Onde páram agora os Moros da nossa praça?

A decisão do Juiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal do Brasil[1], que anulou as acusações e condenações do ex-Presidente Lula da Silva – e que, salvo honrosas excepções, não despertou grande relevo ou particular interesse por parte quer da nossa Comunicação Social, quer da nossa Comunidade Jurídica – assume, todavia, e em especial para todos nós, juristas e não juristas, cidadãos democratas, seja qual for a preferência político-partidária, pelos fundamentos que invoca, uma enorme relevância. E não apenas do ponto de vista jurídico-formal, mas também e sobretudo na perspectiva dos princípios essenciais de um Estado que – como o Português – se proclame “de Direito Democrático, baseado (…) no respeito e na garantia de efectivação do direitos e liberdades fundamentais”[2].

Na verdade, a decisão em causa decretou com toda a clareza a incompetência do Juízo da 13.ª Vara Federal, subsecção Judiciária de Curitiba – onde pontificava o Juiz Sérgio Moro –, para o processo e julgamento das acções penais no âmbito das quais Lula da Silva fora condenado em Julho de 2017, pelo mesmíssimo Sérgio Moro, a uma primeira e pesada pena de prisão e, posteriormente, a uma segunda, e igualmente pesada, condenação. E em consequência, declarou irremediavelmente nulos todos os actos decisórios produzidos pelo Tribunal de Curitiba, desde o recebimento da denúncia do Ministério Público até, inclusive, às sentenças condenatórias finais, em todos os processos[3] instaurados e conduzidos pela “santa aliança” do Juiz Moro e da equipe de procuradores da investigação “Lava Jato”.

Aquilo que está aqui essencialmente em causa é o truque dos justiceiros Moro e procuradores amigos consistente em tornear e violar o basilar princípio do juiz natural para conhecer e julgar os alegados crimes praticados, o qual teria sempre de ser o juiz da Secção Judiciária do Distrito Federal, tal como agora foi correctamente ordenado. Para tanto, invocaram uma não especificada, não demostrada e não existente conexão dos factos denunciados com aqueles que definiriam a competência do Tribunal de Curitiba para dessa forma ínvia conseguirem entregar a investigação, a instrução e o julgamento, respectivamente, aos procuradores do Ministério Público e ao juiz tidos por convenientes, atingindo pela via da condenação, desta forma antecipadamente garantida, o objectivo político do afastamento de Lula da Silva das eleições presidenciais de 2018 e a consequente abertura do caminho à vitória de Bolsonaro. 

Que era esse o objectico, político, da equipe de “justiceiros”, com Sérgio Moro à cabeça, já tinha ficado absolutamente claro com as investigações e revelações efectuadas por corajosos jornalistas independentes, em particular os do “Intercept”, e a publicação das escutas feitas àqueles mesmos justiceiros, pelas quais se tornaram evidentes, sobretudo, dois factos: 

1.º Era o juiz Moro quem realmente dirigia as investigações, dando indicações e sugestões sobre as diligências e manobras que os procuradores haveriam de executar; 

2.º Aquilo que sobretudo importava era “queimar” e impedir a candidatura presidencial de Lula da Silva, recorrendo inclusive à tão nossa conhecida e tão frequente violação do segredo de justiça, com o cirúrgico vazamento para a Comunicação Social de escutas telefónicas tidas por desfavoráveis para os arguidos…

E que os procuradores bem sabiam, e desde há muito, que, no rigor da lei, o Tribunal de Curitiba não era de todo o competente para os citados processos contra Lula, resulta absolutamente claro do facto (tal como denunciou já em 2019 o “Intercept”) de Deltan Dallagnol, coordenador da chamada força-tarefa da Operação Lava Jato) ter enviado, às 21h36 de 09/09/2016, a um grupo muito significativamente auto-denominado de “Incendiários do ROJ” (constituído por procuradores que trabalhavam no caso) esta elucidativa mensagem: 

“(…) até agora tenho receio da ligação entre Petrobras e o enriquecimento e depois que me falaram to com receio da história do apto (apartamento, nota nossa)… são pontos em que temos de ter as respostas ajustadas e na ponta da língua.”

Sendo o Tribunal de Curitiba competente apenas para os casos de corrupção da e na empresa petrolífera Petrobras, colocar os processos de Lula da Silva nesse Tribunal sem se ser capaz de estabelecer a conexão dos factos a ele imputados com os do caso daquela empresa foi a manobra, golpista e fraudulenta, de teor jurídico-formal (só) aparentemente correcto, para alcançar um objectivo político – o da destruição da candidatura presidencial de Lula da Silva – e social – de promoção da imagem e carreira dos “super-juízes” e “super-procuradores”, apresentados como campeões da luta contra o mesmo tipo de criminalidade que, afinal, eles se mostram também capazes de cometer. 

