Os milandos da injustiça

Este é um choro chorado, fatigado, vindo da muxima. Se não houvesse sinais, marcas, provas factuais, livros, narrativas, processos judiciais, testemunhas vivas, eu aceitava. Mas há.

Não sou racista. Até tenho amigos brancos. E sangue. Não sou racista. Até tenho amigos pretos. E sangue. E tu és muito diferente? Falamos então a mesma linguagem. A da muxima.

Então falo para ti. Espantam-me e assombram-me os que negam o Holocausto (por altura do III Reich o mundo deveria ter gritado “As vidas dos judeus contam”. Não o fez e morreram seis milhões).

Espantam-me e assombram-me os brancos e pretos que negam a Escravatura, os que negam as injustiças cometidas contra os pretos, o racismo encapotado, sistémico e estrutural (hoje ouvi uma preta americana a fazê-lo, como já ouvi outros brasileiros, ou africanos).

Deitam abaixo o trabalho feito pelos pretos em busca de justiça. Deitam abaixo numa só penada as vidas da Parks, da Tubman, da Davis, Morrisson, King, Malcom X, Biko, Tutu, Mandela etc. E de todos os que morreram com a violência do crime. Todos têm nome. Há provas. Não são notícias inventadas. Deitam abaixo o trabalho feito pelos brancos que estiveram ao lado deles. Negar a existência do crime é um outro crime.

Esperarão um dia, colocando-se ao lado do opressor, vir a ter benefícios?

Espantam-me e assombram-me as reginas duartes deste mundo, que deitam abaixo todo o trabalho dos brancos que não silenciam nem pactuam.

Espantam e assombram-me os pretos que no meio deste momento histórico onde brancos e pretos estão próximos, sem distância de segurança, a caminharem juntos, se aproveitam para desmantelar, assaltar, corromper o momento. Cuidado, porém, estas ervas daninhas não são nem nunca serão a árvore.

Espantam-me e assombram-me os pobres que apoiam a bota que lhes pisa o pescoço. O cão que defende o dono e dorme na rua.

Como se não houvesse provas dos crimes. E se as há!

Espantam-me a assombram-me os que apoiam venturas e quejandos que apelam à divisão e ao ódio de uns contra outros, aos populismos. Não percebem a raiz? Querem que venha uma bota ainda mais pesada? Que em vez de nove mate em três minutos?

Há provas de todos os crimes. E a ignorância de todos estes que me espantam e assombram é uma demonstração muito feia.

“Polícia bom é polícia morto”, “preto bom é preto morto”, “branco bom é branco morto”, “cigano bom é cigano morto, e por aí fora, ou a frase original “Índio bom é índio morto” só podem ter inspiração em mentes perversas com uma agenda. Logo devem ser penalizadas (com penas comunitárias junto dos que acusam).

Mas daí a dizer que uns – que estragam o trabalho de muitos – são o todo é de novo estar a cometer um erro grosseiro e hipócrita. Espantam-me e assombra-me.

Espero que a justiça – a causa aqui em causa – seja tão célere a julgar os que estragam, quanto o tem sido para com os crimes cometidos contra as vidas dos pretos às mãos do crime chamado racismo.

Espero que a justiça chegue aos perpetradores – na América, aqui, ou em qualquer lugar – que perpetuam a pobreza, a raiz de todos estes crimes.

A pobreza sistémica, estrutural, culpada da maior espantação que me assombra os dias e as noites. O milongu é combatê-la enquanto existir olhando os crimes em separado.

Enquanto as vidas não contarem todas por igual.

Anabela Ferreira

  • *milando – complicação (changane, língua de Moçambique)
  • *muxima – coração (quimbundu, língua de Angola)
  • *milongu – remédio (quimbundu, língua de Angola)

Um comentário a “Os milandos da injustiça”

  1. […] post Os milandos da injustiça appeared first on Notícias […]

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *