Os silvos das balas nas copas das árvores aterrorizavam tanto mais velhos quanto crianças. O medo e a insegurança instalavam-se no rosto e no coração de quem vivia em Luanda. Comprimiam-se nas bichas para o pão com papelinhos de racionamento. A vida tornava-se impossível.
“Pega na tua família e vai-te embora. Já não há lugar para ti nesta terra. És o colonizador”. Foram mais ou menos estas as palavras que convenceram o meu pai – ferrenho defensor da independência – a mandar a família no avião da ponte aérea que tinha começado havia algum tempo. Ele sairia forçado, no último avião.
Pela última vez olhou a sua casa, os móveis modernos, o cheiro doce da brisa Luandense que fazia ondular os cortinados. Fechou lentamente a porta e na fechadura deixou a chave. Seguiu o caminho do aeroporto com a estrada apinhada de carros.
Estacionou o seu carro que tanta estrada vermelha tinha comido e de novo deixou a chave na fechadura. Pegou na sacola com uma muda de roupa. Os seus pertences. A vida simples e feliz que tinha conhecido ficava para sempre estacionada naquele lugar. Embarcou no cockpit, no único lugar disponível, cortesia do Comandante.
No outro lado do Atlântico abria-se o caminho do vazio. Era esperado pelo desconhecido. Teria de recomeçar de um ponto onde havia menos que nada. No entanto fê-lo.
Como outros seus antepassados tiveram de dar provas de resistência e adaptação.
Mas nunca se refez.
Corria o ano de mil novecentos e setenta e quatro. Verão europeu. Até ao final do ano de mil novecentos e setenta e cinco decorreria a famosa ponte aérea, misto de boa vontade com desorganização, com uma capacidade imensa de solidariedade. À medida que aconteciam as declarações de Independência dos países africanos de Língua Oficial Portuguesa.
Os “retornados” desembarcavam às centenas e às centenas permaneciam no aeroporto e nos portos à espera de familiares ou de qualquer tipo de caridade. Dormiam como podiam. Sentados, deitados no chão, encostados uns aos outros. Ou não dormiam sequer. O aeroporto de Lisboa e o porto eram o matadouro dos seres que tinham morrido ao embarcar em Luanda e em Lourenço Marques.
Amontoavam-se agarrados aos poucos haveres salvos, à pouca roupa leve que vestiam, e para ali ficaram meses, a aguardar um lugar para viver, à mercê de todas as indecisões, calculismos, desorganizações e decisões, algumas arbitrárias e trágicas. Viviam como podiam. A calamidade instalava-se como num ataque de uma bactéria com a missão de destruir.
O Inverno seria o profundo descontentamento na pele – onde insuportáveis frieiras fariam a sua morada nos pés e nas mãos – porque na alma tinham rapidamente criado raízes, quando lançaram o último olhar à terra vermelha, na última inspiração de ar quente ao subir as escadas do transporte que os trazia a uma metrópole que desconheciam.
Centenas nasceram lá, no continente amado. No coração, na pele e na alma entranhado, sem nunca dele terem saído. Anos antes, centenas fugiam da Pátria fascista, pobre e sem condições de vida digna.
Naquelas terras do continente africano encontraram uma vida fácil e doce: nas cores, nos cheiros, nos sabores, na alegria de viver, na fartura da terra, no convívio fácil.
O sol que aquece todo o ano convida a despir. A roupa, os preconceitos e o olhar malicioso sob a pele despida. O sol que naquelas paragens aquece todo o ano é o anfitrião da rua, para nela se fazer vida, por entre portas e partilha de tachos em casa de uns e de outros.
A facilidade em ter empregados que cuidassem dos afazeres domésticos e das crianças era um incentivo à vida sem o controlo do tempo, que estava disponível para o lazer, para as festas, para as “jantaradas”, para as “festanças”, para os longos serões de conversas entre amigos, os fins-de-semana nas praias magníficas ou nos passeios por estradas com centenas de quilómetros, onde a vista se perdia, por entre paisagens que se abriam como oferta dos deuses.
O horizonte situava-se no infinito da terra. Não existem cenários comparáveis com os africanos. E, o tamanho da qualidade de vida era semelhante à grandeza do continente.
Essa era a vida que quem “retornava” – quanta injustiça chamar retornados a quem nunca tinha vivido na metrópole colonial e apenas fugia de ser morto – e que sabiam não a querer perder. Mas as circunstâncias falavam um dialecto desconhecido.
“Preparem os sacos e a máquina fotográfica” dizia o meu pai no final do almoço de carapaus grelhados acompanhado de feijão com óleo de palma, no Lobito. “Vamos passar o fim de semana a Sá da Bandeira com os tios.” Saltávamos de alegria. Lá íamos nós comungando a felicidade mais terna e saudável que se pode desejar. Nós as crianças vivíamos soltas nos quintais e nas ruas. As árvores eram as nossas casas. As frutas apanhadas com as mãos enquanto jogávamos eram a nossa estrutura.
Eu não descolava os olhos do vidro naquelas centenas de quilómetros. Tudo era tão diferente da terra onde vivia, Portugal. Tudo era maravilhoso. A liberdade que sentia, a felicidade vinda dos cheiros, dos sabores e das cores era a artrose que se instalava nos meus ossos, para nunca mais me abandonar. Envelheci muitos anos quando deixei aquela terra saudável. Queria absorver tudo e levar comigo o maior número possível de memórias, das praias ao deserto, das cidades, ao mato. Guardei tudo para um dia as escrever.
Se havia racismo não me lembro, nunca senti. Havia. Soube mais tarde. Também o senti mas não lá. Em Portugal.
