No decurso do mês de Outubro, ao mesmo tempo que a TAP anunciava lucros de 22,9 milhões de euros no 1.º semestre do ano, no Juízo do Trabalho de Lisboa era proferida a sentença judicial que declarou a completa ilicitude do despedimento colectivo consumado pela Companhia há dois anos atrás. Por seu turno, o Novo Banco, que apresentou no mesmo período um lucro de “apenas” 373,2 milhões de euros (mais 39,9% que em igual período de 2022!), em Março, viu ser declarado, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, “temerário e injustificado” e, logo, ilícito, o despedimento colectivo que impusera em 2016 (tal como a TAP, em 2021) aos trabalhadores que não tinham aceite as propostas patronais, inegociáveis, de rescisão por mútuo acordo.
Poderia assim parecer que “a justiça funcionou”, pois as empresas autoras dos despedimentos ilegais tinham sido condenadas e a ilegalidade – cometida, aliás, e em ambos os casos, com a maior das arrogâncias – não tinha compensado. Porém, a verdade nua e crua é exactamente o oposto, permitindo que quem dessa forma destruiu carreiras profissionais de décadas e vidas pessoais e familiares se fique a rir, porquanto o crime cometido – o de, sem fundamento legal, privar do seu meio de subsistência, e de realização profissional, alguém que deu os melhores anos da sua vida em prol da organização que agora o atira para um canto – compensou, e de que maneira!
É que, ao fim de todos estes anos[1], restam cerca de apenas duas dezenas dos 1900 (no caso da TAP) e 1000 (no caso do Banco) que foram mandados para o desemprego, e cerca de uma centena dos que ousaram inicialmente ir para Tribunal. Isto é assim, antes de mais, porque existe a obrigação legal da restituição à entidade patronal do valor da compensação de antiguidade (a que o trabalhador tem sempre direito!), como condição sine qua non para que ele possa impugnar judicialmente o despedimento[2]. Quer dizer, o trabalhador abrangido por um despimento colectivo que considere ilegal só pode ir ao Tribunal do Trabalho impugná-lo se tiver devolvido de imediato ao patrão o referido valor da indemnização de antiguidade (a que, porém, ele tem sempre direito, mesmo que perca a acção). O que significa, desde logo, que a esmagadora maioria dos trabalhadores lançados no desemprego, privados do seu salário e à espera, por vezes durante demasiado tempo, do sempre magro subsídio de desemprego, não pode, para que ele e a sua família consigam sobreviver, dar-se ao luxo de não receber ou de devolver o referido valor da indemnização de antiguidade. E nessa situação, a mais evidente e grosseira ilegalidade do despedimento compensa e os seus autores e executores esfregam as mãos de contentes.
Depois, com a sempre demasiado longa duração deste tipo de processos, não obstante a lei declarar a sua natureza urgente[3], mesmo os subsídios de desemprego daqueles que a ele tiveram direito vão chegando a fim. E assim, mesmo os trabalhadores que conseguiram ter meios para devolver o valor da indemnização e intentar a acção de impugnação de despedimento vão ficando numa situação cada vez mais dramática e mais vulnerável: sem salário, sem subsídio e sem conseguirem, sobretudo se no escalão etário dos 40/50 anos, reingressar no mercado de trabalho, mas estando, também, demasiado longe da idade da reforma. Vulnerabilidade aquela de que, despudoradamente, logo se aproveita quem os despediu ilegalmente, aparecendo então com propostas de acordo irrisórias, mas que são sempre apresentadas como “o pássaro na mão” que mais vale aproveitar já do que ficar à espera dos “dois a voar”, e que são, ou melhor, têm de ser, face às circunstâncias, aceites por quem precisa de comer.
E é assim que, quase sempre (tal como também sucede com a TAP e o Novo Banco), das centenas de trabalhadores que iniciaram o processo judicial, este chega ao fim com apenas uma pequeníssima minoria, pois que, entretanto, todos os outros se viram forçados a pôr termo à sua demanda por meio de um dos tais acordos. Quanto aos autênticos “heróis” que consigam suportar a peleja judicial até ao seu final, a reintegração numa organização que se comportou desta forma já não é, na grande maioria das vezes, uma verdadeira opção, até pela muito frequente e também muito impune “cultura empresarial” de tratar mal o “resistente” ou o troublemaker.
