Lembrei-me do doente imaginário a propósito dos discursos do Pontal. O Doente Imaginário (Le Malade Imaginaire) foi a última peça escrita por Molière, em 1673. Nela, Molière satiriza a precária ciência do seu tempo, a medicina. Faz uma crítica feroz à relação médico-paciente, marcada pela frieza e pela cupidez. Em O Doente Imaginário, ele disserta sobre a má-fé dos poderosos – neste caso, a dos médicos, naquela época, charlatães, na maioria.
Visto do Pontal, pelos olhos clínicos de Passos Coelho e Paulo Portas, os portugueses são doentes imaginários, estão cheios de saúde e de ronha. Queixam-se, os malandros. Se trocarmos médicos por economistas da troika e seus agentes locais durante estes quatro anos, ficamos com uma ideia da charlatanice de quem nos governou. Os portugueses, como os povos dos países periféricos da Europa, somos, infelizmente, doentes reais e fomos tratados por charlatães sem escrúpulos, idênticos aos que Molière apresentou como ignorantes e pretensiosos por ludibriarem e explorarem os desprotegidos que lhes caíam nas garras.
Molière deixou para a posteridade uma crítica feroz à medicina, que hoje assenta como uma luva à ideologia única da União Europeia e foi mais longe, chegou à negação da própria medicina. O mesmo que qualquer pessoa sensata fará a propósito das receitas das atuais escolas de economia triunfante prescritas aos gritos por Paulo Portas, enquanto se lhe descolavam as melenas do crânio liso.
A negação de Moliére teve origem na sua experiência com médicos que lhe extorquiam dinheiro prometendo saúde, numa época em que o diagnóstico de tuberculose equivalia a uma sentença de morte. As pobres nações periféricas estão tuberculosas, como Moliére estava. As troikas, Bruxelas e Berlim, o BCE e o FMI são os médicos vigaristas que enganam doentes reais, que eles infectaram e enfraqueceram, prometendo-lhes a cura com remédios desadequados e empíricos. Empréstimos sobre empréstimos, no caso.
A doença tem sintomas conhecidos. Basta ler títulos de jornais, ao acaso:
– 34 mil portugueses sem bens para pagar dívidas. DN 04 dezembro 2012. A lista pública de execuções bateu o recorde de devedores. O total de dívidas incobráveis disparou para os 488 milhões de euros, à ordem de 67 mil euros por dia só nos últimos 11 meses. A lista pública de execuções já tem mais de 34.700 nomes de devedores que não têm dinheiro para pagar as dívidas nem bens para penhorar.
– As dívidas incobráveis atingem já os 488 milhões de euros, notícia o Diário Económico.
– Injunções – O número de dívidas através do Balcão Nacional de Injunções (BNI) disparou de 185.024, em 2013, para 206.980, em 2014. Os processos que mais contribuíram para este aumento dizem respeito a dívidas de menos de 500 euros. Notícia ao Minuto 09/08/15. Isto representa um aumento de 54%, avança o Jornal de Notícias.
“são cada vez mais as pessoas que pedem ajuda na associação (DECO) com contas de água, luz, gás e telecomunicações para pagar. Muitas delas já em fase de injunção. No entanto, e apesar do reconhecimento da existência da dívida, não têm dinheiro para pagar”.
– 7774 portugueses por dia deixaram de pagar dívidas ao banco. JN 08/05/2013.
Os portugueses individualmente estão de corda na garganta. E quanto ao Estado, está melhor?
– Dívida pública portuguesa é a quarta mais alta entre 43 países da OCDE. 06 Jul 2015, Lusa. De acordo com a OCDE a dívida pública representa mais de 130% em percentagem do PIB.
– Dívida pública real é de quase 200% do PIB. TVI 17 de Março 2015.
– Dívida portuguesa volta ao radar dos analistas. Jornal de Negócios de 22-07-2015. «O indicador que o FMI utilizou como argumento para defender a reestruturação da dívida pública grega deixa Portugal em pior situação no curto prazo. Com elevadas necessidades de financiamento, Lisboa também está na zona de risco do Fundo.»
«Entre 2015 e 2020, o Estado português tem de se financiar nos mercados, por ano, entre 17% e 21% do PIB para pagar dívidas e défices, estima o FMI na sua última análise à sustentabilidade da dívida pública nacional.»
Estamos, depois de 4 anos de intenso tratamento pelos médicos imaginários, mais doentes, isto é, mais pobres e com menor possibilidade de recuperação:
– Portugal tem mais 210 mil pessoas em risco de pobreza ou exclusão desde 2010. Expresso 04.04.2015.
– Cáritas adverte que “um número significativo de pessoas desempregadas” não está abrangido pelas redes de segurança normais. Risco em 2014 subiu para 27,5%. RR 22.04.2015.
– Presidente da Cáritas Internacional critica austeridade que tem “a economia como Deus”.
– Bruxelas: Portugal “não foi capaz de lidar” com aumento da pobreza.
– Bispo do Porto: “É tempo de dizer basta ao sofrimento dos mais pobres”.
– Portugal foi o país europeu em que mais aumentou o risco de pobreza e exclusão social em 2014, logo seguido pela Grécia, segundo o Relatório da Crise da Cáritas Europa 2015, que é apresentado esta quarta-feira em Lisboa.
– O relatório “O aumento da pobreza e das desigualdades – Modelos sociais justos são necessários para a solução” é uma análise aprofundada sobre a forma como a crise está a ser enfrentada nos sete países da União Europeia mais atingidos: Chipre, Grécia, Irlanda, Itália, Roménia e Espanha.
– O documento, que foi divulgado no passado dia 19 de Fevereiro em Itália, que tem a liderança do Conselho Europeu, destaca que Portugal foi o país que teve o maior aumento da taxa de risco de pobreza e exclusão social no último ano, com uma subida de 2,1 pontos percentuais, para 27,5%. A média na União Europeia é 24,5%.
“Outro dado relevante é que Portugal, apesar de toda a austeridade e de todos os sacrifícios pedidos, tem a segunda maior dívida pública em comparação com o PIB (128%) logo a seguir à Grécia (174,9%)”, disse à agência Lusa o presidente da Cáritas Portuguesa.
Ao fim de 4 anos de intenso tratamento, o doente real está moribundo, o Estado está mais endividado e os portugueses estão mais pobres.
Para terminar a história: Moliére morreu de tuberculose, depois de uma última representação do «Doente Imaginário». Era um doente real, tratado por charlatães como os que no Pontal nos prometeram a cura, enquanto agravavam as condições para a doença alastrar.
Artigo publicado pelo Coronel Carlos Matos Gomes n’A Viagem dos Argonautas
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