Quando não havia internet e a televisão não tinha o impacto e a difusão que tem hoje, uma escritora espanhola, Corin Tellado, vendia milhares de livros e fotonovelas, que alimentavam o imaginário e mitigavam a tristeza da vida de milhares de espíritos, mormente dos espíritos femininos. Eram histórias de amor e desamor, bruxas más e fadas boas que acabavam sempre bem: casaram, tiveram muitos meninos e foram felizes para sempre.
Ora, depois de ver a prestação de Passos Coelho, na entrevista à TVI, lembrei-me de imediato dessa literatura de consabidos efeitos lenitivos.
Passos, é melhor que Corin Tellado. É um grande romancista, de literatura cor de rosa, depois de hoje lhe terem sido gabadas pelos amigos as suas qualidades de desconhecido xadrezista e de putativo cantor de ópera. Na literatura cor de rosa os primeiros capítulos são sempre de intriga, de maldade, de pérfidas manobras contra os bons, de quem temos pena, e que achamos que estão a ser injustiçados, o que gera uma grande empatia do leitor com os personagens perseguidos. Mas no epílogo, a justiça triunfa, o mal é extirpado, e os perseguidos de ontem são premiados com o futuro ridente e sonhador a que tem direito. Tudo acaba bem.
Em Portugal, tivemos quatro anos de nuvens negras, desemprego, emigração, cortes nos salários, cortes nas pensões, perda de qualidade na educação, na justiça, na saúde, aumento da pobreza, venda do património nacional ao desbarato a chineses e afins. Perante este cenário, e depois de ter sido repetidamente apelidado de mentiroso, Passos hoje mudou ligeiramente a agulha. Já não diz que as perfídias não existiram. Que sim, que existiram, mas que não podia fazer outra coisa porque o seu programa de governo sempre foi cumprir escrupulosamente o programa da troika, que só não pôde levar ainda mais avante devido aos limites que o Tribunal Constitucional lhe impôs, como ele próprio hoje reconheceu.
Mas, como nas novelas de Tellado, o epílogo é sorridente glamoroso. Passos diz que agora é que é. O que aí vem é tudo bom. Já não haverá mais nuvens, e tudo terminará em bem, com ele ao leme. O país vai crescer, o emprego aumenta, os cortes evaporam-se. Em suma, um final promissor e feliz.
Tirando a demagogia, e a falta de vergonha com que foi adoçando as evidentes desgraças com que o País foi brindado durante quatro anos, Passos até foi construindo uma narrativa que os crédulos poderão comprar.
O que ele não disse, porque não pode dizer e descrever é a forma de conseguir chegar ao prometido final feliz, depois de ter enviado para Bruxelas o Pacto de Estabilidade e Crescimento que prevê mais cortes, mais austeridade, mais reduções na despesa do Estado de forma a atingir esse alfa e ómega das finanças públicas que Bruxelas impõe e que é o deficit, abaixo dos 3%, passando a 0% até 2019. É por isso que teima em não querer falar do futuro e foge a todo o custo de falar do programa eleitoral do PSD, que ainda não foi apresentado, mas que já sabemos qual é: continuar o programa da troika com mais intensidade. Os mesmos objetivos, os mesmos beneficiados, os mesmos a sofrer.
A Europa deu a Passos um ano de folga na austeridade e nos cortes para ver se ele consegue enganar os portugueses e ser reeleito para continuar o saque e a destruição do Estado Social, e diria mais, do próprio Estado de Direito.
Passos continua a mentir cada vez com mais descaramento e requinte.
Já não faz promessas faraónicas de que tudo vai ser substancialmente melhor. Mas passou a mentir de outra maneira: oculta e não diz que vai ser tudo ainda substancialmente pior e que 2015, sendo ano eleitoral, é como se fosse um intervalo num jogo de futebol. É que 2016 já está à porta. A austeridade segue dentro de momentos.(*) Estátua de Sal é pseudónimo dum professor universitário devidamente reconhecido pelo Noticias Online
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