Por outro lado, os valores monetários recebidos não compensam, minimamente que seja, todos os danos, quer materiais, quer sobretudo morais, sofridos por aquele que foi ilegalmente despedido. Por um lado, porque do valor que lhe é formalmente devido das remunerações que ele teria normalmente auferido se não tivesse sido ilegalmente despedido, são descontados não só todos os valores entretanto recebidos a título de subsídios da Segurança Social (de desemprego ou de doença) como – pasme-se! – também os rendimentos que o trabalhador haja auferido de algum novo emprego que, por felicidade e por mais precário que seja, ele tenha, entretanto, conseguido arranjar[4].
Por outro lado, se o trabalhador despedido optar, em vez de ser reintegrado, por receber a indemnização de antiguidade, esta é calculada a partir (apenas) de entre 0,5 e 1,5 mês de retribuição base e diuturnidades[5], e, pior, nos nossos Tribunais radicou-se em larga escala o entendimento – erróneo, mas dominante – de considerar retribuição-base somente o que é pelo patrão denominado como tal (designadamente no recibo de vencimento), e também de, entre meio mês e mês e meio, “apontar ao centro” e estabelecer, no máximo, um mês por cada ano de antiguidade.
A tudo isto acresce que, não obstante a lei estabelecer o direito do trabalhador ilegalmente despedido a ser indemnizado de todos os danos, não apenas os materiais, mas igualmente os morais[6], a nossa Justiça Laboral tende de igual modo a esquecer esse direito, ou então a inutilizá-lo sob o espantoso “argumento” de que qualquer rompimento de contrato causa sempre algum mal-estar, mas que este não é suficientemente grave para merecer a tutela do Direito!? E, mais, a nossa doutrina e jurisprudência, designadamente as laborais, recusam-se também e obstinadamente a reconhecer, de forma efectiva, às indemnizações uma função também punitiva (os chamados “punitive damages” da Justiça anglo-saxónica), ficando-se apenas pelos valores das remunerações intercalares e da indemnização de antiguidade.
Com tudo isto, o valor final dos montantes devidos aos trabalhadores por despedimentos ilícitos – como os da TAP e os do Novo Banco – é ridiculamente baixo, tornando afinal grotescamente compensador a prática daqueles. Torna-se, pois, quase “natural” que às empresas que sempre invocam dificuldades financeiras para pretensamente fundamentarem despedimentos colectivos, não faltem, porém, os meios logísticos (grandes Consultoras e grandes Sociedades de Advogados) e financeiros (para pagar os honorários daquelas, bem como os doutos “pareceres” sempre favoráveis a quem tem dinheiro para os pagar e ainda todas as taxas de Justiça necessárias para deduzir em Tribunal toda a sorte de requerimentos, incidentes, reclamações e recursos) para dessa forma habilidosa eternizar, de modo aparentemente legal, a duração dos processos, tornando assim terrivelmente difícil e custoso o constitucional direito dos trabalhadores de acederem à Justiça[7].
É precisamente dessa forma, prolongando e tornando mais oneroso e difícil o processo judicial, e bem sabendo que as consequências finais, mesmo em caso de derrota, são demasiado leves, fáceis de suportar e não contêm qualquer efeito dissuasor, que a táctica e a estratégia dos prevaricadores passam sempre pela aposta no prolongamento e na dificultação do processo judicial, sem que a nossa Justiça, e designadamente a Laboral, queira compreender que esses são precisamente a natureza e os efeitos do lawfare ou do “bullying judiciário” e queira verdadeiramente combater esse uso reprovável dos meios processuais pelos grandes litigantes, como a TAP e o Novo Banco.
Mas todo este lastimável estado de coisas – que bem evidencia, afinal, o carácter de classe não só das leis, como da Justiça do Trabalho, e torna claro que as lutas meramente judicias (tão do agrado de certas organizações sindicais) só por si conduzem os trabalhadores a becos sem saída – tem ainda uma outra consequência verdadeiramente demolidora, mas de que quase ninguém fala: é precisamente por tudo isto que compensa e é eficaz a chantagem sistematicamente utilizada (como o foi, uma vez mais, no Novo banco e na TAP) com a prévia ameaça do despedimento.
Ou seja, e em suma, é precisamente porque os trabalhadores têm noção daquilo que de difícil e oneroso os espera – e da real impunidade com que as entidades patronais podem a tal respeito contar – num processo judicial de impugnação dum despedimento colectivo, que surte efeito e é legalmente compensadora, para quem quer despedir em massa, a “técnica” de, em primeiro lugar, lançar a ideia ou o espectro do referido despedimento colectivo e dar “listas” dos trabalhadores que supostamente estão previstos integrá-lo, e, em segundo lugar, chamá-los a reuniões individuais onde, sozinhos e em situação de grave vulnerabilidade, acabam, compreensivelmente, por ceder e assinar o que lhe põem à frente quando confrontados com a ameaça: “ou assinas esta rescisão de mútuo acordo, e sempre recebes um pouco mais, ou vais para o despedimento colectivo e recebes menos”.