É que, convém recordar, graves ilícitos criminais como os de recebimento indevido de vantagem ou de corrupção não têm necessariamente que passar pela obtenção e recepção de dinheiro, mas podem consistir, por exemplo, na vantagem duma progressão de carreira, da obtenção de prestígio, da construção de uma imagem pública favorável, etc…

Ora, que o objectivo de toda esta verdadeira conspiração, travestida embora de grande empenho investigatório, era, afinal, político, tornou-se absolutamente incontornável quando, para além do conhecimento que se foi tendo daquilo que diziam e combinavam os conspiradores judiciários, o candidato presidencial conduzido à vitória chamou para ser seu Ministro da Justiça o “imaculado”, “apolítico” e “apartidário” juiz Sérgio Moro, e este aceitou…

Note-se que, como, aliás, nota Manuel Carvalho, no seu editorial do “Público” de terça-feira 09/03, não está aqui em causa qualquer questão de simpatia ou antipatia por Lula da Silva, de cuja política, aliás, fui e sou, em muitos aspectos (em particular no tocante às questões da corrupção e da contemporização com os interesses do grande capital, industrial e financeiro) particularmente crítico. Mas os combates políticos travam-se na arena política, aí derrotando os adversários políticos, com argumentos políticos e obtendo a concordância e o apoio por parte dos cidadãos, e a estes prestando contas. 

E quanto aos crimes eventualmente cometidos, eles devem ser investigados, acusados e julgados em processos judiciais caracterizados pelo escrupuloso respeito pelas regras do jogo, pela verdadeira igualdade de armas entre a acusação e a defesa, pela garantia e pelo não atropelo dos direitos e garantias de todos os sujeitos processuais, dos arguidos aos queixosos, passando pelas acusações pública e privada.

E aqueles que, nomeadamente em nome de que os seus alegados fins (como os do combate à criminalidade económica altamente organizada) justificariam todos os meios, praticam a batota, escolhem Tribunais, juízes e procuradores “à maneira”, passando para a opinião pública aquilo que, estando em segredo de justiça e sendo desfavorável para os arguidos, é susceptível de conduzir a julgamentos sumários executados por uma Comunicação Social ávida de sensacionalismos e cooperante com o justiceirismo, estão, afinal, a tornar-se delinquentes no mínimo iguais, senão, pelo menos nalguns casos, até piores, do que aqueles que dizem combater.

É por tudo isto que a decisão agora produzida pelo Juiz Edson Fachin é tão importante, e não só para o Brasil como para todos os demais países, a começar por Portugal. Tal decisão – note-se – não pôs termo aos processos e respectivas investigações, remetendo-os antes para o Tribunal, que é naturalmente competente por força da lei anterior aos factos, que terá agora de decidir, nomeadamente, se aceita e valida, ou não, os actos investigatórios e instrutórios que nos vários processos foram praticados, se considera ou não que outras diligências (ou de que outra forma) devem ser praticadas, se as acusações devem ou não ser recebidas, no todo ou em parte, e como deverão decorrer os julgamentos na instância competente, garantindo que neles nunca poderá participar quem já anteriormente neles interveio e tem sobre eles um pré-juízo perfeitamente formado.

Impõe-se desde logo perguntar, após esta decisão do STF do Brasil e tudo aquilo que ela põe a claro, onde páram agora os Moros da nossa praça e os seus elogiadores, sempre prontos a apresentar o dito justiceiro-mor como o paradigma do bom juiz. 

É certo que em Portugal é, na verdade, difícil debater a sério estas questões. Por um lado, porque não temos, de modo geral, uma Comunicação Social que queira e tenha coragem para fazer investigações “à Intercept” acerca não só dos suspeitos da prática de crimes, mas também da própria Justiça e dos seus principais intervenientes. Por outro lado, porque sempre que se procura fazê-lo, logo se ergue uma tremenda algazarra, conduzida sobretudo pelos sindicatos dos procuradores e dos juízes, insinuando que, com tal debate, se está a procurar atacar a sua autonomia ou independência e a defender os criminosos, em particular os corruptos. E finalmente porque estas questões básicas da Justiça, para muitos (demasiados), são algo de muito distante e até pouco importante, apenas despertando para elas quando lhes batem à sua porta ou de alguém muito próximo… Foi, porém, o próprio Papa Francisco quem recentemente declarou, de forma muito certeira, que “a indiferença é perigosa, seja ela inocente, ou não”.

