1 – Ao cabo de 50 anos de percurso, o nosso regime democrático carece de intervenções de caráter estrutural que lhe possam devolver a plena capacidade para responder aos múltiplos desafios da atualidade. Nesse âmbito, a reforma da Justiça aparece como prioritária, por ser o setor do poder público que mais problemas tem vindo a evidenciar.
Alem de ter de respeitar a Constituição, a ação da Justiça tem de ser entendida pelo Povo e, quando assim não é, é a própria Justiça que falha. Essa incompreensão tem vindo a acentuar-se ao longo dos últimos anos e tem minado a tão necessária confiança no sistema judicial, como revelam os estudos de opinião que têm sido realizados.
2 – Se a morosidade, designadamente na jurisdição administrativa e tributária e na investigação criminal, é o fenómeno mais persistente – e inadmissível numa sociedade democrática, uma vez que na prática acaba por pôr em causa a própria realização da justiça -, existem muitas outras falhas que em nada são compatíveis com o Estado de Direito Democrático, nem com a eficiente gestão dos avultados recursos públicos a ela afetos (que comparam bem com outros países europeus), nem com o respeito pelos direitos e interesses dos destinatários do sistema de justiça, que não é menos importante para eles do que o sistema de ensino ou o sistema de saúde para os respetivos utentes.
3 – Apesar de constitucionalmente protegido, as recorrentes quebras do segredo de justiça, com a participação ativa de grande parte da comunicação social, dão azo a julgamentos populares, boicotam a investigação e atropelam de forma grosseira os mais elementares direitos de muitos cidadãos, penalizando-os cruelmente para o resto das suas vidas, mesmo quando acabam judicialmente inocentados.
Um regime que aceita essa forma de proceder perde uma parte significativa da sua autoridade moral perante aqueles de quem se quer distinguir em termos éticos e de respeito pelos Direitos Humanos. A violação das regras constitucionais da investigação penal é realmente um problema de regime.
4 – A juntar a esta perturbante realidade, tem-se também assistido na investigação penal a graves abusos na utilização de medidas fortemente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, designadamente com a proliferação de escutas telefónicas prolongadas, de buscas domiciliárias injustificadas e, mesmo, de detenções preventivas precipitadas e de duvidosa legalidade.
As montagens do já habitual espetáculo mediático, nas intervenções do Ministério Público contra agentes políticos, a par da colocação cirúrgica de notícias sobre investigações em curso, têm confundido intencionalmente a árvore com a floresta, formatando a opinião pública para a ideia de que todos os titulares de cargos públicos são iguais e que todos são corruptos até prova em contrário. Esta forma perversa de atuar, com contornos mais políticos do que judiciários, tem produzido um óbvio desgaste no regime e, por consequência, reforça o descontentamento popular e abre as portas ao populismo e à demagogia, tanto mais que muitos processos se eternizam sem conclusão ou acabam sem acusação ou sem condenação judicial.
Este procedimento torna-se ainda mais crítico, quando os resultados práticos do combate à corrupção em Portugal se reduzem normalmente a um preocupante insucesso e a uma manifesta incapacidade de combater tão grave fenómeno, por quem tem a especial responsabilidade de o fazer.
5 – A prolongada passividade perante esta iníqua realidade permitiu que tivéssemos atingido o penoso limite de ver a ação do Ministério Público gerar a queda de duas maiorias parlamentares resultantes de eleições recentes, apesar de, em ambos os casos, logo na sua primeira intervenção, os Tribunais não terem dado provimento e terem mesmo contrariado a narrativa do acusador. A agravar a situação, o País continuou a assistir ao inconcebível, quando, tendo decorrido longos cinco meses entre o Primeiro Ministro se ter demitido, na sequência do comunicado da PGR, e a sua cessação de funções, o Ministério Público nem sequer se dignou informá-lo sobre o objeto do inquérito nem o convocou para qualquer diligência processual.
Além de consubstanciarem uma indevida interferência no poder político, estes episódios também não são conformes às exigências do Estado de Direito Democrático.
6 – Apesar da gravidade do sucedido e da crítica pública generalizada, todas estas falhas, com fortes repercussões na nossa vida democrática e na confiança no sistema de justiça, não tiveram qualquer consequência interna na condução destas investigações e dos atos processuais que delas decorrem, por força de um funcionamento e de uma cultura de perfil corporativo, que manifestamente predomina no Ministério Público.
Ao contrário de todos os demais poderes constitucionais, a Justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos, apesar de ser constitucionalmente administrada em nome do Povo.
O sentimento de impunidade que a ineficácia do sistema, por si só, já transmite para a sociedade, é, assim, agravado pelo défice dos mecanismos de avaliação interna existentes e pela falta de mecanismos de escrutínio externo descomprometido com o próprio aparelho
judiciário. Ora, numa democracia constitucional, como a nossa, nenhum titular de cargo público é irresponsável pelas suas decisões e pelas suas falhas perante a coletividade.
7 – O poder que, através de sufrágio livre e democrático, os cidadãos delegam nos seus
representantes diretos para, em seu nome, definirem e executarem as diversas políticas
setoriais, não encontra, em Portugal, expressão efetiva no caso da política criminal. A definição desta cabe constitucionalmente ao poder político, mas na sua execução magistrados do Ministério Público, sem qualquer mandato constitucional, têm, na prática, um poder sem controlo, quer externa, quer internamente, desde logo, pela assumida desresponsabilização da Procuradora-Geral da República pelas investigações.
