É certo que o turbilhão das notícias em catadupa sobre a Covid-19 com que todos os dias somos bombardeados quase não nos deixa espaço nem tempo para analisarmos e reflectirmos sobre outras questões, mas a verdade é que as públicas revelações sobre o que se tem vindo a passar na Faculdade de Direito de Lisboa – e que já não se reportam apenas às boçalidades anti-científicas e machistas do Professor Francisco Aguilar[1] e aos apoios com que ele pôde ir contando, nomeadamente da parte do professor decano Menezes Cordeiro e da maioria do Conselho Científico, como também as denúncias de graves irregularidades, amiguismos e retaliações, designadamente em concursos (supostamente públicos) para lugares de professor – não podem passar em claro e ser deixadas cair no esquecimento. Isto para já não falar, ao menos por ora, nas ali florescentes (e furiosamente concorrentes) “indústrias” de pareceres jurídicos, os quais, como é sabido, se revestem quase sempre da singular particularidade de dar razão a quem os paga…
Uma Faculdade de Direito que não cumpre a lei
Todas estas situações ocorrem numa Escola a quem tem competido a formação de milhares e milhares de juristas que vão depois desempenhar cargos e funções de relevo e de poder na sociedade.
Assim, não é de todo secundário que quadros superiores de empresas e da Administração Pública, diplomatas, auditores, advogados e sobretudo juízes e magistrados do Ministério Público sejam formados numa Faculdade onde, por exemplo, um candidato a um concurso público em que é preterido e que pretende, como é seu basilar direito, conhecer a documentação do mesmo concurso, até para decidir se o vai, ou não, impugnar judicialmente, tenha de meter a mesma Faculdade em Tribunal, intentando contra ela um processo administrativo especial de intimação para a prestação de informações ou a passagem de certidões.
Quando, finalmente, e sob o risco de instauração do competente procedimento criminal por desobediência, a Direcção da Faculdade se vê compelida a passar a respectiva certidão, logo tratou de cobrar 1€ por cada uma das 9.941 folhas do processo, tornando assim financeiramente impossível o acesso ao mesmo. Trata-se de um truque próprio da mais relapsa e indigna administração central, regional ou local, destinado a, mediante o artifício, garantir a completa opacidade dos processos de actuação e decisão.
E tudo isto se passa afinal na mesma instituição onde decerto se ensina formalmente que, nos termos dos arts.º 266º e seguintes da Constituição, toda a administração Pública “visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos[2]”, que os seus “órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé[3]” que “os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas[4]”, e que “têm também o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos[5]”, salvas as “matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas”.
Mas, claro, todos esses direitos, constitucionalmente consagrados, são para ficarem letra morta e a Faculdade não só ensina como tal se faz, como ainda premeia quem assim actua ou dessa actuação beneficia.
O facto de que, quando um concurso (por exemplo, para preenchimento de uma vaga ou para a atribuição de uma grande obra pública) é lançado, já toda a gente saiba quem vai sair vencedor é uma vergonha e um escândalo, civicamente inaceitáveis. Mas se já o é num concurso como, por exemplo, o do SIRESP (atribuído por um governo PSD/CDS já apenas em gestão corrente ao grupo SLN de Oliveira Costa), ou num concurso para lugares em autarquias (como o meu Colega Dr. Santana Maio publicamente denunciou, dispondo inclusive de provas documentais evidentes), muito mais grave é quando isso se passa precisamente numa Universidade, ainda por cima de ensino do Direito.
Os arbítrios e as sucessões dos senhores feudais
Ora, aos chumbos, inclusive pré-anunciados pelos corredores da faculdade, dos candidatos a doutoramento (que já referi no meu artigo anterior[6]) ou a lugares de professor catedrático (como sucedeu, há 13 anos com Saldanha Sanches – e não é o facto de ter tido evidentes divergências políticas e ideológicas com ele que me vai impedir de o dizer – e, mais recentemente, com Jorge Duarte Cordeiro), ou de professor associado (como se verificou com Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, o docente do caso das mais de 9.900 fotocópias a pagar a peso de ouro), há que somar ainda as desistências da prova (pré-impostas como forma de evitar o chumbo), como sucedeu com o Professor Manuel Pires.
E também, tão curiosa quanto significativamente, as “sucessões dinásticas” que naquela Faculdade (como também, é certo, noutras instituições e organizações) vêm ocorrendo, fzendo com que dois dos professores da Escola mais antigos (Pedro Soares Martinez e Menezes Cordeiro) já tenham assegurado a respectiva descendência. O neto do primeiro já foi contratado o ano passado como assistente convidado com o parecer favorável do Professor Menezes Cordeiro, e o filho deste último, António Barreto Menezes Cordeiro, foi o 1.º classificado no já referido concurso para professor associado, de cujo júri fazia parte… o filho de Soares Martinez, isto é, o Professor Pedro Romano Martinez[7].
