Onde pára o nosso direito à indignação e onde ficou a nossa dignidade?

Segundo os dados do último “Inquérito de caracterização das pessoas em situação de sem-abrigo”, referente ao ano de 2022, mais de 10.700 pessoas viviam nessa situação de sem-abrigo, a maior parte dos quais em Lisboa e no Porto, mas já também noutras cidades, como Beja, por exemplo. Sabendo-se que tais números oficiais pecam por manifesto defeito e que, logo no ano seguinte, esse número terá crescido cerca de, pelo menos, um milhar, é tão patente quanto revoltante o estado de absoluta miséria em que todos esses nossos compatriotas se encontram, sem que os nossos governantes, centrais e locais, consigam mostrar-se capazes de lhes assegurar um tecto, uns balneários e um refeitório minimamente digno.

Pelo contrário, e ao invés dos discursos de caridade fácil sempre fluentes e frequentes, sobretudo em certas alturas do ano, como no Natal, do que se trata, afinal, é de os discriminar, maltratar e perseguir. Por exemplo, o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, tratou de os expulsar da zona da Igreja dos Anjos para que o “sagrado” turismo não os veja, mas fê-lo em tais condições de arbitrariedade e de precipitação que vários deles se viram espoliados dos seus parcos haveres, e todos estão agora confrontados com a crua realidade de que os abrigos temporários onde foram colocados não têm o mínimo de condições e, pior ainda, sob a ameaça de que tal “solução” é apenas por um mês e que, após esse período, terão de arranjar casa pelos seus próprios meios.

Essas pessoas, se conseguem sobreviver e comer alguma coisa, é porque todas as noites dezenas de voluntários de organizações de solidariedade social os visitam e lhes entregam alguma comida e agasalhos, ouvindo depois da Ministra do Trabalho e da Segurança Social que o seu trabalho é muitas vezes “contraproducente”…

E ninguém se revolta, ninguém diz nada?

Sabe-se que muitos destes sem-abrigo (em número crescente) são imigrantes pobres, caídos nas garras das máfias do tráfico de seres humanos e trazidos para Portugal para serem utilizados como autênticos escravos e eternos devedores. Veja-se o que continua a acontecer em zonas como Odemira e de, apesar de se ter sabido, há uns anos, na bacia do Rio Mira, do escândalo dos negócios fabulosos dos traficantes, dos empresários e dos intermediários, e das condições infra-humanas dos trabalhadores provindos do Nepal, da Índia, do Paquistão, etc., utilizados intensivamente, sobretudo em certas actividades agrícolas, sendo depois abandonados à fome e à miséria mais extrema

E ninguém se revolta, ninguém diz nada?

Temos, no nosso País, mais de dois milhões de pessoas a viver abaixo do limiar da pobreza e mais de um milhão e setecentos mil sem médico de família. Somos o segundo país mais envelhecido da União Europeia, e o quarto mais envelhecido do mundo, sendo que quase ¼ da população tem 65 ou mais anos, havendo 182 idosos para cada 100 jovens. 

E se o aumento de esperança de vida da população mais idosa é, obviamente, um facto positivo, a dura verdade é a de que uma parcela muito significativa dos nossos velhos, com o avançar da idade, perdem a sua independência e são atirados para um “canto”, como se se tratassem de seres imprestáveis que deviam desaparecer para assim não onerarem o Orçamento de Estado, em particular com as suas (magras) pensões e com os custos de saúde. Uns são mantidos em camas de hospitais – as chamadas “baixas sociais” – por não terem para onde ir. Outros são despejados e atulhados em “lares” sem o mínimo de condições, muitos deles ilegais, como se descobriu na altura do covid-19 pelas mortes em massa dos utentes mais velhos e mais doentes). Outros ainda são encarcerados em casas ou em quartos de que não podem sair por não se conseguirem deslocar, pois muitos dos prédios não dispõem de elevadores. 

E todos recebendo, de uma forma geral, pensões de miséria. Em 2022, quando o limiar da pobreza era 506,80€, segundo o INE, 68,4% (mais de 2/3!?) dos pensionistas portugueses recebia pensões inferiores a 443,20€. Se adicionarmos aqueles que tinham pensões entre 443,20€ e os referidos 506,80, teremos então um total de 1.435,617 pensionistas, ou seja, 70,5% do total. Tudo isto enquanto o saldo positivo da Segurança Social – que paga as pensões – foi de 4.068 milhões de euros, em 2022, e de 5.464 milhões, em 2023, com as mulheres pensionistas numa situação ainda mais grave, pois as suas pensões são, em média, apenas 56,8% das dos homens (381,81€ para 671,75€, respectivamente, em 2022).