No caso da TAP, esta situação de total incivilidade, indignidade, arrogância e impunidade ultrapassou todos os limites. Trabalhadores com várias décadas de dedicado serviço à Companhia foram emboscados e levados, entre lágrimas e o mais profundo dos desesperos, a simplesmente assinarem “rescisões por mútuo acordo” que a TAP declarava serem inegociáveis e que continham cláusulas absolutamente inauditas, como a da “lei da rolha”, que os proibia de fazerem declarações que pudessem ser consideradas desfavoráveis para a empresa. Tudo sob o signo não só da ameaça, como das mentiras, agora completamente desmascaradas: a de que o despedimento era tão inevitável quanto legal e a de que o famigerado Plano de Reestruturação (que foi sempre mantido secreto, embora invocado para tudo e mais alguma coisa) obrigava à realização do despedimento…
Essa violação da lei nacional e comunitária (ao inutilizar a negociação colectiva legalmente prevista e ao substituí-la pelas emboscadas individuais e por todas aquelas ameaças, chantagens e mentiras, que, apesar de oportunamente denunciadas às entidades competentes[8], estas não só nada fizeram como até as legitimaram) conseguiu fazer com que, dos 1900 trabalhadores que a Administração da TAP e o Governo quiseram mandar para o desemprego, a esmagadora maioria acabasse por sair pelas tais RMA (rescisões por mútuo acordo), que, ainda por cima, possibilitaram aos algozes dizer hipocritamente que quase não tinham despedido ninguém, mas antes posto em marcha um “magnífico” programa de “rescisões voluntárias”.
Por tudo isto, a lei (Código do Trabalho) pode e deve ser urgentemente alterada, designadamente:
- Deixando de exigir, como condição para a impugnação dos despedimentos ilegais, a devolução pelo trabalhador da indemnização paga pela entidade empregadora.
- Voltando a determinar que as indemnizações de antiguidade sejam calculadas a partir da remuneração habitual do trabalhador (e não apenas da retribuição-base), elevando essas indeminizações, em caso de despedimento lícito, para 30 dias por cada ano de antiguidade e, em caso de despedimento ilícito, para 60 dias. Por seu turno, os juízes da Justiça Laboral devem ser formados na ideia central da busca da realização da Justiça material, tendo o dever quer de impedir o lawfare dos grandes litigantes, quer de decidir indemnizações verdadeiramente compensadoras (também) dos danos morais causados com o despedimento ilícito, e realmente sancionatórias das condutas patronais gravemente ilegais.
- Em caso de despedimento ilegal judicialmente impugnado, o subsídio de desemprego do trabalhador despedido deverá ser mantido até à decisão final do processo.
- A Justiça Laboral deverá ser gratuita para os trabalhadores, pelo menos em todos os casos de impugnação de despedimentos (e também nos processos de acidentes de trabalho e doenças profissionais).
- As práticas do assédio, da chantagem e da ameaça devem ser criminalizadas.
Os indizíveis sofrimentos de todos os despedidos, mas também dos ameaçados e enganados trabalhadores, não deviam, nem devem, ficar impunes. E por isso constitui igualmente uma reivindicação cívica básica que todos os responsáveis por esta forma de agir não deixem de ser chamados a prestar contas pelos autênticos crimes que praticaram!
António Garcia Pereira
[1] Dois anos no caso da TAP e sete no do Banco, pelo menos para já, visto que o Novo Banco logo recorreu da decisão e a TAP vai decerto fazer o mesmo.
[2] Art.º 366, n.º 4 e 5 do Código do Trabalho.
[3] Estabelecida pelo art.º 26.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo do Trabalho.
[4] Art.º 390.º, n.º 2, al. a) do Código do Trabalho.
[5] Art.º 391.º, n.º 1 do Código do Trabalho.
[6] Art.º 389.º, n.º 1, al. a) do Código do Trabalho.
[7] Art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.
[8] Da Autoridade para as Condições do Trabalho ao Ministro da Tutela, passando pelo Primeiro-Ministro, pelo Presidente da República e pela Provedora de Justiça.
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