E embora o candidato Menezes Cordeiro filho, na altura em que o concurso – de cujo júri fazia parte Menezes Cordeiro pai – foi lançado, não pudesse concorrer por não ter ainda 5 anos de carreira docente, a verdade é que tal concurso se arrastou o tempo suficiente para, entretanto, António Barreto Menezes Cordeiro preencher esse requisito e se apresentar ao mesmo concurso. E o respectivo pai, em vez de se afastar de imediato da composição de júri[8], manteve-se nele, apenas se havendo retirado imediatamente antes da deliberação formal do mesmo júri.
Pelo meio ficam outras tantas barbaridades como a de o Professor Duarte Cordeiro, no concurso para catedrático, ter suscitado o incidente de suspeição relativamente ao citado Professor Pedro Romano Martinez pela grave inimizade pessoal que entre ambos se havia estabelecido e que era, aliás, pública e notória, e o júri ter decidido sobre esse incidente um dia depois de ter já deliberado a classificação dos candidatos!…
E ainda o facto de, antes, Duarte Cordeiro, já ciente do que o poderia esperar, ter ido fazer a sua agregação – supremo crime para os senhores feudais da FDL!… – na concorrente Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, e tal “desfeita” lhe ter valido que a Direcção da FDL, na pessoa de Pedro Romano Martinez, tivesse ilegitimamente recusado o reconhecimento desse diploma, forçando o docente a recorrer ao reitor da Universidade de Lisboa, que finalmente lá conseguiu impor à Faculdade o cumprimento da lei e o reconhecimento do grau de agregação!
Como é possível ter-se chegado a isto?
Como é possível ter-se chegado a este ponto, questionar-se-ão, porventura, alguns.
A verdade é que há, desde logo, uma primeira e essencial lição a retirar de tudo isto: poderes absolutos geram sempre absolutos abusos! Mas também a de que a complacência ou até a cumplicidade (quantas vezes ditada por interesses oportunistas de ocasião) com abusadores como estes, pagam-se muito caro!
Quando os professores mais directamente ligados, antes do 25 de Abril, à repressão e à opressão mais asfixiantes – como Soares Martinez, Oliveira Ascensão, os irmãos Albuquerque, entre outros – começaram, primeiro, a “assentar arraiais” e depois trataram de criar e solidificar os seus apoios (Menezes Cordeiro começou por ser o protegido de Oliveira Ascensão, por exemplo), logo de seguida curaram de afastar os incómodos e os tidos por indesejáveis. Tudo isto, claro, sob a eterna invocação da “liberdade científica”, da “autonomia académica” e de outras coisas similares…
O caso de Barros Moura
Um dos membros do “grupo dos 9” do Direito do Trabalho da FDL, José Barros Moura, então quadro do PCP e jurista da Intersindical, foi um dos primeiros e mais paradigmáticos casos. Na altura, para se fazer o doutoramento era preciso ter-se a nota de 16 valores na licenciatura ou no mestrado. Barros Moura pretendia seguir a carreira académica e obter o grau de doutoramento. Uma vez que, tendo participado nas lutas estudantis em Coimbra e sido então expulso por duas vezes de todas as Universidades, a sua nota da licenciatura não o permitia, necessitava de ter a classificação de 16 no Mestrado. Candidatou-se a essas provas e apresentou uma tese sobre a Convenção Colectiva[9] de particular rigor académico e que ainda hoje é um clássico sobre o tema. Na defesa oral da tese portou-se com uma segurança e um brilhantismo tais que, mesmo para os apertados parâmetros da Faculdade, eram mais que merecedores de um 17.
Acontece, todavia, que o júri, após longa sessão de deliberação, decidiu – de forma mais que injusta – atribuir-lhe a classificação de 15 valores e cortar-lhe assim as pernas quanto à carreira universitária que tanto gostava de ter seguido, promovendo também o seu afastamento da Faculdade com o termo do respectivo contrato de assistente.
Na altura, mesmo perante o silêncio de praticamente todos os colegas, inclusive dos seus companheiros de ideologia e de partido político, e sendo eu um seu fervoroso adversário, ergui quanto pude a minha voz em defesa de Barros Moura e em denúncia da arbitrariedade de que ele acabara de ser vítima.
Na altura, tal foi, infelizmente, em vão. Também porque alguns acharam que a minha crítica era excessiva, outros que eu devia era estar calado porque só me prejudicaria com ela e outros ainda que não se podia pôr em causa a “liberdade científica” dos velhos/novos “senhores” da Faculdade.
Mas não me arrependo, e antes me orgulho, de o ter feito. E agora, cerca de três décadas e meia depois, vê-se quem, afinal, tinha razão…
35 anos depois, estão iguais!…
E foi também que com esta lógica de autênticos senhores feudais que no ano passado, 35 anos depois do afastamento de Barros Moura, quando a Professora Isabel Vieira Borges, uma das prestigiadas especialistas de Direito do Trabalho do nosso país, chegou ao fim do seu período de 5 anos de experiência como professora auxiliar e foi necessário o Conselho Científico deliberar sobre ou a sua nomeação definitiva ou o termo do seu contrato, o mesmíssimo Professor Pedro Romano Martinez – o mesmo que já fizera uma arguição absolutamente injusta, e mesmo inqualificável, nas provas de agregação do Professor José João Abrantes, na Universidade Nova de Lisboa – preparou a reprovação da professora com um parecer totalmente desfavorável, academicamente infundamentado e mesmo manifestamente desproporcionado e discriminatório relativamente a outros professores. E não fora a firmeza da defesa da candidata feita por outros professores (maxime a Professora Maria do Rosário Palma Ramalho) e mais uma docente de mérito indiscutível teria sido miseravelmente afastada para assim se abrir campo à contratação e/ou prossecução na carreira dos filhos e dos afilhados que dêem suficientes provas de fidelidade feudal.