Apesar desta perigosa realidade, nem qualquer órgão de soberania, nem qualquer partido
político relevante têm mostrado a necessária vontade e coragem políticas para encetar uma
verdadeira reforma da Justiça. Aliás, nesta matéria, tem prevalecido a busca do pequeno
ganho partidário imediato em detrimento do interesse público, variando as posições em
função da filiação partidária dos atingidos, como revelam as posições partidárias contraditórias assumidas nos referidos casos que afetaram os governos da República e da Região Autónoma da Madeira.
8 – Perante esta preocupante inércia, e quando a democracia portuguesa acaba de celebrar os seus 50 anos, compete à sociedade portuguesa um sobressalto cívico que leve os responsáveis políticos a assumirem as suas responsabilidades e a elegerem a reforma da Justiça como inequívoca prioridade na defesa do Estado de Direito Democrático.
Por isso, os signatários instam o Presidente da República, a Assembleia da República e o
Governo, bem como todos os partidos políticos nacionais a tomarem as iniciativas necessárias para a concretização de uma reforma no setor da Justiça, que, respeitando integralmente a independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e as garantias de defesa judicial, seja inequivocamente direcionada para a resolução dos estrangulamentos e das disfunções que desde há muito minam a sua eficácia e a sua legitimação pública.
9 – Concretamente, é necessária uma reforma que, embora não desconsiderando as legítimas aspirações dos agentes de Justiça, não seja desenhada à medida dos interesses corporativos dos diversos operadores do sistema, mas que tenha o cidadão e a defesa do Estado de Direito Democrático como eixo central das suas preocupações, não ignorando prioridades evidentes, tais como:
Garantir uma efetiva separação entre o poder político e a justiça;
Combater a opacidade, reforçando a transparência no funcionamento das instituições
da justiça;
Respeitar o poder da coletividade, através dos seus legítimos representantes, de
definição da política criminal e de controlo da sua execução, nos termos constitucionais;
Reconduzir o Ministério Público ao modelo constitucional do seu funcionamento
hierárquico, tendo como vértice o/a Procurador/a-Geral da República, responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho profissional das equipas;
Reforçar os meios de avaliação efetiva e independente no seio do sistema judiciário e
implementar mecanismos de escrutínio democrático externo, designadamente através
de relatórios periódicos a apresentar à Assembleia da República pelos órgãos de
governo institucional das diferentes magistraturas e sua apreciação nas comissões
parlamentares competentes;
Instituir e fazer aplicar exigências de ponderação, rigor, proporcionalidade e concreta
fundamentação, quer na abertura da investigação penal, quer no uso dos meios de
investigação especialmente intrusivos como as escutas e as buscas domiciliárias, bem
como na sua revisão periódica, fazendo prevalecer desde o início o princípio constitucional da presunção de inocência;
Fazer cumprir efetivamente o segredo de justiça, constitucionalmente protegido,
aplicando a lei penal e as normas disciplinares contra a sua violação;
Reduzir drasticamente a morosidade dos processos judiciais, cumprindo o requisito da
decisão “em prazo razoável”, nos termos da Constituição e da Convenção Europeia dos
Direitos Humanos;
Melhorar a efetivação do direito de acesso dos cidadãos à justiça.
10 – Corretamente entendida, a máxima “à política o que é da política e à justiça o que é da
justiça” proíbe a interferência de uma esfera na outra, mas não subtrai ao poder político
democrático a sua responsabilidade na definição e execução da política de justiça. Pelo
contrário, exige-se uma atitude pró-ativa a quem, em última instância, cabe sempre a
responsabilidade pelo regular funcionamento das instituições.
A melhor e mais nobre comemoração que podemos assumir nos 50 anos da democracia
portuguesa é reconhecer de forma digna e leal o que a está a fragilizar e, honrando o nome
dos que por ela lutaram, ter a coragem e a vontade de mudar.
1 de Maio de 2024
Os 50 signatários do Manifesto
Agostinho Abade
Alberto Costa
Álvaro Beleza
André Coelho Lima
António Barbas Homem
António Barreto
António Correia de Campos
António Monteiro
António Vitorino
Augusto Santos Silva
Carla Castro
Daniel Oliveira
Daniel Proença de Carvalho
David Justino
Diogo Feio
Eduardo Ferro Rodrigues
Fernando Melo Gomes
Fernando Negrão
Francisco Porto Fernandes
Francisco Rodrigues dos Santos
Germano Marques da Silva
Isabel Soares
João Bosco Mota Amaral
João Caupers
Jorge Marrão
José António Pinto Ribeiro
José Francisco de Faria Costa
José Luís Pinto Ramalho
José Mário Ferreira de Almeida
José Pacheco Pereira
José Vieira da Silva
Karin Wall
Leonor Beleza
Lucinda Dâmaso
Luisa Meireles
Manuel Sobrinho Simões
Maria de Lurdes Rodrigues
Maria Elisa Domingues
Maria João Antunes
Maria Manuel Leitão Marques
Miguel Sousa Tavares
Mónica Quintela
Paulo Mota Pinto
Renato Daniel
Rui Rio
Sónia Fertuzinhos
Teresa Pizarro Beleza
Teresa de Sousa
Vital Moreira
Vitor Constâncio
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