Realizou-se na quarta-feira 10/7, no Parlamento, mais um chamado “debate sobre o estado da Nação” que, uma vez mais, verdadeiramente nada verdadeiramente adiantou nem nada discutiu do que era essencial, não passando de uma troca de galhardetes de propaganda pré-eleitoral.
Senão, vejamos:
Apesar de 1/3 do vencimento ou da pensão de reforma ou o montante que deixe o cidadão executado com um valor remanescente inferior ao salário mínimo nacional serem, por lei, impenhoráveis, Fisco, Segurança Social e até Bancos persistem em, ainda agora e contra a mesma lei, executar penhoras de valores impenhoráveis.
O Fisco, que todos os anos deixa escapar centenas e centenas de milhões de euros de dívidas de grandes devedores, já todavia enche os cofres com taxas, coimas, multas e outras penalidades aplicadas aos pequenos contribuintes, de valor absolutamente desproporcionado para a falha ou infracção fiscal em causa (por exemplo, o atraso de 1 só dia de uma declaração trimestral de rendimentos para efeitos de IVA ou de uma declaração anual de rendimentos para efeitos de IRS) e mesmo que o valor do imposto a pagar seja irrisório ou até não devido. E, em contrapartida, leva “séculos” a devolver aos mesmos contribuintes aquilo que lhes tenha cobrado a mais ou indevidamente.
A Segurança Social, que sabe actuar de imediato para suspender o pagamento do subsídio ou prestações (por exemplo, porque o trabalhador não compareceu a uma junta médica por a convocatória ter ido para uma sua anterior morada), leva mais de um ano a processar a reforma de quem a ela tem pleno direito, seja por velhice, seja por doença. Incumpre ostensivamente o direito à informação dos cidadãos sobre o estado dos respectivos processos. E, do alto da sua impune arrogância, dá-se mesmo ao luxo de fazer comunicações por um mail onde tem logo o desplante de informar que “serve apenas para enviar mensagens e não recebe respostas”.
Na Educação, para além da insistência numa política de permanente desvalorização e de gratuito afrontamento dos Professores, um estudo divulgado no final do mês de Junho mostra, para vergonha nossa, que, 44 anos depois do 25 de Abril, os alunos filhos de pessoas mais ricas vão para os cursos mais prestigiados nas Universidades enquanto os filhos de pessoas mais pobres vão para os cursos menos prestigiados, normalmente dos Institutos Politécnicos.
Na Saúde, o mesmo Governo que declara ser defensor do Serviço Nacional de Saúde tem-no, todavia, vindo a destruir paulatinamente e de uma forma que está hoje perigosamente perto do irreversível. Ao mesmo tempo que desvaloriza e destrói as carreiras dos profissionais (como médicos, enfermeiros e técnicos) e que desinveste em instalações e equipamentos (ao ponto de fechar maternidades e outras unidades hospitalares, em particular nos períodos de Verão), em 2018 gastou no privado 444,8 milhões de euros com exames e meios complementares de diagnóstico e 481 milhões de euros em meios complementares de terapêutica, tudo num total de 925,8 milhões de euros assim entregues aos privados. E em 2017 só a ADSE gastou 394 milhões de euros com o chamado “regime convencionado”, isto é, também com o recurso a privados. E, entretanto, durante o ano de 2018, faltaram 64 milhões de caixas de medicamentos, obrigando 370.000 pessoas a interromperem os seus tratamentos por falta de remédios.
A Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL), tão rápida a executar bloqueamentos e reboques de veículos em transgressão (às vezes quase propositadamente criada, por exemplo, por sinais de trânsito de difícil visualização ou com rasteiras como as das horas de estacionamento em certos locais diferentes das que se encontram em toda a área circundante), apesar de devidamente avisada por automobilistas de que várias das suas máquinas de cobrança se encontram avariadas (por exemplo, engolindo as moedas mas não emitindo o respectivo cartão de estacionamento), acha-se no direito não apenas de levar horas a assegurar a reparação, como também de exigir aos automobilistas que saibam que aquilo que têm então de fazer, como única forma de evitar verem-se injustamente multados e terem os carros bloqueados e até rebocados, é efectuar, a pagar do seu bolso, uma chamada para a mesma EMEL (a qual chega a durar, até ao atendimento, 15 minutos ou mais) a dar conta do sucedido e a indicar a matrícula do respectivo veículo.
