral de forma a aproximá-la da dos países… da Europa de Leste!
E, por outro lado, verifica-se que Ferraz da Costa apresenta muito pouco currículo relativamente àquilo de que precisamente acusa os trabalhadores portugueses de não quererem fazer, ou seja, trabalhar…
Na verdade, além de ser Presidente do Conselho de Administração de uma empresa da sua família, a Iberfar, ele foi presidente da CIP, a Confederação dos patrões da Indústria, entre 1981 e 2001, e actualmente preside ao citado “Fórum”. E se há cerca de dois anos atrás afirmara “ter pena que a Tróica tenha ido embora”, agora tratou também de defender que “a semana das 35 horas (em Portugal) é uma raridade na União Europeia e no mundo, sendo claramente um luxo de país rico”.
Temos assim que para este “ideólogo” dos patrões, os trabalhadores portugueses ganham demais, trabalham de menos, têm poucas qualificações, e os miseráveis salários praticados no nosso país “não deviam ser tão altos para os que apresentam maior absentismo ou para os que não se importam com o que se passa ou para os que ficam em casa” (sic).
Mas o que é ainda mais lamentável é que estas verdadeiras manipulações e falsificações de tal personagem possam, com a preciosa ajuda da Comunicação Social – a mesma que Ferraz da Costa acusa de ser controlada pela “esquerda”… –, passar incólumes, sem serem desmentidas e desmontadas como as autênticas falsidades que efectivamente são.
Como aliás bem o demonstra, e de forma esmagadora, um recente estudo – que, todavia, passou praticamente despercebido na imprensa dita “de referência” – de Frederico Cantante, investigador do Observatório das Desigualdades do ISCTE, intitulado “O mercado de trabalho em Portugal e nos países europeus” e que analisa e trata, com bastante profundidade, dados estatísticos, sobretudo de 2018, quer do nosso INE – Instituto Nacional de Estatística, quer do Eurostat, a autoridade estatística da União Europeia.
Com efeito, evidencia-se desde logo nesse estudo que, enquanto 28,6% dos trabalhadores portugueses têm o ensino secundário completo, o mesmo sucede apenas com 23,5% dos patrões. E, quanto ao ensino superior, essa percentagem é respectivamente de 27,1% para os trabalhadores e apenas 20,1% para os empresários.
Assim, quando patrões ainda não saídos da fase do feudalismo industrial, mas que, todavia, pontificam no sector empresarial, como Ferraz da Costa, falam em atrasos na qualificação e na formação escolar dos trabalhadores deveriam, primeiro, começar por olhar-se ao espelho. Porque um dos mais graves problemas para a modernização e internacionalização da economia portuguesa reside precisamente na falta de habilitações dos patrões portugueses, convindo recordar que, para se poder ser empregador, e ao contrário do que sucede para se ser trabalhador, não são precisas habilitações literárias mínimas.
Depois, importa também ver que – exactamente ao invés do que proclama falsamente Ferraz da Costa – os trabalhadores portugueses, embora ganhem menos do que os seus camaradas dos países da Europa do Norte, trabalham bem mais horas do que eles e têm menos dias de férias (22, em lugar dos 25 na Holanda e 30 na Alemanha, por exemplo).
Mas, mais do que isso, impõe-se não esquecer que nesses países, por força de uma viva e actuante contratação colectiva, praticamente inexistente entre nós, o número de horas realmente trabalhadas é muito inferior ao número máximo de horas semanais legalmente estabelecido.
E, assim, se o número máximo de horas semanais, nos termos abstractos das respectivas leis do trabalho, é de 48 horas na Alemanha e na Holanda e de 40 horas na Dinamarca e na Espanha (tal como é também de 40 horas em Portugal), já o número total das horas realmente trabalhadas naqueles países é, afinal, e na prática, muito inferior ao nosso.
Ora, em 2016, o número médio de horas semanais de trabalho dos trabalhadores a tempo inteiro, era de: 40,3 e 36,3 (este último número contando com os trabalhadores a tempo parcial) no conjunto dos 28 países da EU, 40,4 e 34,4 na Alemanha, 39,0 e 29,1(!) na Holanda, 37,8 e 36,3 na Dinamarca e 39,9 e 36,4 em Espanha. Mas em Portugal, nesse mesmo período, estes números médios eram bem mais elevados: 41,1 e 39,4 horas, respectivamente.
A teoria de que os trabalhadores portugueses trabalham muito menos do que os seus congéneres europeus não passa, assim, de mais uma redonda falsidade do Sr. Ferraz da Costa e do seu Fórum.
Mas não fica por aqui!
Em matéria de salários, e considerando que a chamada mediana salarial mensal dos trabalhadores da União Europeia por conta de outrem, a tempo completo, no sector privado, era de 2.161€, a verdade é que o rácio entre o ganho médio mensal de remunerações brutas – ou seja, antes de descontados os impostos e as contribuições para a segurança social – de cada país e o ganho médio mensal dos 28 países da UE é de 1,8 para a Dinamarca, de 1,4 para a Holanda, de 1,3 para a Alemanha e de 0,8 para a Espanha, enquanto para Portugal é a verdadeira miséria de 0,5. Ou seja, metade da média europeia!