Talvez por ser de uma família africana, mistura entre os privilegiados do regime (cabo-verdianos) colocados em lugares de destaque da administração pública, portugueses e africanos nascidos e criados em África, nunca vi, nunca senti. Via toda a família conviver nas rebitas com pretos, brancos, mulatos. Sabia que não havia qualquer animosidade contra nós ou de nós para com os pretos.
O meu pai- branco e português – não queria nunca mais voltar à sua terra natal e que se fosse preciso daria a vida por ver África liberta do domínio colonial. Como tantos brancos já lá nascidos, ficaram a lutar pela independência com um sonho. Que se veio a desfazer.
Impossível não gostar de viver assim tão leve quanto a brisa africana e lutar para que assim continuasse. “Esta terra é imensa, abundante, chega para todos, porque não ficar e lutar por ela?”. Ouvi. Mas outros ouvidos teimavam em não partilhar o sonho. Gente pequena que não é gente, digo hoje.
Gente a quem o cheiro do poder cancerou os sentidos. De ambos os lados dos políticos que negociaram a descolonização.
O IARN distribuía milhares de pessoas que nos cais e no aeroporto se amontoavam. Quem tinha parentes em Portugal, ao sair do avião tomava o rumo das suas novas casas e família. Alguns, completos desconhecidos.
Eu tive sorte por ter vivido numa ponte aérea permanente a vida inteira. A minha família também teve sorte. Tinha gente bondosa da família à sua espera, pronta a abrir as portas, o coração e a carteira. Dispostos a ajudar na cura de uma ferida quase mortal. A força da solidariedade e da partilha foi o mote familiar que fez com que todos sobrevivessem. Conheci outras famílias assim. São esses valores de que são feitos os melhores seres humanos que conheço. Outros caíram em pesadelos de acampamentos em hotéis que pareciam ter recebido charters simultâneos ficando em overbooking durante anos.
Na metrópole, o frio, os preconceitos, a mentalidade tacanha e fechada dos portugueses, que sem entenderem o que se passava – tal como os recém refugiados – que além do que já sofriam, experimentavam os ataques mais vis dos seus conterrâneos. “Não era lá que estavam bem? Voltem para lá!”.
Por inveja, ciúme e ignorância da vida africana comparada com a vida em Portugal o estigma contra os “retornados” entrava para marcar, colocando sal nas veias abertas e em sangue.
“Vens aqui roubar-nos o pouco que temos”, “lá andavas despida sua puta, aqui quem pensas que és? Nada! Só uma puta”, “tinhas, tinhas, mas isso era lá, na terra dos pretos, aqui não tens nada”.
Muitos diziam que “tinham”, esses eram verdadeiros “tinhosos” que na verdade nada tinham. Outros, poucos, tinham mesmo e fugiram sem nada. Verdadeiramente humildes. Porque todos sem excepção tinham uma vida digna.
Em contrapartida em Portugal nem todos se podiam gabar de a ter. Os olhares de nojo, desprezo e raiva contra os pretensos “retornados” chegavam a ser intoleráveis que deixavam dores profundas.
Só os pobres de espírito que não entendem as partidas e armadilhas da vida podem desdenhar dos ciclos que ela oferece. A todos. Por isso, de ambos os lados, tantas camadas de mágoas frescas foram sendo construídas por cima das crostas mais antigas. De quem sobreviveu as duras penas do fascismo em Portugal, dos que dele fugiram, aos que agora fugiam. Inocentes contra inocentes em fuga. Da miséria, da pobreza, da humilhação, da guerra.
Nem todos os que fugiram ou lá ficaram estavam inocentes. Muitos denunciavam os vizinhos da porta ao lado para verem as suas vidas poupadas. Os denunciados recebiam a ordem 24/20. Tinham 24 horas e 20 kilos para sair do país. As guerras são a grande tragédia do ser humano trazendo ao de cima o pior da natureza.
Pelos quatro pontos cardeais de Portugal foram-se distribuindo milhares de seres repletos de memórias. E um vazio pungente sobre o futuro. Professores, advogados, arquitectos, engenheiros, quadros administrativos, enfermeiros, médicos, jornalistas, soldadores, electricistas, bancários e um largo etc. Portugal enchia-se de gente formada, de pensamento livre, criativo, original, trabalhador, empenhado.
Quarenta e dois anos depois, milhares construíram nova vida impulsionando a economia do país, desenvolvendo, criando novos mundos, como antes o tinham feito por terras de África. Deram vida às vidas sem futuro, de quando em Lisboa desembarcaram.
Recomeçaram e hoje, os filhos recomeçaram de novo, depois do Portugal futuro que construíram lhes ter de novo virado as costas.
À medida que a fermentação acontece, a memória dramática vai-se abrindo para ser escrita.
Tantas histórias quanto o número de refugiados que saíram das ex-colónias numa descolonização brutal, violenta, dramática, trágica para um país -metrópole – desorganizado, e em busca de si próprio – onde a luta pelo poder também nela se desenrolava, como nos países que entregava. Ruía um Império que ninguém queria nos moldes imperiais.
De ambos os lados, em nome de poder e riquezas, quiseram os homens que o desfizeram, desfazer também os sonhos de vida de milhões de seres. (Des) fizeram-no também os homens que deveriam ter preservado a vida de outros tantos milhões.
Se se recompuseram os inocentes que nada tinham e fugiram? Sim, na sua maioria. Foram a força motriz do Portugal pobre e pouco desenvolvido na época da sua revolução.
No entanto, muitos milhares nunca da ferida se refizeram.
Anabela Ferreira
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