Num outro lugar quando o tempo se esqueceu de ser tempo da gente, vieram buscar-me. Tapei a cara com um pano de pano pente, eu Binta Maria era Antígona, aquela que se opunha, que vivia por amor, artista de um coração que não conhecia limitação, abençoada por Zeus, naquele momento que um raio atravessou a atmosfera tropical, eu Binta Maria fui amaldiçoada por Delfos, na pele azeviche que nunca se faz envelhecida, nos olhos que liam a condenação trágica de um arrogante Creonte.
Binta Maria cansou-se da pele humana que vestia com altivez, onde se lia orgulho e generosidade, onde se escrevia amor nas formas, nas nádegas firmes que lhe despiam a essência, destapadas no espelho redondo e firme da existência, nas ancas reboladas e pernas esguias era toda ela uma composição de mulher à flor da alma. O olhar? Ah esse…era Bach amaldiçoado em notas de jazz sentido em noite de apocalipse, em viagem de Mozart à volta do mundo em poucos segundos de alguém se matar de amor por ele, o longo olhar vazio sem tempo, vivendo apenas por dentro.
Eu Binta Maria deixei de me viver por fora, a existência apenas ocorria em torvelinho dentro da pele, enfrentando as oposições de Saturno, de planetas retrógrados em trígonos mortais,enquanto eu atravessava traçados longitudinais nas cartas geográficas das correntes, por marés de mandingas feitas por um Úrano sádico e soturno que declarava ser a minha vida a partir daquela viagem para longe o salto em quadrante diagonal directamente ao inferno de Dante quando me possuem. Sabia-me feia, indigna, insuficiente como objecto de amor, sujeito de desmerecimento por beleza interior. Porque razão pensava eu, se desejam o meu corpo e me agarram com alvoroço, como a terra com sede quando água absorve, sempre que sou violada pelo dono do meu corpo para reproduzir filhos que seriam também a fronteira etérea do desamor sem espaço, para perdão aos homens sob a forma de filhos bastardos, que seriam pelos pais escravizados…porque me querem? Se me tapam a alma, me obrigam ao silêncio e só lhes sirvo…para nada…
Tão superiores que são, todos os deuses europeus, todos os artistas europeus, nenhum me viu deambulando nas suas constelações nem nas suas notas.
A vida de Binta Maria nada valia, arrancada da vida junto aos seus com violência, a não ser se fazer transportar na corrente sanguínea dos filhos paridos de si, que iriam ser as sementes das mulheres paridas por outras, que iriam contar como as coisas foram, como as estrelas se alinhavaram por dentro dos céus, se consertaram e lhe escreveram o destino. Seria a vingança sua. Haveria na sua voz de deixar escrito a suas filhas, que contariam às suas netas, que como novelos de algodão fiariam aquela que fora a vida de Binta Maria.
Mês da História negra nos EUA país que recebeu, comprou, lucrou e fez negócios de milhões com milhões de africanos arrancados das suas terras, sem a sua anuência para trabalho escravo.
Cumprindo a missão de contar histórias.
Anabela Ferreira
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