Os irmãos de Abril (por Anabela Ferreira)

A todos os irmãos de Abril – “nem mais um soldado para as colónias”. A todos os que nasceram além-mar.

A todos os que se cansaram da guerra e fizeram a paz.

Há quarenta e quatro anos o vento cantava as palavras de Zeca Afonso e acordou-nos. Filhos e enteados. Irmãos de língua. Irmãos que se matavam.

O ar pesado de Abril, nublado, chuviscoso, fazia derramar nuvens de emoção contida dos olhos de quem há muito esperava sem esperança um amor perdido.

Quem se tinha encolhido, num vão qualquer da desesperança, acordava para o sol que neste dia preguiçava em se mostrar, mas aquecia o coração dos perdidos.

Sem compreender saí à rua de mão dada com o meu avô. A minha revolução de engatinhar levantava-se de um chão seco.

Abotoei os sentidos na casa de partida da liberdade e fechei os botões da maldita vergonha. Jamais estaria só. Orgulhosamente com todos. Na ágora. Fui levada pelo brilho no olhar do meu avô.

O meu pai tinha partido para fazer a guerra com um dos seus irmãos. Odiava o regime, odiava a guerra. Porque amava os seus irmãos e sabia quanto inútil, estúpida e vazia era a guerra. Não queria nada dos seus irmãos. Queria viver com eles, na fraternidade dos risos trocados.

Por vingança apaixonou-se e casou. Teve filhos de pele tintada de pinturas frescas vindas do cajú maduro, com cabelo limão e olhos amêndoa.

Assim faziam tantos filhos soldados que se encontravam numa guerra com a família. Por vingança, numa palete de cores foram pintando filhos como nos melhores quadros de Pollock.

Uma grande família, diferentes não desiguais. Éramos oito irmãos. Corrijo, somos oito irmãos. Todos da mesma cor. Vermelho sereno no sangue.
Saídos do quadro de Pollock.

As cores unidas da amizade como os irmãos se vêem. Os seus nomes são Brasil, Angola, Moçambique, Timor-Leste, Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São-Tomé e Príncipe. Todos viram os seus heróis cair em combate. Todos tinham pais. Mortos. Assassinados.

O regime de Portugal foi o padrasto. Não o pai biológico. Foi senhorio. Apossou-se, impôs-se e cobrou renda através de um regime duro e violento. Enviando os seus filhos para combater os irmãos. Dezenas de milhar morreram. Mas quanto mais tirano é o pai mais unidade cresce entre os irmãos para rasgarem laços e se tornarem livres.

Um bébé não sabe o que lhe irá acontecer após os nove meses no útero materno. Quando é obrigado a sair do seu meio, estrebucha, chora,grita e por fim liberta-se. Começa um ser novo.
Os irmãos estavam prestes a deixar o útero, a estrebuchar, a ver como os horrores da guerra a todos tirava vida.

Eram guerras perdidas como o são todas as guerras. Apenas trazem benefícios aos que não estão no campo de batalha. O padrasto deixou as suas sementes do mal mas também, sem querer, enterrou as sementes da flor anseio de liberdade. Que frutificou.

Esse dia chegou. Em mil novecentos e setenta e quatro, no dia vinte e cinco de Abril, o dia em que os filhos do pai biológico lhe desobedeceram, retiraram o poder de tiranizar os filhos, finalmente passaram para o lado dos irmãos e os ajudaram a libertar.

Anabela Ferreira

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