Neste campo, os salários dos trabalhadores portugueses são ultrapassados inclusive pelos trabalhadores do Chipre, de Malta, da Grécia e da Eslovénia, e apenas se superiorizam aos países do Leste europeu, os tais com cujos padrões Ferraz da Costa nos pretende equiparar.
E deve ainda salientar-se que, se então falarmos dos trabalhadores dos sectores menos qualificados e pior remunerados, esse fosso ainda se agrava mais. Assim, enquanto a média europeia no sector dos Serviços e Vendas e dos trabalhadores da Agricultura, da Floresta e da Pesca é, respectivamente, de 1789€ e de 1908€, em Portugal, é de 799€ e 793€ euros!
Deste modo, as teses do Sr. Ferraz da Costa e do seu Fórum sobre os salários dos trabalhadores portugueses não passam, também aqui, de uma completa falsificação da realidade.
Mas ainda há mais!
A grande “estratégia de desenvolvimento” defendida pelo patronato bem representado pelo Fórum da Competitividade consiste, afinal, na “receita” de sempre dos grandes interesses financeiros, e que caracterizaram todo o fio condutor das chamadas “reformas laborais da Tróica”, de que Ferraz da Costa tantas saudades sente: diminuição dos salários, aumento dos tempos de trabalho, ameaça permanente sobre quem trabalha através da facilitação e embaratecimento quer da contratação precária, quer dos despedimentos, em particular dos despedimentos colectivos e por extinção do posto de trabalho.
Tudo isto na velha lógica do chicote sobre o escravo e no pressuposto (profundamente ideológico) de que só podem existir empresas estáveis e produtivas se elas tiverem trabalhadores instáveis e permanentemente ameaçados. Precisamente as “receitas” que o relatório da OIT – Organização Internacional do Trabalho, denominado “Trabalho Digno em Portugal – 2008-2018” (também muito pouco referido e menos ainda estudado entre nós), demonstra que em nada contribuíram para o proclamado objectivo do aumento da produtividade da economia nem para o da diminuição da segmentação (marcada diferença de remunerações e outras condições entre sectores de trabalhadores). Antes o que provocaram foi um agravamento drástico das condições de pobreza e de miséria dos trabalhadores portugueses.
E também aqui há que realçar vários outros factores que, normalmente, os ideólogos patronais e os técnicos do Capital escamoteiam. Ou por pura ignorância ou, pior ainda, por falta de honestidade intelectual.
Desde logo, e sobre a questão da chamada e pretensa rigidez da legislação laboral, particularmente em matéria de despedimentos, é habitual ouvirmos invocar uns quantos dados da OCDE quanto aos chamados “EPL” (indicadores de protecção legal) relativamente a essa mesma matéria dos despedimentos para procurar “comprovar” uma pretensa excessiva protecção legal dos trabalhadores na nossa legislação laboral. Só que:
1º Os últimos dados disponibilizados pela mesma OCDE reportam-se ao ano de 2013 e, depois disso, e particularmente em 2014, a legislação e a realidade portugueses ainda se alteraram bastante, sempre contra os trabalhadores e a favor dos patrões.
2º Uma coisa são os regimes legais formal e abstractamente aplicáveis e outra, bem distinta, é a forma como esses regimes são ou não aplicados e respeitados na prática verificando-se uma acentuada “flexibilidade de facto” quando, por exemplo e como sucede entre nós, a Justiça Laboral e a Inspecção ou a Administração Estadual do Trabalho não funcionam adequadamente.
3º Os referidos indicadores referem-se exclusivamente à chamada economia formal, mas a verdade é que, em Portugal, a economia e o trabalho informais (ou seja, completamente à margem da lei) assumem uma expressão muitíssimo elevada (calculando-se que representem cerca de 1/4 do PIB), pelo que o tipo de “análises” efectuadas pela OCDE esquece e escamoteia um enorme conjunto de relações de trabalho e de trabalhadores, precisamente o dos mais precários e mais desprotegidos.
4º Os referidos indicadores EPL da OCDE caracterizam-se por serem de mais do que discutível cientificidade, para dizer o mínimo. Só analisam a chamada “dimensão externa” (regimes de contratação e de cessação) da flexibilidade; as avaliações atribuídas a cada item são em absoluto arbitrárias e sem o mínimo de fundamentação; e, sobretudo, tais avaliações esquecem por completo a já referida falta de coincidência entre o direito formal e o direito “vivo”.
Em Portugal, hoje em dia, é (até dado o facto de os Tribunais pouco ou nada averiguarem da veracidade dos motivos invocados e a circunstância de o trabalhador, para impugnar em Tribunal um despedimento colectivo ou por extinção do posto de trabalho, precisar de ter devolvido, de imediato e por inteiro, o valor da indemnização de antiguidade que o patrão lhe haja pago) é extremamente fácil despedir um trabalhador com base nas chamadas “justas causas objectivas”, nomeadamente sob a mais que habitual “justificação” da centésima “reestruturação dos serviços” da empresa.