Ou seja, e como sempre tenho dito, os lobos podem perder os dentes, mas não perdem nunca os intentos!…
Um vírus de ilegalidade e prepotência
Não há, assim, diferença de substância entre quem hoje domina a Faculdade de Direito de Lisboa e os mais relapsos golpistas dirigentes políticos que tratam a “coisa pública” como algo seu, que podem e devem repartir com os amigos, os familiares e sobretudo com os seus seguidores mais servis.
Como também não há diferença de substância relativamente aos defensores e executantes das praxes e suas sessões das mais reles das humilhações e vexames como forma iniciática de introduzir nos mais novos a velha lógica fascista do “manda quem pode, obedece quem deve” e do “comer e calar”, buscando formatar as gerações mais novas no mais abjecto e cobarde dos servilismos e no desprezo mais absoluto e arrogante pelo próximo.
E depois não nos devemos admirar, por exemplo, que julgadores formados nesta anti-cultura, quando têm de decidir casos de atentados graves ao bem jurídico fundamental e estruturante da nossa República,[10] que é a dignidade da pessoa humana, como são os de assédio moral no local de trabalho ou, mais ainda, os de crimes sexuais, arbitrem às vítimas irrisórias e até provocatórias indeminizações por danos morais, da ordem dos 750€, dos 1.000€ ou, quando muito, dos 4.000€ ou 5.000€…
Esse autêntico vírus do absolutismo dos poderes e da impunidade dos poderosos, da anti-democraticidade, da violação golpista e habilidosa da legalidade e da aceitação da mentira e da “normalidade da barbárie” tem de ser extirpado e eliminado.
Até porque uma “coisa” como aquilo em que lastimavelmente se transformou a Faculdade de Direito de Lisboa rigorosamente nada tem que ver com o que deve ser uma Universidade – um campus aberto e democrático, de expressão e de desenvolvimento das várias correntes de opinião e, também, uma escola de formação de cidadãos críticos, activos e conscientes, e não de autênticos servos da gleba.
O fim da eternização dos mandatos, a absoluta transparência de todos os procedimentos, a efectiva fiscalização da actividade e das decisões de todos os diversos órgãos, sejam eles quais forem, reduzindo ao mínimo aquele enorme buraco negro em que se transformaram a alegada “discricionaridade técnica” e a “autonomia académica”, a punição exemplar de quem abusa dos poderes para se beneficiar a si e aos seus ou para prejudicar outros de quem simplesmente não gosta – é por aqui que passa esse caminho!
Mesmo (ou precisamente por isso) que os velhos e os novos senhores feudais e os seus leais e servis apoiantes não gostem e não queiram…
António Garcia Pereira
[1] Que numa extensíssima e prolixa resposta, dirigida em 12/10 à revista Sábado, procura rebater o conjunto de críticas que lhe foram entretanto dirigidas, e que ele tão explícita quanto significativamente define como a “desonesta desconversa da subversão sociopaticamente integralmente inversora dos genocídios cometidos pelas feministas no Ocidente, designadamente do insidioso extermínio misândrico do homem branco cristão heterossexual”, considerando que tais críticas se explicam, afinal, pela sua “denúncia da burla feminista e das suas culturas”, pois que ”este é um processo de burlonas e genocidas que despudoradamente invertem o sentido do caso de modo a, vitimizando-se, se fazerem passar por ofendidas”. E está tudo dito…
[2] Art.º 266, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
[3] Art.º 266, n.º 2 da CRP.
[4] Art.º 268, n.º 1 da CRP.
[5] Art.º 268, n.º 2 da CRP.
[6] “Há lodo no cais: Faculdade de Direito de Lisboa”
[7] Com provas dadas também no campo político pois foi ele o líder da “task force” que, ao serviço do governo PSD/CDS e em particular do Ministro Bagão Félix, elaborou e apresentou, em Julho de 2002, o famigerado “ante-projecto do Código do Trabalho”, cuja versão definitiva foi depois aprovada e posta em vigor em 2003.
[8] Como lhe impõe o art.º 66, n.º 1, al. b) do Código do Procedimento Administrativo, que precisamente impede a participação do familiar em todo o procedimento, e não apenas na votação final.
[9] “A convenção colectiva entre as fontes de Direito do Trabalho”, publicada em Abril de 1984 pela editora Almedina.
[10] Com efeito, o artigo 1.º da Constituição da República proclama que “Portugal é uma república soberana, baseada na dignidade da pessoa humana” (…).
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