E ninguém se revolta, ninguém diz nada?

As mulheres e as crianças são, de longe, as maiores vítimas de crimes de violência doméstica e de homicídios nesse mesmo contexto (17 adultas e 2 crianças em 2023), alguns ocorridos depois de várias queixas apresentadas na Justiça. Segundo dados da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), esta Associação, entre 2021 e 2023, contabilizou 64.889 crimes de violência doméstica e ajudou 31.117 vítimas, sendo que mais de metade (54,5%) foi vítima de violência continuada (com 294 casos de mais de 40 anos nessa situação!). 

As participações oficiais (muito inferiores, como bem sabemos, à realidade, desde logo devido ao estigma social e às pressões que sempre recaem sobre as vítimas denunciantes) de crimes de violação atingiram o número de 519, sendo que, em mais de 60% dos casos, são cometidas por familiares ou amigos. Todavia, a machista e misógina cultura judiciária, ainda dominante na nossa sociedade, faz com que os nossos legisladores se recusem a dar pleno cumprimento ao art.º 36.º da Convenção de Istambul, apesar de devidamente assinada e ratificada pelo Estado Português, consagrando a violação como crime público, conduzindo a que os nossos Tribunais tratem, de uma forma geral, com uma estarrecedora e medieval benevolência os violadores e os autores de violência doméstica, suspendendo-lhes a execução das penas, co-responsabilizando as vítimas e até impondo, a elas e aos filhos, a continuação do contacto com os agressores, com dramáticas e fatais consequências em diversos casos.

As vítimas de abusos sexuais praticados por membros da Igreja Católica – após o difícil, importante e muito rigoroso trabalho da “Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças por Membros da Igreja Católica Portuguesa” – estão hoje a ser sujeitas a um processo indigno de descredibilização e de desincentivo (conducente a que pedidos de desculpas nãos sejam apresentados e a que as mais que devidas indemnizações não sejam pagas, pelo menos nos montantes que seriam devidos), mercê da actuação do chamado Grupo Vita, criado pela hierarquia da própria Igreja e coordenado pela psicóloga Rute Agulhas, que até já se permitiu fazer um tão despudorado quando infundado ataque público à Comissão Independente.

E ninguém se revolta e ninguém diz nada?

Segundo as estatísticas oficiais da PSP, relativamente aos 151,647 acidentes de viação reportados, que ocorreram entre o início de 2022 e 31/08/2024 (e dos quais resultaram 193 vítimas mortais, 2.005 feridos graves e 45.997 feridos ligeiros), em 31.166 deles (ou seja, cerca de 20%), mesmo havendo feridos graves ou vítimas mortais, os condutores intervenientes fugiram do local, não solicitando auxílio para as vítimas e eximindo-se à identificação por parte das autoridades. Tudo isto como se tal pudesse ser normal ou aceitável e sem que pareça merecer uma indigna e consequente repulsa por parte dos restantes cidadãos.

E ninguém se revolta e ninguém diz nada?

Chegámos, pois, ao “grau zero” da convivência humana e do mínimo de respeito pela vida, pela integridade física e moral e pela dignidade do outro. Assim, há que fazer uma seríssima reflexão acerca de onde nos conduz a corrosão dos caracteres, induzida, reproduzida e amplificada por um ideário social e político, assente em desvalorizar e amesquinhar o outro e a solidariedade para com ele, e em endeusar o individualismo mais feroz, o poder e o dinheiro como os valores a prosseguir, por qualquer forma e por qualquer meio, com a contínua pregação de ideias e práticas de comportamentos próprios de um darwinismo social levado ao extremo de uma autêntica lei da selva, onde só os supostamente superiores têm direito a viver. 

Defender e lutar por relações sociais baseadas na igualdade, na dignidade de todos os seres humanos, no respeito pelo outro, nos valores da solidariedade e da fraternidade, eis a tarefa que se nos impõe. É preciso e é urgente sonhar com um mundo mais justo. Mas, mais importante ainda, é querer e saber resistir, e querer e saber lutar por ele!

António Garcia Pereira

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