E é também extremamente barato promover tais despedimentos até porque, precisamente com as reformas da Tróica, para os trabalhadores admitidos a partir de 1 de Outubro de 2013, as indemnizações são calculadas à razão de (apenas) 18 dias (só) de vencimento base por cada ano de antiguidade no tocante aos 3 primeiros anos de duração do contrato e de 12 dias por cada ano de antiguidade, nos anos seguintes, e nunca podendo ultrapassar o limite máximo do valor de 12 meses de salário base.
Ora, uma vez aqui chegados, a questão é a de saber o que tem feito e, também, para não dizer sobretudo, o que tencionam fazer nesta matéria de legislação laboral o actual Governo do Sr. António Costa e os partidos que o sustentam.
E a resposta é, lamentavelmente, muito clara: também aqui, não obstante os grandes e eloquentes discursos sobre as suas posições alegadamente de esquerda, a posição do Governo do OS, mantido no Poder com o apoio do PCP e do BE, é a de não mexer, muito menos de forma decidida e decisiva, naquilo que são os pontos essenciais das sinistras políticas laborais da Tróica.
E assim temos que as alterações ao regime dos despedimentos colectivos por extinção do posto de trabalho e por inadaptação – que os tornaram tão fáceis e baratos – são para manter integralmente. Como para manter são as regras do Código do Trabalho que passaram a permitir a caducidade da contratação colectiva e praticamente a destruíram, transformando assim o nosso país num autêntico paraíso dos contratos individuais de trabalho e, logo, dos maiores abusos e prepotências patronais. Como é de manter, para o Governo e seus apoiantes, a possibilidade de contratação precária para preencher necessidades permanentes de trabalho, tendo aceite a exigência dos patrões de que, se vier a não ser legalmente permitido – como agora é – contratar a prazo trabalhadores jovens à procura do 1º emprego ou desempregados de longa duração, então o respectivo período experimental passe a ser de 6 meses durante os quais o trabalhador pode ser dispensado sem qualquer justificação e substituído por outro, sem receber sequer qualquer compensação.
E, claro, igualmente para manter é ainda a lei – o Dec. Lei nº 637/74, de 20/11, velho de quase 45 anos – da requisição civil para (mediante a sua aprovação e aplicação imediatas, mesmo que sem fundamento legal, e com a manifesta incapacidade de os Tribunais Administrativos suspenderem em tempo útil os efeitos desse tipo de manobras) o Governo, qualquer que ele seja, conseguir acabar com as greves com que se veja confrontado. Desde as que já ocorreram até àquelas que já aí se perfilam no horizonte (dos enfermeiros e estivadores aos professores, dos investigadores criminais aos funcionários dos registos e notariado, dos médicos aos técnicos de diagnóstico, dos auxiliares de educação aos funcionários judiciais, etc., etc.).
Havendo mesmo quem – em particular e significativa coincidência de opiniões entre a área política do Governo e dos seus apoiantes e as posições mais conservadoras e reaccionárias, inclusive de extrema direita – vocifere pelo aumento dos poderes do Governo para decretar requisições civis, nomeadamente ficando o Executivo com a competência da definição dos serviços mínimos (como, por exemplo, defende explicitamente um dos autores do 2º parecer que, a propósito da greve dos enfermeiros, o Governo encomendou ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, e que mostra assim a sua completa “isenção” e “independência”…).
E, já agora, convém recordar que este é também o Governo que apresentou recentemente na Assembleia da República uma proposta de lei para alterar o regime de acesso aos Tribunais. Fê-lo para diminuir as escandalosas e mesmo brutais custas judiciais, designadamente nos processos laborais? Não, de todo! Fê-lo antes para garantir que, se a um cidadão a quem foi concedido o apoio judiciário na modalidade de isenção do pagamento das referidas custas for atribuída pelo Tribunal uma determinada indemnização, é dado ao Estado o poder de lhe congelar uma grossa fatia dessa indemnização (não 10% ou 20%, mas sim 1/3 da mesma!?), para assim assegurar o pagamento das referidas custas. Como se uma indemnização fosse, não uma (fraca) reparação de um dano, mas antes um rendimento ou um “enriquecimento” e como se os interesses fiscais do Estado fossem superiores ao de conseguir dar de comer aos filhos!…
É, pois, natural que, com um Governo assim, vejamos sair das cavernas, para vir defender com unhas e dentes a exploração e opressão patronais e clamar por novas e ainda mais gravosas medidas contra quem trabalha, verdadeiros Homens de Neandertal!
Mas aqueles que lhes abrem o caminho e lhes escancaram as portas não devem julgar que os trabalhadores portugueses alguma vez se esqueçam de que “quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele”…
António Garcia Pereira
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