No sector do transporte ferroviário, assiste-se ao escândalo do acintoso incumprimento pela CP do serviço público a que está obrigada, com uma parte significativa (cerca de 70 comboios!) do seu material circulante imobilizado por velhice ou por falta de manutenção (e depois de se terem mandado para casa centenas de trabalhadores das oficinas da EMEF, fala-se em ir, ao fim destes anos, buscá-los de novo!) e com contínuas supressões de viagens, com todos os incómodos e prejuízos para os seus passageiros, tudo isto na base da velha e reaccionária lógica do “eles que aguentem!”. A que se somam graves problemas de segurança, desde a ausência de sensores de sobreaquecimento dos rodados em grande parte dos comboios de passageiros, incluindo os Alfa mais antigos, até ao recentemente denunciado escândalo do risco iminente de desabamento de parte da Linha do Norte (junto à Encosta das Portas do Sol, perto de Santarém), sem que nenhumas providências sejam adoptadas, muito menos com a urgência que a gravidade do caso impõe.
Na TAP, os novos aviões A330-Neo – os tais por cuja compra, pela nossa transportadora aérea, a Air Bus terá pago dezenas de milhões de comissões a David Neeleman, que assim pôde concorrer à privatização da mesma TAP pouco ou nada gastando do seu bolso, num negócio que se tivéssemos um Ministério Público verdadeiramente empenhado em investigar os crimes de colarinho branco já devia ter justificado uma investigação criminal a sério – estão a apresentar graves deficiências na ventilação do seu interior, ocasionando, além de um insuportável cheiro na cabine, também tonturas, vómitos e até estados confusionais agudos entre tripulantes e passageiros.
Ora, não obstante as persistentes denúncias do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC), o que fazem sobre esta matéria a Administração da TAP, a ANAC, bem como o Governo e o seu Ministério dos Transportes? Nada, a não ser assobiar para o lado e tentar apresentar como “normal” uma situação que, para além de representar uma violação das regras contratuais e legais, quer com trabalhadores/tripulantes, quer com passageiros/ clientes, constitui um risco para a segurança do voo, bastando pensar no que pode acontecer se, com tal deficiência, aliás já sentida em inúmeros voos, ambos os pilotos ficarem afectados, confusos ou até inconscientes.
E, recorde-se, já agora, que no 2º semestre de 2018, a TAP liderou, com 3.787, o número de reclamações apresentadas junto da ANAC contra companhias aéreas!
Portugal continua a ser um país em que a segurança e saúde no trabalho continuam a ser grandemente desprezadas. E assim, e não obstante as pomposas declarações oficiais e os grandes “programas estratégicos” formalmente aprovados, no ano passado houve, segundo os números oficiais, 149 trabalhadores mortos em acidentes de trabalho e 453 feridos graves. E só nesta semana já faleceu um jovem trabalhador de 28 anos, esmagado por uma máquina em Barcelos, e no 4º acidente de trabalho ocorrido este ano nas minas de Aljustrel, um mineiro foi electrocutado com uma descarga de 6.000 volts.
Relativamente a salários, foram publicadas as estatísticas oficiais do Ministério do Trabalho referentes ao final de 2017, que mostram que 678.000 trabalhadores portugueses por conta de outrém do sector laboral privado ganham por mês entre 600€ e 750€ brutos e outros 515.000 ganham entre 750€ e 999€ mensais. Ou seja, 2/3 dos 2,1 milhões desses trabalhadores têm afinal salários inferiores a 1.000€ mensais.
Por outro lado, um recente estudo sobre pensões também revelou que, já em 2019, mais de um milhão e meio (!?) de pensionistas recebem uma reforma miserável, inferior ao salário mínimo nacional.
Isto, ao mesmo tempo que são os dados da própria Autoridade Tributária – Dossier Estatístico do IRS-2017 – que mostram não só que os rendimentos dos salários e das pensões (ou seja, os rendimentos do trabalho) representam 90% dos rendimentos declarados para efeitos de IRS, como também que o aumento deste, no mesmo período, foi muito maior nos rendimentos mais baixos. Por exemplo, no 1º escalão (de 0 a 5.000€) a subida do imposto foi de 900€ para 1.053€ (ou seja, houve uma variação de mais 16,9%), enquanto no escalão de 40.000€ a 50.000€ tal variação foi de 0,3% e no dos superiores a 250.000€ foi de apenas 2,0%.
Em matéria de pobreza, esegundo o Inquérito às Condições de Vida e Rendimentos do Instituto Nacional de Estatística (INE), a chamada “taxa de risco de pobreza após as transferências sociais” (ou seja, após o recebimento de subsídios e pensões), “segundo a condição perante o trabalho”, subiu de 42% em 2015 para 45,7% em 2017. E no 1º trimestre deste ano de 2019, a taxa de cobertura do subsídio de desemprego (pago a 168.900 desempregados) relativamente aos desempregados oficiais (353.600), foi de 47,7%, e aos desempregados reais (ou seja, incluindo também pelo menos os 177.000 inactivos disponíveis, mas que já não procuram emprego, num total de 530.600) foi de apenas 31,8%, sendo o subsídio médio de somente 494,20€ mensais.
