A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, instituição supostamente dedicada à actividade da solidariedade social, vem-se revelando cada vez mais um campo de tráfico de influências, de arranjo de “tachos”, de irregularidades e prepotências e mesmo de completas ilegalidades.
E estamos a falar não apenas dos seus responsáveis máximo directos – as suas “Mesas” e os seus “Provedores” –, mas também da respectiva tutela governamental, ou seja, os sucessivos ministros da Segurança Social.
Assim, acabou agora mesmo de se saber, ainda que a muito custo, que o actual Ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva, manteve escondido durante quase 2 anos (mais exactamente durante 20 meses, desde Maio de 2016 até Janeiro de 2018) um relatório dos Serviços da Inspecção-Geral do Ministério do Trabalho e da Segurança Social. Relatório esse que só viu a luz do dia já muito depois de estar em curso um processo crime (no âmbito do qual foram até realizadas buscas domiciliárias e na própria Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em Dezembro de 2016) e que é verdadeiramente demolidor por evidenciar inúmeras ilegalidades e irregularidades praticadas, aliás, sempre com o sentimento da maior das arrogâncias e das impunidades.
Por outro lado, também os próprios relatórios anuais de actividade da referida Inspecção-Geral, relativos aos anos de 2015 e 2016, concluídos, respectivamente, em Abril de 2016 e de 2017, só foram afinal homologados pelo Ministro em 21 de Dezembro passado.
E, dentro da maior opacidade, o Ministério do Trabalho e da Segurança Social ainda agora mantém a prática de não divulgar publicamente (designadamente online) os relatórios das auditorias realizadas pela Inspecção-Geral.
O dito relatório sobre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa nem é particularmente extenso (34 páginas, mais uma série de documentos anexos que ocupam cerca de 250 páginas). Mas só no plano dos contratos encontra-se, afinal, de tudo (e, mesmo assim, tal é o resultante de uma minúscula e aleatória amostra de somente 45 dos mais de 1000 contratos celebrados): contratos por ajuste directo em vez de por concurso público como impunha a lei, aparência de diversas e distintas empresas concorrentes ao mesmo serviço quando afinal são pertença da mesma pessoa, pagamentos adiantados proibidos por lei (designadamente por terem sido efectuados antes da obrigatória publicação no portal), processos de contratação deficientemente organizados e desprovidos de elementos essenciais, e inexistência de instrumentos de qualquer avaliação e controle, possibilitando, por exemplo, que, em particular na área dos serviços de saúde, fossem praticamente sempre as mesmas empresas (controladas por um mesmo núcleo de pessoas, à cabeça das quais está o conhecido elemento do PSD Fernando Catarino) a serem contactadas e contratadas.
Talvez por isso mesmo, os inspectores da Segurança Social tiveram, nesta mesma inspecção, de esperar 5 longos meses pelo fornecimento de uma simples listagem, a dos contratos celebrados pela SCML de 2012 a 2014! E, depois, em vez de facultar, como se impunha, aos mesmos inspectores – os quais se queixam muito destas dificuldades, mas aparentemente também não as terão sabido ou querido ultrapassar com a firmeza que se impunha – o acesso à plataforma de contratação pública electrónica que serviu de suporte aos contratos, a Direcção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa limitou-se a disponibilizar apenas algumas cópias (as que bem entendeu…) dos respectivos documentos.
Se já é bastante grave, e mesmo susceptível de implicar não só responsabilidade civil e financeira como também criminal para os respectivos responsáveis, a começar pelo Provedor de então (Santana Lopes) e pelos restantes membros da mesa (designadamente o então Vice-Provedor e actual Provedor Edmundo Martinho) tudo o que se passou em matéria da contratação de aquisição de bens e serviços, tão ou mais grave ainda é a forma como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem também funcionado a outros níveis.
A nível laboral, é mesmo já um facto público e notório o modo como ela tem servido para arranjar “tachos” e colocações a pessoas cuja principal habilitação é a cor do cartão partidário que ostentam, em discriminação e detrimento, absolutamente escandalosos, de quem lá trabalha dedicada e diligentemente, por vezes há dezenas de anos. São deste modo inúmeras as evoluções fulgurantes de carreira por parte de “jovens turcos”, normalmente militantes ou simpatizantes dos partidos do chamado “bloco central”. Mostrando assim claramente como o PS, o PSD e o CDS concebem estas instituições e os respectivos cargos e tornando evidente a mais forte das raízes de corrupção: a concepção de que, tal como os organismos do Estado, estas organizações e os respectivos lugares são benesses para se distribuir pelos “amigos” quando se está no Poder e assim se pagarem favores e garantirem influências.
De fora desta auditoria ficaram também as múltiplas evidências de como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa teve intervenção numa série de adopções processadas ostensivamente à margem da lei, facilitando-as a amigos, produzindo relatórios inverídicos, separando irmãos e caucionando diversas das barbaridades que estão agora – finalmente! – a vir ao de cima.
E fica (quase) tudo dito quando, para além do supra-citado escândalo dos negócios e dos contratos, se vem a saber que, após as primeiras revelações de adopções ilegais e do modo como os relatórios da SCML foram elaborados, bem como das diligências por ela efectuadas, a Provedora de então, a ex-deputada do PS Maria do Carmo Romão (e que avocou para si algumas das intervenções processuais) se arrogou responder à jornalista que a interpelou sobre essa questão que “se estava a marimbar para ela” (sic).
Como é escandalosamente elucidativa a resposta do actual Provedor, o também socialista Edmundo Martinho, à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as adopções ilegais, invocando arrogantemente que entendia que os inquéritos e inspecções deveriam ser efectuados pelos próprios serviços internos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e que não se teriam verificado quaisquer irregularidades ou omissão de procedimentos nesses mesmos processos de adopção!
Isto, note-se bem, sem que tenham sido ouvidas quer as mães das crianças que lhes foram retiradas e entregues para adopção, quer as técnicas que intervieram nos respectivos processos (e que já afirmaram, pelo menos num dos casos, não reconhecerem relatórios como seus), quer a responsável máxima, à época, do serviço de adopções, quer muito menos a Provedora na altura dos factos que possibilitou a separação de irmãos e subscreveu declarações de confirmação ou confiança a candidatos a adoptantes.
Ou seja, esteve e está tudo bem e rigorosamente nada é feito para corrigir e evitar os erros do passado.
Tudo isto se passa de forma vergonhosa e ao pior e mais reprovável estilo do “tapo eu agora os teus buracos para que amanhã possas tu tapar os meus”. E representa a demonstração evidente daquilo a que sempre conduz o método de serem os suspeitos de práticas abusivas, irregulares e ilegais a investigarem-se a si próprios.
Ficam então completamente a claro quais as verdadeiras razões por que relatórios de auditorias e inspecções levam quase dois anos a serem homologados e mesmo assim são depois propositadamente mantidos na penumbra e também os reais motivos por que se pretende à viva força evitar que entidades realmente independentes possam passar a pente fino a imensa e tentacular rede de irregularidades e compadrios que, apesar dos silêncios cúmplices, vai ficando cada vez mais à mostra.
António Garcia Pereira
A rede tentacular por estes partidos políticos é tão criminosa que nenhuma pena de morte seria grata para se fazer justiça.
Rosário de amarguras…