Para não irmos por ora mais longe, mesmo no tocante ao basilar princípio do juiz natural – verdadeiro progresso civilizacional, indispensável para impedir que poderes instalados, fora e dentro da própria Justiça, possam fazer aquilo que Moro e companhia fizeram em Curitiba – certo é que tivemos durante anos a fio um Tribunal (Tribunal Central de Instrução Criminal) em que havia um só juiz, Carlos Alexandre, notoriamente considerado “amigo” do Ministério Público e a quem este conseguia entregar os processos que lhe convinha através do expediente de imputar a alguém, mesmo que sem qualquer fundamento efectivo, a prática de algum crime cuja competência é, legalmente, do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) do Ministério Público, logo competindo a respectiva instrução àquele mesmo e único juiz. E tudo isto sem que tal anormalidade parecesse criar qualquer incómodo aos sindicalistas e comentadores da Justiça, aos professores de Direito e até à própria Ordem dos Advogados ou à maioria dos seus órgãos e dirigentes.

Por outro lado, a mesma indiferença cúmplice se verifica quanto à possibilidade legal[4] da afectação de determinados processos a certos juízes a pretexto das “necessidades dos serviços” e do “equilíbrio da carga processual” e com base num regulamento do Conselho Superior da Magistratura (CSM), aprovado e aplicado pelo próprio Conselho, operando a referida afectação sob proposta dessa figura de constitucionalidade mais do que duvidosa (até face ao principio da independência dos juízes) que é a do Presidente do Tribunal.

Ou seja, por actos verdadeiramente insusceptíveis de real verificação[5], hoje, em Portugal, é legalmente possível que, sob os auspícios do CSM, e independentemente de quaisquer problemas com a distribuição, um processo que já foi, e correctamente, distribuído ao juiz “A”, seja depois atribuído ou “afectado”, precisamente com aqueles argumentos/pretextos, ao juiz “B”!

Por outro lado ainda, enquanto não há revelação nem de escutas nem de e-mails do interior da própria Justiça (incluindo, por exemplo, a Procuradoria Geral da República e as instruções dela emanadas), ninguém fora do CSM sabe, nem ninguém conhece, por exemplo, o que exactamente consta do relatório que o Vice-Presidente do CSM ordenou, por despacho de 27/12/2017, que fosse elaborado acerca do esquema das adopções ilegais, denunciado pelas reportagens da Jornalista Alexandra Borges, e da forma como os Tribunais lidaram com os diversos e respectivos casos. 

Do mesmo passo que continua num outro “segredo dos deuses” aquilo que verdadeiramente levou dois procuradores do caso Casa Pia a vasculharem os telefones e respectivos registos de dezenas de titulares de cargos públicos (do Presidente da República Jorge Sampaio ao Presidente do Supremo Tribunal Administrativo) sem qualquer relação com casos de pedofilia, registos ilegais e abusivos estes que conduziram à organização do tristemente célebre “Envelope 9”, sendo que a divulgação da sua história pelo jornal “24 Horas” levou à sua espectacular e insólita invasão, em 15/02/2016, por policias e procuradores do Ministério Público chefiados pelo nosso bem conhecido procurador Rosário Teixeira e à apreensão de computadores dos jornalistas.

Como continuam, sempre livremente, sempre acintosamente e sempre impunemente, as fugas “cirúrgicas” do segredo de Justiça destinadas a passar para a opinião pública a versão que mais convém à acusação e a executar sumária e publicamente arguidos que, às vezes, nem sequer ainda foram acusados de qualquer crime.

É caso para perguntar, e perguntar bem alto, de quantas decisões como as de Edson Fachin precisamos afinal na Justiça portuguesa para que nela não possam mais existir nem actuar livremente outros “Moros” e respectivos “amigos”.

António Garcia Pereira


[1] Decisão de 08/03/2021, proferida no processo de Habeas Corpus 193.726 Paraná.

[2] Art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa.

[3] Conhecidos como “Triplex de Guarujá”, “Sítio de Atibaia”, “Sede do Instituto Lula” e “Doações ao Instituto Lula”.

[4] Estabelecida pela chamada Lei da Organização do Serviço Judiciário: Lei n.º 62/2013, de 26/08 no seu art.º 94.º n.º 4, al. f).

[5] Visto que dos actos, mesmo dos de natureza claramente administrativa, não se pode recorrer para os Tribunais Administrativos (como determina o art.º 212.º, n.º 3 da Constituição), mas antes para uma secção especial do Supremo Tribunal de Justiça (o qual é presidido pela mesma pessoa que preside ao CSM), que recorrentemente considera que não tem que reapreciar a matéria de facto dada como “provada” por aquele Conselho e que se torna assim, sem qualquer verificação ou controle superior, definitiva.

Um comentário a “Onde páram agora os Moros da nossa praça?”

  1. […] Este quadro de obliteração do Estado de direito democrático sem que Presidente da República, Governo e partidos sequer ousem olhar a besta nos olhos conta com raríssimos denunciadores. Um deles é o Garcia Pereira, e, apesar de também não ir além da rama por razões que ignoro, o que aqui nos deixa são fatais peças deste puzzle: Onde páram agora os Moros da nossa praça? […]

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