Entretanto – outra coisa de que ninguém fala – a dívida pública portuguesa tornou a aumentar, atingindo agora o valor de 252,4 mil milhões de euros, correspondente a 123% de todo o PIB de Portugal (isto é, bem mais de 120% de toda a riqueza produzida num ano no nosso país).
E, curiosamente (ou não!), o mesmo Estado que contínua e empenhadamente persegue, constrange e oprime quem vive do seu trabalho e quem é pobre, e despreza e desprotege quem é vulnerável, cura, entretanto, de se reforçar. E, assim, trata de – como fez recentemente o Parlamento – aumentar escandalosamente as remunerações dos juízes e procuradores, a ponto de um simples Procurador do Ministério Público com apenas 2 anos de serviço e classificação de “Bom” ou superior – e no ano passado foram 94,3% deles que tiveram tal classificação… – passar a receber uma remuneração base de 4.336€ brutos, acrescido de um subsídio de compensação de 885€ mensais, pago 14 vezes ao ano e que está isento de IRS.
Basta comparar com aquilo que ganha, por exemplo, um médico do SNS para se ter uma ideia do que aqui se passa afinal – é que um tal médico, com a formação inicial, a formação específica e outros 5 a 6 anos, ou até mais, de internato, não ganha sequer 2.000€ mensais.
Mas, para além da “roda livre” do Ministério Público e dos diversos Serviços de Informações, de que já aqui falei por diversas vezes, eis que nos surgem então duas “cerejas no topo do bolo”.
Por um lado, o Parlamento é um local onde se acha “natural” que um deputado do PS, Hugo Pires, coordenador do Grupo da Habitação, da Reabilitação Urbana e Políticas de Cidades na Assembleia da República e directamente envolvido na elaboração da Lei de Bases da Habitação ali aprovada na sexta-feira passada, seja sócio (com 20% do capital) e co-administrador de uma imobiliária, a CRIAT, com interesses directos na área da habitação e urbanismo, a ponto de estar presentemente a promover o despejo de uma conhecida Livraria de Braga (a Livraria Mavy).
E é nesse mesmo Parlamento que PS, PCP e CDS uniram esforços e votos para chumbar na especialidade um projecto de lei do BE (que contou com os votos favoráveis do PSD) que previa a atribuição do estatuto de vítima às crianças que testemunhem situações de violência doméstica, persistindo assim em violar a Convenção de Istambul, em particular o seu artº 26º.
Por outro lado, de acordo com a lei 126/XIII/3-GOV, proposta pelo Executivo do Sr. Costa e aprovada no passado dia 6 de Julho no Parlamento só com os votos favoráveis do PS e a abstenção de todos os restantes, através de uma manobra subtil e em que poucos atentaram, as regras que actualmente se aplicam ao tratamento de dados pessoais pelos Tribunais – matéria que, dado tratar-se de um órgão de soberania, estava excluída da fiscalização da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) – passam agora a aplicar-se também ao “tratamento de dados pessoais pelos órgãos de polícia criminal, no âmbito do processo penal”! Ou seja, o PS do “democrata” Sr. Costa tratou de assegurar que, a partir de agora, as bases de dados das polícias, contendo informações de toda a espécie sobre cidadãos, activistas sociais, políticos e sindicalistas, etc., passem a ficar fora do controle, do escrutínio e da fiscalização da CNPD e sejam antes geridas e “controladas” somente pelas próprias polícias e, claro, pelo incontornável e omnipotente Ministério Público!…
Ora, todas estas realidades significam o quê?
Significam que, não obstante todas as propagandas e todos os discursos oficiais e parlamentares, este é que é o verdadeiro “estado da Nação” onde a situação de quem trabalha ou já trabalhou uma vida inteira está cada vez mais difícil e cada vez mais restringida em termos de acesso aos direitos fundamentais, designadamente a Saúde, os Transportes, a Educação e a Segurança Social, para além do caso evidente da Justiça (e viram como a questão da verdadeira enormidade das nossas custas judiciais foi literalmente metida na gaveta por todos os partidos parlamentares, eternizando assim uma Justiça para ricos e outra para pobres?).
Para nós, cidadãos, constitui um direito, e até mesmo um dever cívico, não nos esquecermos de tudo isto, nomeadamente quando formos chamados a votar…
António Garcia Pereira
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